Os Cavaleiros do Zodíaco: A Lenda de Seiya escrita por Masei


Capítulo 37
O Tigre e o Dragão


Notas iniciais do capítulo

Shiryu recebe uma inesperada ajuda para recuperar confiança em si mesma antes de enfrentar o desafio pela Armadura de Dragão de seu antigo rival, Dohko.



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 Em Jamiel, Shun surgia do vale que abrigava o Cemitério para a ponte de pedra que o levaria até o pontilhão em que se levantava o templo de pedra branca de Mu. Atravessou a ponte seguro de si com sua Urna de Bronze nas costas; o garoto lembrava-se das histórias que ouvia na Ilha de Andrômeda. Que as habilidades da Mestre Mu eram conhecidas no reparo de Armaduras era algo de que quase todos os Cavaleiros do Mundo conheciam. Mas lembrava-se de seu Mestre corrigir uma injustiça, pois dizia que Mu não era uma mera ferreira do Santuário.

— As Armaduras possuem vida e vontades próprias. — dizia seu Mestre. — E se assim for, Mu não é uma ferreira, mas um curandeira extremamente capaz. As pessoas buscam Mu apenas pelo reparo de suas Armaduras, sem dar-se conta de que ela é, em verdade, uma talentosa curandeira.

E, diante daquele templo branco e sujo, Shun arriscou imaginar se ela não saberia alguma forma dentro do universo de que faziam parte para devolver a visão à sua amiga Shiryu. E com essa esperança no peito notou com surpresa que o templo não tinha entrada alguma em seu andar térreo.

Viu no alto, entretanto, que uma pedra levantava-se flutuando no ar de maneira impossível, quando foi surpreendido por uma criança correndo por detrás do templo até ele.

— Andrômeda! — gritou a voz de criança abraçando Shun imediatamente.

Era a menininha que havia lutado contra ele. Era Andrômeda Negra. Mas ali ela estava com uma camisa verde muito grande para seu corpinho, uma bermuda na altura de suas canelas e botinas nos pés. Andava com dificuldades, pois claramente a roupa não parecia ser sua. Na testa, tinha duas marcas tortas e pequenas.

— Ai, que emoção. Você trouxe sua armadura. Posso ver, posso ver, posso ver? Ai, você num lembra de mim? Sou a Lunara! A gente teve uma luta incrível no vale, lembra? Eu quase ganhei de você.

— O que você faz aqui nesse lugar? — perguntou ele, sincero.

— Ah, a Mestre Ikki que me trouxe! Disse que aqui eu poderia aprender um tanto de coisa legal. E ela tinha razão! Eu já até criei minha própria Armadura! Vem, vem ver! 

Ela puxou Shun, mas o garoto Kiki teleportou-se ao lado dos dois.

— Ô, sua enxerida, aqui a gente recebe as visitas jogando pedra neles. Você não deixou eu terminar minha entrada!

— Ah, Kiki, é o Andrômeda. A gente é amigo!

— O nome dele é Shun! — ralhou Kiki.

— Ai, que nome lindo! — maravilhou-se Lunara. — Foi a Mestre Ikki que deu?

— Não. — respondeu Shun sem graça, mas com um sorriso no rosto.

— Ai, e como está a Mestre Ikki? — perguntou Lunara, pois ela não parava de falar.

Kiki a empurrou para o lado de modo que ficasse diante de Shun.

— Perdoa essa peste, eu ainda não acredito que a Mestre Mu deixou ela ficar aqui.

— A Mestre Mu me adora! 

— Ela te odeia! — acusou Kiki.

— Tenham calma os dois. — pediu Shun. — Onde está a Mestre Mu?

— Oh, Shun. Veio para reparar sua Armadura? Infelizmente a Mestre Mu não está aqui e não volta tão cedo.

— Eu posso reparar! — gritou Lunara absolutamente animada, Shun riu e Kiki correu atrás dela, que já tinha ido dentro do templo buscar suas ferramentas.

— Calma, Lunara. — pediu Shun. — Está tudo certo com a minha Armadura. Mas eu queria conversar com a Mestre Mu. Para onde ela foi? — perguntou ele.

— Foi pra China! — respondeu Lunara, empolgada.

— Fica quieta, ele perguntou pra mim! — ralhou Kiki.

Shun aliviou-se um pouco, pois talvez Mu já soubesse das condições de Shiryu e tivesse ido pessoalmente tentar reparar os olhos da amiga.

— Bom, nesse caso, eu estou morrendo de fome. O que vai ter pra comer? — perguntou Shun bem-humorado para os dois.

— Ah, isso é com o Kiki. — falou Lunara, cansada.

— Ah, aí é comigo, né? Sua folgada! Você não faz nada, só bagunça tudo. E pode tirando a minha camisa que eu já falei mil vezes pra não pegar.

Shun seguiu os dois para dentro do templo dando risada das crianças.

 

—/-

 

Shiryu juntou dentro de si as forças que precisava para deixar com Dohko sua Sagrada Armadura de Dragão. Era um dia triste, pois por toda sua vida havia treinado e sua própria identidade estava intimamente ligada ao caminho difícil percorrido por ela para se tornar a Cavaleira de Dragão. E agora precisaria deixar tudo isso para trás.

Antes que entrasse em sua casa, no entanto, uma voz lhe cumprimentou saindo pela porta.

— Quem é você? — perguntou ela, já que a voz não lhe trazia nenhuma lembrança.

— Ora, Shiryu não é possível que tenha se esquecido de mim.

Shiryu notou uma estranha sensação dentro dela, um ligeiro movimento do ar e, instintivamente, defendeu-se de um soco, colocando-se de lado.

— Olha só. Muito bem, Shiryu.

Mas ela ainda não se recordava daquela pessoa. Buscava em sua memória a quem aquela voz a fazia lembrar, já que seus olhos jamais poderiam lhe dizer, quando finalmente lhe ocorreu de uma vez tudo que havia passado. E aquele soco foi quem, na verdade, lhe despertou a possibilidade que se revelou correta.

— Dragão Negro?

— Então se lembra. — falou ele.

— Você é o irmão do Dragão Negro, não é?

— Sim. Mas não sou mais Dragão Negro, Shiryu. Pode me chamar pelo meu nome. Shinadekuro.

— Shinadekuro. — repetiu Shiryu, mas então sua guarda baixou e ela perguntou, séria. — O que faz aqui?

— Ora, eu ouvi dizer que a Armadura de Dragão está vaga. Eu vim tentar a sorte.

Havia um leve deboche em sua voz e Shiryu sentiu-se ridicularizada por um lado.

— Posso não ver, mas se pudesse, diria que está desapontada. Afinal, a Armadura de Dragão está vaga ou não?

— Não. — respondeu Shiryu. — Terá de lutar por ela se quiser.

— Muito bem. — respondeu o garoto animado.

— Não comigo. — tornou Shiryu, dirigindo-se à entrada de sua casa; Shunrei veio em sua ajuda enlaçando seus braços. — O nome da pessoa que deve desafiar é Dohko.

E caminhou para casa deixando o rapaz ali sozinho.

— É isso então, Shiryu? Vai mesmo desistir? — perguntou Shinadekuro, agora às suas costas, como adivinhou ela. — Não se parece em nada com aquela garota valente que nos enfrentou no vale.

— Eu não sou mais aquela garota. — disse Shiryu, tristemente.

— E o que mudou? — perguntou ele, insistente.

Shiryu parou e imaginou que talvez ele não soubesse o mal que lhe acometia, afinal também nada podia ver.

— Se disser que o que mudou para tornar-se uma covarde é o fato de que está cega, eu ficarei muito ofendido. — falou ele novamente. — E, antes de vencer esse tal de Dohko, terei de te vencer aqui também.

Ela não disse e ficou boquiaberta, embora ali apenas Shunrei pudesse ver claramente o que se passava.

— Foi a sua fibra inabalável que deu a oportunidade de meu irmão morrer com um sorriso no rosto. Abandonando sua amargura nem que tenha sido em seus últimos suspiros. E por isso eu sou eternamente grato a você. — falou ele. — Mas se o que sobrou daquela guerreira for isso que você se tornou…

Shiryu sentia-se humilhada. Mas uma centelha dentro dela, talvez seu orgulho, a fez parar a lenta marcha até sua casa. Deixou os braços de Shunrei.

— Shunrei. — pediu ela. — Afaste-se.

— Shiryu, esqueça isso. Não deixe que ele...

— Shunrei. — interrompeu ela. — Por favor. Se afaste.

Sentiu a amiga trêmula, mas afastou-se até próximo do batente da porta. Shiryu virou-se para onde imaginava que Shinadekuro estava; colocou-se em guarda e respirou fundo.

Iria lutar.

— Estou aqui, Shiryu. — disse ele, e Shiryu muito mal conseguiu desviar de um soco à sua esquerda. — Não está mal, mas pode melhorar. — comentou o garoto.

Desferiu então alguns golpes na direção de Shiryu que, com dificuldade, tentou seu melhor para se desvencilhar, embora a dor lhe invadisse, pois não tinha exatamente muita prática.

— Lembre-se, Shiryu. — falou Shinadekuro. — Você não pode ver. Não é uma possibilidade. E é isso que você precisa colocar na sua cabeça. Eu sei que ainda está tentando encontrar qualquer detalhe em sua cegueira que o possa guiar na escuridão. Um vulto, uma sombra, qualquer coisa. Mas isso não vai acontecer.

Shiryu estava ofegante, atenta à voz de Shinadekuro.

— Lembre-se de que você tem outros sentidos à sua disposição. Sei que está se guiando pelo som da minha voz, mas o que acontece se eu me calar?

E se calou, mas sua voz não era o único guia que tinha. Ainda podia escutar claramente seus passos e, assim, orientava seu corpo. Sentiu-se atacada; não sabia exatamente qual sentido lhe alertou, mas Shiryu defendeu-se de um chute do inimigo.

— Muito bom, Shiryu. — falou o garoto, e completou. — Você tem um treinamento muito mais formidável que o meu.

— Diga-me, Shinadekuro, como posso melhorar a minha percepção?

Ouviu muito baixinho sua risada de quem anima-se ao ver ao menos a sombra daquela fibra que já havia visto antes. Aquela era a Shiryu de que se lembrava.

— Garota! Shunrei não, é? Diga-me. Vocês têm peixes dentro dessa sua casa? — perguntou ele uma questão estranhíssima.

Pois tinham.

Shinadekuro levou um balde de peixe, um pilão e junto de Shiryu subiram por uma trilha até um pontilhão de pedra. A garota lhe fazia inúmeras perguntas; como ele sabia por onde andar, a direção, como guiava-se e a tudo Shinadekuro respondia nos mínimos detalhes.

— A visão é apenas um de nossos sentidos, Shiryu. — falou ele. — E a percepção de uma pessoa com todos eles à disposição se distribui entre todos, mas se ancora com muita força na visão. E sem a visão, no entanto, a nossa percepção distribui-se igualmente entre todos os demais sentidos. De tal forma poderosa que podemos entender que há uma parede à nossa frente, uma árvore, uma pessoa, pela atenção que damos aos outros sentidos.

Shiryu ouvia com muita atenção.

— Principalmente você, Shiryu. — falou ele.

— O que quer dizer, Shinadekuro? — perguntou a garota.

— Você passou anos desenvolvendo algo além dos seus cinco sentidos. O seu Cosmo.

Ela então lembrou-se com clareza de como, sem nada poder ver, seu cosmo brilhante a guiou para de alguma forma saber onde estava Argol e vencê-lo em batalha.

— Uma guerreira treinada como você, uma guerreira com o conhecimento profundo do Cosmo como você. Tudo que você precisa é se esquecer de que pode ver. Superar sua visão. E finalmente perceber que seus outros sentidos estão muito mais aguçados. Venha.

Chegaram ao destino que Shinadekuro queria; o que era incrível, já que ele não poderia nunca conhecer aquela região. Mas Shiryu sentiu uma brisa naquele lugar e percebeu que era um local muito aberto.

— Cuidado, Shiryu. Há uma queda enorme à sua frente. — alertou Shinadekuro.

A garota maravilhou-se com a capacidade do rapaz de adivinhar aquelas coisas apenas pela resistência do vento, o vácuo do ar, a propagação dos ecos ao redor. Escutou que o garoto parecia amassar os peixes dentro do balde com o pilão com força, reduzindo-os à uma pasta com pedaços pequenos de peixes. Misturou, misturou e chamou pela garota.

— Tire a roupa, Shiryu. — pediu ele.

Ela hesitou. E ele deu risada.

Ela também, pois lembrou-se que ele nada podia ver, oras.

Tirou sua roupa, ficando nua.

E sentiu o balde com o peixe reduzido à uma pasta ser jogado em sua cabeça.

— Espalhe por seu corpo.

Ela enregelou-se por um instante, surpresa, mas nem tanto. Foi tomada por um cheiro terrível de peixe, misturado com ervas fortes; espalhou aquela pasta por seu corpo sem entender muito bem para o que servia, mas tentando confiar em Shinadekuro.

— O que significa isso?

— Já vai saber. — disse Shinadekuro. — Preste atenção. Foque. Não tente enxergar. Sinta.

Shiryu então escutava com clareza os pedaços de peixe escorrendo pelo seu corpo, o balouçar das árvores em lufadas de vento um pouco mais próximas, mas também um vento soprando longe árvores distantes, ecoadas; adivinhou que era assim que Shinadekuro sabia estarem diante de uma queda de precipício. Ouviu então o canto de alguns pássaros no céu, como se uma revoada migrasse. Mas o pio dos pássaros se aproximaram.

Um deles bicou seu braço, levando um pedaço do peixe.

Finalmente entendeu.

E no alto daquela pedra, Shiryu passou minutos terríveis tentando desviar de toda sorte de aves que avançaram sobre ela buscando um pedaço pequeno de peixe que tinha no corpo. Ela era muito veloz, mas os pássaros também eram. Não foi tomada de uma vez, pois a movimentação de Shiryu os impedia de avançar todos ao mesmo tempo.

— Não use seu cosmo de uma vez. — pediu Shinadekuro um pouco longe, adivinhando que Shiryu poderia obliterar aqueles pássaros com um ascender de seu punho. — Use-o em cada movimento que for fazer. Faça com que esses pássaros procurem comida em outro lugar.

E Shiryu esquivava-se, apartava, desviava, redirecionava pássaros de todos os lados. Usando seus braços, suas mãos, seu pescoço, suas pernas.

No começo com enorme dificuldade, acumulando beliscões pelo corpo todo, mas conforme continuava, com mais facilidade e rapidez podia perceber a chegada de um pássaro. Shinadekuro tinha razão: tudo que ela tinha que fazer era unir seu cosmo com seus movimentos. E escutar. Não somente ouvir seus granidos, mas senti-los. O deslocamento do vento com suas pequenas asas, o vácuo no ar que ficava no lugar de seus rasantes.

Quando o último pássaro finalmente desistiu de abocanhar os peixes de seu ombro, Shiryu caiu ajoelhada, ofegante.

— Muito bem, Shiryu! — comemorou Shinadekuro.

 

—/-

 

A noite nas montanhas pode ser fria. E no coração de uma bonita floresta longe do cume dos Cinco Picos, rodeado de bambus silvestres, Dohko assava o seu jantar em uma linda fogueira espetada com peixes atravessados; ele sentado em um tronco silvestre derrubado. Antes de dar sua primeira mordida no peixe, no entanto, o rapaz percebe que não está só naquela noite.

— Quem está aí?

Olhou para todos os lados e finalmente viu o pequeno vulto que lhe observava na escuridão.

— É o senhor, Mestre? — perguntou ele.

O Mestre Ancião, com sua bengala e chapelão de bambu, caminhou para dentro da luz da fogueira.

— O que quer aqui? — perguntou, ríspido, voltando sua atenção ao seu jantar.

O velho caminhou e sentou-se ao seu lado.

— Dohko, está lutando muito bem.

Entre uma mordida e outra, o rapaz experimentou rir, debochado.

— Esperou quantos anos para me dizer isso? — comentou, sentido. — Por que me chamou de volta, Mestre?

— Ora, Dohko. Esses velhos ouvidos continuam ouvindo muito sobre ti.

Novamente Dohko riu.

— E me chamou para me dar mais um sermão? Eu acho que já estou velho para isso.

E foi a vez do Mestre Ancião dar risada.

— Pois o que escuto agora parece inacreditável. Diga-me, Dohko, é verdade que agora você enfrenta o crime na cidade? Ouvi dizer que tem uma roupa especial e tudo.

— Seus ouvidos estão mesmo muito velhos. — mentiu Dohko. — É uma bobagem.

— Não acho que seja, filho. — falou o Mestre. — Lembro muito bem de que viu com seus olhos o destino cruel de seus pais. Não poderia ser diferente.

Dohko então deixou de comer para olhar para o céu.

— Ainda assim não fui digno de ter a Armadura de Dragão. — lamentou-se na escuridão.

— A força da vingança pode ser poderosa, mas também muito traiçoeira. — falou o Mestre.

— E a dor de ser expulso? — perguntou ele, olhando para o Mestre na escuridão.

— Ah. Essa dor é mesmo muito dolorida. — falou o Mestre. — Aquele foi um dos dias mais tristes da minha vida.

— Que mentira. — discordou Dohko, desviando os olhos em desgosto. — Você sempre gostou mais de Shiryu.

— Está errado novamente, pois de quem eu gosto mais na verdade é de Shunrei.

Dohko olhou para o velho e o encontrou sorrindo.

— Chamei-o aqui pois você queria uma chance de vestir a Armadura de Dragão. Pois aí está a sua chance.

— Eu não acredito no senhor. — falou Dohko, rispidamente. — Na verdade, você me chamou aqui para que eu pudesse trazê-la de volta, não é? No final das contas continua sendo sobre Shiryu.

— Pois erra outra vez.

— Eu já entendi, Mestre. Ela está cega. Encolheu-se como um pássaro ferido. Eu pude sentir seu cosmo trêmulo quando lutamos. — falou Dohko. — Mas nós temos uma promessa. E eu terei a Armadura de Dragão assim que vencer Shiryu e me vingar de quando éramos crianças. Mas aquela junto de Shunrei não é Shiryu.

— E esse que está aqui continua sendo o mesmo Dohko.

O Mestre Ancião levantou-se, então, para dali ir embora.

— Dohko. — repetiu o rapaz sozinho. — Quando eu cheguei aqui, lhe pedi para que me desse um novo nome, pois não gostaria de ser mais aquela criança que havia deixado seus próprios pais morrerem à sua frente. Diga-me, Mestre. Por que Dohko?

De costas, o rapaz pôde ouvir claramente como o Mestre Ancião ria de forma rouca e incontida. Respirou fundo para tomar o ar e confessou na noite.

— Chamei-lhe Dohko, porque você me lembrava muito de como eu era quando tinha sua idade. E aqui diante de ti novamente, ainda me assusto com a semelhança. — disse ele profundamente, olhando o rapaz nos olhos novamente. — Dei-lhe meu próprio nome.

O Mestre Ancião sorriu e dali partiu, finalmente.

 

—/-

 

Ao raiar do dia seguinte, Shiryu banhava-se debaixo de uma enorme cachoeira.

Havia sido a primeira vez que sentira medo. Quando fora atingida pelo punho de Dohko e pregada contra a rocha. Perdera sua confiança. Ele tinha razão. O resultado da luta estava definido antes mesmo de ter começado. Desde que ela havia perdido sua visão, perdeu também uma parte essencial do que significa ser uma Cavaleira. E precisava recuperá-la. Não importava perder ou ganhar, pois não era sobre isso. Era sobre tentar.

Tarde daquele dia, surgiu diante do Mestre Ancião que, como sempre, vigiava as quedas imutáveis da cachoeira de Rozan.

— Você decidiu lutar contra Dohko. — adivinhou sua voz envelhecida. 

Ela deixou a Urna de Bronze de Dragão ao lado do Mestre.

— Sim, Mestre. — respondeu. — Se eu realmente for digna de vestir a Sagrada Armadura de Dragão, eu voltarei para buscá-la.

O Mestre deteve-se em um silêncio longo, que Shiryu tão bem compreendia e enfrentou durante todos os seus anos de treinamento.

— Bom, suponho que não haja nenhuma dúvida em seu coração. — falou, finalmente. — Ainda assim, não poderá vencer Dohko se não lembrar-se de seu objetivo. Do motivo pelo qual luta. Se não compreender isso, não será capaz de invocar a força mais poderosa de seu cosmo. 

E então se calou.

Shunrei moía ervas com um pilão ao pé da entrada de sua casa, como para desanuviar a preocupação que tinha. Preparava outro chá, pois queria ter a certeza de que Shiryu voltaria para ela.

Shiryu lamentava por Shunrei, mas havia finalmente compreendido que não tinha perdido apenas a sua visão, mas seu espírito de luta. Seu Cosmo. Havia esquecido a razão pela qual lutava.

Encontrou-a diante de Dohko, que já a esperava.

— Dohko, vim cumprir a minha promessa e lutar contra você. Se me vencer, será o digno Cavaleiro de Dragão. — anunciou Shiryu.

— Muito bem. — disse ele, apenas.

Shiryu ouviu claramente como os tecidos se soltavam de Dohko, e então repuxaram-se em um nó apertado. Ela compreendeu que o rapaz à sua frente havia se vendado.

— Assim será justo. — anunciou ele. — Está pronta, Shiryu?

— Quando quiser. — devolveu ela.

E atacaram-se.

Shiryu encontrou as garras afiadas de Dohko por algumas vezes, sentindo o sangue escorrer-lhe pelo braço, mas, conforme lutava, melhor percebia os movimentos do antigo amigo. Não demorou muito para que a batalha ficasse parelha entre os dois. Shiryu precisou pular para trás, de modo que pudesse escapar do que imaginou que fosse uma forte voadora.

Atrás de si, percebeu um pouco distante o correr das águas ecoadas em paredões. Parecia se aproximar de uma queda. Precisava se cuidar.

— Continua lutando só com as árvores, Shiryu? — perguntou Dohko. — Pois eu tive de enfrentar gente terrível por esse tempo todo. É bem diferente.

Ele avançou em Shiryu, que sabia não poder afastar mais do que já havia se afastado ou cairia para o rio. Bloqueou as duas garras de Dohko, para ver-se presa em uma chave de braços que a trancou indefesa.

Shiryu fez então o impensável e pendeu seu peso inteiro para trás, jogando-se na ribanceira levando Dohko junto.

 

—/-

 

Seus corpos espatifaram-se contra a face da água profunda, sendo levados pela correnteza adiante para uma queda d’água breve, em que viram-se novamente no rio baixo em que haviam treinado tantas vezes quando crianças. Onde Shunrei havia lhe abraçado e se perdido nas águas. O mesmo lugar onde Shiryu havia sentido medo pela primeira vez.

Levantou-se assim que tocou a margem do rio e virou-se, ofegante, tentando adivinhar onde Dohko estava. Quase imperceptível, mas para ela muito cristalino, percebeu a movimentação de um cardume dentro da água interrompido de seu nado rápido. Ela adivinhou que era Dohko, mas ele era rápido e a tomou pelo pescoço.

Shiryu sentiu-se ser erguida até seus pés não terem mais apoio; ele tinha crescido muito mais do que ela, refletiu. 

— Não vai escapar das garras do tigre. — falou Dohko.

Mas a garota apoiou-se com seus braços livres naquele tronco de árvore que parecia ser o braço de Dohko, tomou impulso feito um pêndulo e acertou uma joelhada em seu cotovelo. Ele ralhou de dor e largou Shiryu, que caiu na água.

— Ainda que o tigre tenha um braço quebrado, você ainda não tem chances de me vencer, Shiryu.

— Não me interessa te vencer, Dohko. — falou ela.

— O que quer dizer com isso?

— Não me interessa vencer. O que eu quero é recuperar quem eu sou. 

— Que besteira, e o que vai adiantar isso se você perder?

— Então Rozan terá um grande Cavaleiro de Dragão em você. E eu morrerei sabendo que morri por aquilo em que eu acredito.

Seu Cosmo então inflamou-se. Sentiu a água mexer-se com violência, adivinhando que, do outro lado, seu inimigo também cobria-se de sua aura poderosa. Era o embate final. A água do rio desviava de seu fluxo onde o cosmo daqueles dois jovens a tocava; não somente evitava seus cosmos, como também se levantava do rio, tumultuada.

Lembre-se pelo que você luta, lembrou-se Shiryu das palavras de seu Mestre. Mas muito mais do que as palavras, ela se lembrou do que Shunrei fazia por ela ou de como Shinadekuro a ajudou a encontrar coragem novamente. Mas o cego guerreiro a fazia lembrar-se de algo ainda mais forte. De sua luta contra o Dragão Negro. Era sobre aquilo.

— Venha, Shiryu! — gritou Dohko à sua frente.

Os cosmos finalmente levantaram as águas; Shiryu nada podia ver, mas sabia que suas vontades não haviam apenas separado o fluxo do rio, como levantado um Tigre e um Dragão de água para se combaterem naquele rio.

— Experimente, Dohko, a Cólera do Dragão!

— Grande Furacão do Tigre!

Shiryu lembrava-se daquele punho terrível, um punho que a amedrontara. A explosão na água a lançou de volta para a parede, onde logo encontrou o chão de pedra à sua frente, sangrando.

Ouvia seu coração bater. Batendo novamente.

Seu nome foi chamado das margens. Era a voz de Shunrei, preocupada com ela.

Seu coração batendo lhe trazia paz.

Shiryu levantou-se e caminhou para dentro do rio; procurou na margem baixa e encontrou o corpo machucado do amigo, que tomou em seus braços.

— Dohko. — chamou ela.

— Excelente, Shiryu. — falou o rapaz com a voz falha. — Eu perdi.

— Não. — interrompeu Shiryu. — Se o seu braço não estivesse quebrado, eu não teria nenhuma chance.

— Está errada novamente. — falou Dohko, imitando a voz do Mestre Ancião

Shiryu experimentou sorrir com Dohko nos seus braços.

— Não, Shiryu. — tornou a falar ele. — Você venceu, pois a sua força vem do motivo pelo qual você luta. Você não luta para se vingar ou para ser a mais forte. 

Dohko olhou, pois só ele ali podia olhar, e viu que nas margens do rio estavam o Mestre Ancião, Shunrei e Shinadekuro.

— Você coloca a sua incrível força para lutar pelo que você acredita, pelas pessoas que ama. — falou Dohko, dolorido. — Você é digna de vestir a Armadura de Dragão.

Tossiu sangue na água e Shiryu a segurou mais forte.

— Dohko. — ouviram os dois na água a voz grave e velha do Mestre Ancião. — Agora você entendeu. Há muitos anos que espero por isso.

Ele também entrou no rio para estar ao lado deles.

— Foi por isso que o chamei aqui. — confessou o Mestre finalmente. — Você é novamente meu aprendiz. E esse é o último ensinamento que eu tenho para vocês dois, meus discípulos amados.

Shiryu experimentou chorar.

— Obrigado, Mestre. — falaram os dois, um de cada vez. 

E, no meio do rio, Shiryu não podia enxergar, mas dentro de sua escuridão viu a aura do Mestre Ancião separando o fluxo do rio. Mas ver talvez não fosse a melhor definição. Da mesma forma que não havia realmente visto Perseu em sua batalha, também não podia ver o Cosmo de seu Mestre. Mas sem dúvidas que o sentia plenamente.

E não gostaria de estar em nenhum outro lugar naquele momento que não fosse ao lado de seu Mestre e seu velho amigo.


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Notas finais do capítulo

SOBRE O CAPÍTULO: Falei pra não esquecerem da Lunara Andrômeda Negra, ela voltou. =) E além dela, eu queria muito explorar o fato de Shiryu ficar cega, mas ter enfrentado um Cavaleiro de Dragão cego na batalha contra os Cavaleiros Negros. Faria todo sentido trazer ele de volta para mostrar que nem tudo estava perdido só porque ela não podia enxergar. A ideia de chamar Okko de Dohko vem do fato que a raiz dos dois nomes é a mesma: tigre. É um pouco tonto que eles tenham nomes diferentes, então criei essa ideia de que Dohko deu à ele seu próprio nome. Acho bacana, hehe.

PRÓXIMO CAPÍTULO: A FORÇA DO ÓDIO

Shaina está cheia de ódio e violência contra Seiya, que encontra-se internado novamente, quando são surpreendidos por um Cosmo de Ouro.



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