O Farol escrita por Lady L


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura :)



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Ianthe mal conseguia se lembrar do mundo antes do Farol. Sua vida toda parecia uma sucessão de fogo, água e sal, e ela sequer saberia dizer se havia qualquer tipo de existência além daquela torre solitária.

—Ícaro ainda não voltou- Andrômeda comentou, ajustando as engrenagens com os dedos. Suas mãos pálidas enegreceram, se manchando até os pulsos de graxa- E o sol já está quase se pondo.

Ianthe encarou a Princesa Exilada. O vento agourento daquela tarde moribunda soprava seus cabelos escuros contra o rosto com a mesma gravidade com que um condenado daria seu último suspiro.

—Ele tem que se apressar- Ianthe murmurou- A lua está minguante. Coisas ruins acontecem na escuridão.

Andrômeda parou sua tarefa, e o fogo que começava a se erguer esmaeceu com violência.

—Talvez eu devesse ir atrás dele- ela comentou- Ele pode estar com problemas.

Ianthe se afastou do parapeito, se aproximando da Princesa com uma expressão dura em seu rosto.

—Você sabe que eu não posso permitir que saia enquanto ele ainda não tiver retornado. O Farol precisa de um guardião- ela informou, e Andrômeda abaixou os olhos.

—Eu sei. Mas você não poderia guardar o Farol por mim? Eu realmente preciso saber se ele está bem- a Princesa ergueu seus olhos para Ianthe, que, apesar de comovida, manteve a expressão dura.

Andrômeda era pequena e pálida, com longos cabelos loiros e olhos azuis, uma coisinha bela, mas supremamente frágil. Ianthe quase nunca permitia que ela saísse do Farol, e se perguntava todos os dias porque a Princesa Exilada havia sido uma das escolhidas para ser enviada até ela. Entendia as qualidades do Anjo Caído que o haviam fadado àquele destino, mas a garota sempre parecia assustada e preocupada demais para estar em um lugar tão perigoso, realizando uma tarefa tão primordial.

—Eu até me disporia a guardar o Farol em sua ausência, Andrômeda- Ianthe respondeu, com um suspiro- Mas eu estou morta.

A Princesa abaixou os olhos.

—Eu sei, mas não haveria problemas se eu retornasse antes do anoitecer, haveria?- ela perguntou, mexendo nervosamente nas pontas dos cabelos.

—Deve haver sempre uma alma viva guardando a torre, ou a escuridão prevalecerá. É isso o que você quer? Como posso ter certeza de que vai conseguir voltar antes que o sol se ponha?- as palavras da Deusa Morta saíram mais duras do que ela gostaria, mas Andrômeda precisava ouvi-las.

Os olhos da Princesa se encheram de água, e, por um segundo, Ianthe se arrependeu de seu tom demasiadamente frio. Mas logo o sentimento passou. Estava simplesmente cumprindo seu dever.

—Tudo bem, Senhora- a Princesa disse, baixando o rosto- Não lhe incomodarei mais com as minhas ideias estúpidas.

Ianthe sabia que Andrômeda tinha um grande apreço por Ícaro. Grande até demais, por vezes. Ela era uma garota ingênua demais para saber que nunca deveria se apaixonar por um Anjo. Eles eram criaturas vaidosas, e podiam ser encantadores, é verdade, mas nunca realmente considerariam um humano como seus iguais. Mesmo assim, aquele Anjo em específico era de suma importância para a sobrevivência de ambas naquele Farol, então, enquanto observava Andrômeda mexer nas engrenagens e esconder o choro, Ianthe tomou uma decisão.

—Bem, você não pode ir atrás de Ícaro, mas eu posso. E é o que farei- a Deusa Morta disse, e a Princesa Exilada imediatamente parou sua tarefa, correndo e se jogando contra ela em um abraço.

—Muito muito obrigada, Ianthe- ela disse, apertando seus braços magros contra a outra- Eu sabia que você não me decepcionaria.

Ianthe a abraçou de volta, sentindo as lágrimas da Princesa ensopando seu ombro.

—Se eu não voltar até que o sol se ponha, quero que acenda o Farol com o máximo de luz que conseguir. Você será nossa única chance de voltar para casa- Ianthe disse, afastando a Princesa suavemente.

—Eu prometo- Andrômeda respondeu- Volte logo. Eu estarei esperando.

E assim a Deusa deixou a Princesa na torre e partiu em busca do Anjo Caído.

Já se faziam anos desde que Ianthe saíra do Farol. Décadas, até. A areia escura e pedregosa da praia contra seus pés descalços a fez estremecer conforme ela caminhava para a floresta, na direção oposta do mar.

Ainda assim, sua pele gritava, respondendo ao chamado insistente da maré, que subia cada vez mais depressa. Ela ousou lançar um olhar para trás, e a imensidão azul do oceano foi como um soco na boca de seu estômago. Ela sabia que jamais poderia voltar para casa, mas a vontade era quase incontrolável. A única coisa que lhe deu motivação foi avistar a silhueta de Andrômeda no topo do Farol, a observando gravemente enquanto as engrenagens de bronze rodavam atrás dela, fazendo o fogo subir cada vez mais depressa.

A penumbra da mata a engoliu mais rápido do que ela gostaria, e ela podia sentir presenças ao seu redor, a encarando por entre as folhas densas. Eles não a tocariam, Ianthe poderia estar morta, mas ainda era uma Deusa, e nada naquela floresta teria a ousadia de lhe desafiar. Ao menos não de dia, quando a pouca luz que passava por entre as copas cerradas das árvores afastava as criaturas que se alimentavam da escuridão.

—Ícaro?- a Deusa chamou, sua voz ecoando por entre os troncos de madeira escura- Ícaro, você está aí?

Não obteve resposta. Antes que pudesse chamar novamente, contudo, ela viu algo que lhe chamou a atenção.

Entre as folhas caídas, um brilho metálico e forte, que se revelou uma engrenagem de bronze à inspeção mais próxima, se anunciava. Uma das engrenagens das asas de Ícaro.

—Ícaro!- ela chamou novamente, dessa vez mais alto e com mais desespero, conforme corria cada vez mais depressa por entre as árvores- Ícaro, onde você está?

O silêncio ensurdecedor foi sua resposta.

Ianthe caiu de joelhos no chão da floresta, começando a perceber a gravidade da situação. Ícaro era um Anjo Caído, é verdade, e portanto perdera suas  verdadeiras asas assim que caíra da Graça. Contudo, ela forjara as penas e engrenagens de bronze de suas novas asas com as próprias mãos, e sabia que nada poderia quebrá-las tão facilmente, a não ser que... não, era impossível. Ele estava morto há séculos, ela mesma o havia enterrado.

—Ianthe?- uma voz fraca e frágil chamou às suas costas, e ela se levantou correndo, a tempo de amparar Ícaro antes que ele desfalecesse completamente.

O Anjo estava em um estado deplorável. Seus cabelos castanhos se grudavam à tez, que antes havia sido dourada, mas que agora se encontrava mortalmente pálida. Os olhos âmbar estavam enevoados e confusos, e arranhões se abriam por toda a extensão de seu corpo. Mas o pior eram suas asas, o melhor trabalho que Ianthe já havia feito, o orgulho de ambos, que antes o erguiam no ar tão alto que ele quase podia tocar o sol. Agora não passavam de fios e arames depenados, se debatendo inutilmente nas costas do Anjo, enquanto ele gemia de dor.

—Ícaro, o que aconteceu?- Ianthe perguntou, desesperada, segurando em seus braços o corpo quebrantado do amigo- Quem fez isso com você?

Ícaro chorava copiosamente, confuso e desorientado.

—Minhas asas...- ele lamentou, entre soluços- Ele arruinou minhas asas...

Ianthe estava prestes a chorar também, mas não podia se permitir perder o controle quando tanta coisa estava em jogo.

—Nós precisamos voltar para o farol, Ícaro- ela disse suavemente, correndo os dedos pelos cabelos do amigo para tentar acalmá-lo. Sua pele negra se encharcou de sangue- Andrômeda está nos esperando. Temos que voltar para ela antes que o sol se ponha.

—Andrômeda...- Ícaro murmurou, ainda perdido. Então, de repente, seus olhos se arregalaram, se enchendo de uma lucidez inesperada e assustadora- Você deixou Andrômeda sozinha no Farol? Nós precisamos voltar. Antes que seja tarde demais.

Aquele foi o momento em que Ianthe teve certeza de que o pior havia acontecido.

—Você consegue andar?- ela perguntou, apoiando o amigo nos ombros e tentando arrastá-lo consigo, mas ele estava fraco demais para acompanhá-la, e acabou caindo novamente.

—Não se preocupe comigo. Eu chegarei ao Farol antes do anoitecer. Mas você precisa ir agora mesmo, Andrômeda corre grande perigo- ele disse, e Ianthe sentiu seu coração se apertando dentro do peito, mas acabou concordando.

Ela correu pela floresta, quase tropeçando nos troncos mortos e folhas secas, até que estava novamente de frente para o Farol. A maré estava começando a roçar a base da construção, e o mar rugia, mais feroz do que nunca.

—IANTHE!- um grito desesperado cortou o céu alaranjado, e a Deusa sentiu um arrepio agourento percorrer sua espinha.

—Andrômeda!- ela gritou de volta, começando a subir a torre, completamente aterrorizada.

O que ela viu quando chegou ao topo foi o suficiente para fazer as lágrimas que ela segurava há tanto finalmente caírem.

Andrômeda estava presa à parede, com a cabeça baixa e os cabelos loiros cobrindo o rosto. E, atravessando sua barriga, havia uma viga de bronze, que a mantinha suspensa no ar, enquanto seu sangue pingava lentamente no chão de pedra.

—Andrômeda!- Ianthe correu na direção da amiga, sentindo seu coração se despedaçar, as lágrimas despencando com violência por seu rosto- Andrômeda, não pode ser...

—Ela também disse isso quando eu apareci- uma voz cínica e familiar escarneceu, vinda de algum lugar às costas de Ianthe- Que não poderia ser. Que eu deveria estar morto. Bem, vejo que todos os seus guardiões são igualmente estúpidos.

Ianthe se virou vagarosamente, o horror crescente em sua expressão.

—Olá, velha amiga- o homem à sua frente cumprimentou, com um sorriso excessivamente largo e frio- Sentiu minha falta?

Da última vez em que Ianthe viu Nereu, os dois acabaram mortos. Mas a mulher havia se erguido, e o homem, sido enterrado nas profundezas da floresta.

—Nereu- Ianthe disse o nome com desprezo, mas também com certo temor- Como ousa colocar os pés nesse solo sagrado?

O homem riu.

—Você deve saber, minha cara, que estar morto muda muitas coisas. Incluindo o que é sagrado ou profano em nossas presenças- ele replicou, e Ianthe sentiu seus punhos se cerrando.

—Você machucou os meus protegidos e profanou a minha torre! Eu vou destruí-lo novamente, como fiz quando você me desafiou da última vez. Mas, dessa vez, você vai morrer gritando- ela vociferou, avançando na direção dele com os olhos brilhando de ódio.

Nereu deu um sorrisinho presunçoso.

—Você pode fazer isso- ele disse, muito calmamente- Mas está cada vez mais escuro. E tenho a impressão de que o Farol não se consertará sozinho.

Ianthe sentiu seus olhos se arregalando, e se virou para encarar as engrenagens que deviam manter o fogo aceso. Estavam completamente destruídas.

—O que você fez?- ela perguntou, o horror a tomando completamente.

—O que precisava ser feito, Ianthe. O Leviatã se erguerá. A lua mingua, o poder da escuridão chega ao seu auge, e os mares tomarão novamente o que lhes pertence. Você nos impediu por tempo demais, mas agora seus protegidos estão mortos, e nenhuma de suas construções e engrenagens de metal poderão proteger esses mortais ingratos.

Ianthe avançou mais uma vez contra Nereu, erguendo a mão para acertá-lo, mas ele segurou seu braço como se ela fosse uma criança. Ou pior. Uma mortal.

—Olhe bem o céu, minha cara. Está bem escuro, não acha? E você pode ter poder para me derrotar enquanto sol brilha. Mas se esquece de que a noite me pertence- ele zombou, e Ianthe gritou aos seus plenos pulmões, se debatendo para se soltar. Ele simplesmente a jogou para o lado como se ela fosse uma boneca de pano, e ela caiu, deslizando pelo chão até acertar a parede, sentindo seu corpo cada vez mais fraco, e o céu, cada vez mais escuro.

—Não se preocupe, minha cara- Nereu disse, conforme o mar subia, cada vez mais alto e mais feroz- Você está apenas voltando para casa.

A última coisa que Ianthe viu antes que a água a engolisse foi uma sombra monstruosa se assomando no horizonte, e devorando os últimos resquícios de luz.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado! É o primeiro conto que publico por aqui, e provavelmente o único que vou escrever nesse universo em específico, mas nunca se sabe o dia de amanhã. Obrigada por ler, comentários são sempre muito apreciados.