Vitaminas escrita por tardigrade j


Capítulo 1
capítulo único




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Preciso ligar para você novamente, pela quarta vez essa semana. Preciso dizer enquanto engulo o choro que eu juro que procurei na gaveta de meias, na caixa de talheres, na prateleira de toalhas de rosto e até dentro do cesto de roupas. Como fui tão irresponsável? Como pude escorregar de novo?

Não me encontro em lugar algum, ao invés disso encontro essa versão espalhafatosa de mim que não troca o pijama já faz uma semana, repetindo os mesmos álbuns de sempre e negligenciando as vitaminas. O sol me fez debulhar em lágrimas anteontem com sua áurea prepotente de quem nunca tombou com a melancolia, enquanto nos vê tropeçando no nosso trajeto elíptico ao seu redor com o escárnio de alguém que ri de bebês que ainda não deixaram de engatinhar – eu certamente não deixei. Foi por isso que às 14h37min daquela terça me vi descabelada gritando da janela “ah, quer saber? que se dane a vitamina D!” e me escondi debaixo das cobertas em pleno dia útil, como quem viu um monstro no armário e não tem mais coragem de encarar.

Preciso ligar para você pela quinta vez essa semana para avisar que é melhor não aparecer aqui nos próximos dias, há cacos de porcelana por todo o carpete da tigela de cereal que derrubei na manhã passada, e outras coisas mais. Preciso ouvir da sua voz pelo telefone que está tudo bem apenas para ter um motivo para reafirmar que está tudo bem... Está tudo bem... Assim que eu resolver essa inconveniência quinzenal, você sabe como sou levada; vamos lá, onde se meteu?

Será que me perdi no ponto de ônibus, enquanto separava as moedas da passagem, ou enquanto descia apressada as escadas do consultório médico ou será que não vi quando fugi ao abrir o portão na volta da minha caminhada? Como um cachorro travesso, descendo ladeira abaixo, me deixando com 15 e-mails fechados que não faço ideia de como responder, onde enfiar as vírgulas e os pontos finais.

Apenas resolver essa pequena inconveniência. Apenas resolver essa pequena inconveniência. Apenas resolver essa pequena inconveniência. 15 e-mails fechados. Você terminou o projeto? O prazo vai expirar! Sua encomenda acaba de sair para entrega. Promoção! Todo site por 50%. Horóscopo do dia. Tem música nova da sua artista favorita. Apenas resolver essa pequena inconveniência. Eu espero que esse e-mail te ache bem... Você deveria ter visto a cena patética, me procurando até na caixa de spams, só para garantir.

Como fui tão levada? Como fui tão levada? Como fui tão levada?

Preciso ligar para minha mãe, quem sabe ela tenha alguma ideia de onde estou como no verão de 2008 que por nada nesse mundo eu achava meus óculos de sol vermelho e ela, puxando o pano de louça preso na cintura, desfilou corredor à frente – com a expertise de uma top model dominando a passarela – e achou o bendito debaixo das almofadas. Mas não acho que esse seja o caso, ela não entenderia... Você não entende, mesmo com todo esforço do mundo, por isso te ligo menos.

E te ligo menos porque a versão de mim que eu encontro no reflexo vem gritando terrivelmente alguma coisa sobre eu ser difícil demais de ser amada, coisa demais, resolvendo pequenas inconveniências o tempo todo como um emprego de período integral. Por favor, vire para lá, não quero que me veja nesse estado, é muito difícil amar alguém nesse estado... Meu deus. Como pude ser tão levada? Como pude ser tão levada?

E ao passo que São Longuinho ou qualquer outro santo que tenha a paciência de ainda regar por mim não afere seu milagre só me resta negligenciar as vitaminas, o sol, você, os e-mails, minha mãe, as plantas, a louça, você, o barulho estranho na máquina de lavar, o cachorro da vizinha implorando por carinho toda vez que saio para levar o lixo, os e-mails, você, minha mãe, o sol, as vitaminas.

 

*

Eu apareci novamente...

...Ela apareceu novamente, como se nada tivesse acontecido. Dá pra acreditar? Limpou as bancadas, lavou os pratos, trocou a roupa de cama. Você não faz ideia. Ela apareceu por aqui, abriu as cortinas, depositou um saco de pães quentinhos recém comprados e um punhado de motivações para sobreviver mais uma semana. E te ligou pela sexta vez essa semana.

Quando ela desceu, ela desceu radiante. Distribuindo bons dias, fazendo carinho no cachorro da vizinha, sem abandonar cartas na caixa de correios, respondendo 15 e-mails com a excelência de uma profissional, colocando as vírgulas onde elas pertenciam.

Você a adora, você a adora porque ela conta as melhores piadas do momento em que ela abre a porta, te deixa entrar, até o momento que tudo precisa ficar em silêncio. Você a adora, porque deus como ela não é difícil de amar, porque sua conversa flui com leveza, porque ela é muita coisa. Não há nada que uma mulher como ela negligenciaria, veja só, as plantas nunca estiveram tão saudáveis!

Eu a fito do outro lado da mesa, enquanto ela põe para dentro algumas frutas, um chá de camomila e uma rosquinha com recheio de baunilha – só para não soar tão básica assim. Assim que ela levantar vai tirar um frasco de vitaminas, e como se não fosse o suficiente ela sairá para correr logo em seguida. Eu estou viva, está escrito na sua testa com aroma de hidratante facial e lavanda (do nosso xampu).

Me sinto trêmula, assustada, com vontade de gritar meu melhor sermão. Mas eu não tenho o que é necessário para discutir.

— Você pretende... Ficar por quanto tempo?

Ela dá de ombros. Ela não tem medo de nada, nem se abala com meu semblante temeroso.

Quando ela levanta todo meu corpo estremece.

— Você não vai embora de novo, certo? – Eu não suporto mais estadias tão curtas. Um dia lutando o mundo, no outro me soterrando sob as tramoias da minha própria cabeça. Resolvendo pequenas inconveniências.

Pela primeira vez sinto que nossos olhares se encontram, e a sinto tão exausta quanto eu. Faces da mesma moeda. O avesso. Quero a abraçar tão forte que ela nunca mais irá ousar sair pela porta e me deixar em pedaços no carpete... Quero que ela me abrace tão forte que ela nunca mais me fará procurar feito louca. Exaustas. Exaustas. Exaustas.

— Me diga o que fazer, escreva detalhe por detalhe... Eu não sei. Eu não sei... Eu não consigo. – Quero chorar! Me deixe chorar!

Ela vai embora, e talvez volte em algumas horas. Quem sabe suma por um par de dias. Quem sabe só tenha ido buscar uma xícara de açúcar na vizinha. Eu vou esperar, de qualquer maneira. Levar do jeito que dá. Risco da lista de afazeres que ela deixou presa à geladeira: tomar as vitaminas. Porque já tomamos.

Espero que ela não demore... o sol está prestes a nascer.  


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Notas finais do capítulo

;))))



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