Os Cavaleiros do Zodíaco: A Lenda de Seiya escrita por Masei


Capítulo 35
Um Conto Chinês


Notas iniciais do capítulo

Shunrei tenta fazer de tudo para que Shiryu sinta-se bem em sua nova vida, mas a chegada de um antigo rival faz com que Shiryu perceba que perdeu muito mais do que a visão.



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 A grama verde-brilhante dos picos de Rozan estava especialmente bonita naquele tempo, as árvores retorcidas em seus troncos com lindas armações de folhas. As quedas de água poderosas e espalhadas pelos rios livres de neblina naquela estação do ano. Uma fumaça seresteira escapando de uma pequena chaminé de uma pagoda erguida no meio de um pico distante.

E dentro dela a mais profunda escuridão.

As cores vibrantes dos ligustros e áceres vermelhos ao redor perdiam-se na soleira de uma porta de correr. A porta correu e dela saiu um velho muito enrugado, caminhando em dificuldades com a ajuda de uma bengala; sua barba quase tocando-lhe os joelhos era praticamente a única coisa que se via debaixo de um enorme chapelão de bambu.

A casa perdia ainda mais cor quando o velho a deixava. Na cozinha, trabalhava feliz uma menina, cuja voz era ainda a única cor que uma pessoa muito enferma poderia apreciar, afundada em seu poço perdido.

Ouvia, noite após noite, a voz de seus amigos lhe chamarem; suas mãos vacilarem tateando o vazio, tropeçando em seus erros e angústias para quase sempre acordar sobressaltada de um pesadelo. Ofegante. Triste.

— Shiryu. — falou a voz. — Teve outro pesadelo?

Era Shunrei, a única cor que ainda via.

Não respondeu, pois sabia que Shunrei ficava sempre preocupada com suas noites mal dormidas.

— Preciso trocar seus curativos.

Dentro de si, Shiryu se sentia muito mal por ela, pois desde que voltara para casa, Shunrei, muito comovida, buscou conhecimento em regiões vizinhas; lia dia após dia guias e antiguidades em busca de qualquer coisa que pudesse ajudá-la. E nenhuma diferença fazia.

E lá estava ela acordando para mais um dia. Shiryu colocou as mãos na nuca e desamarrou as faixas cuidadosamente colocadas por Shunrei.

— Sente-se melhor? — perguntou ela.

— Sim. Muito obrigada.

Tinha os olhos ainda, diferente da bodisatva da Compaixão em sua história contada para Saori; mas os olhos que tinha, se não podiam enxergar nada, certamente lhe causavam muito desconforto, pois eram ainda muito sensíveis depois do procedimento cirúrgico. Sentia sempre muita dor.

No fundo, ela sabia que Shunrei buscava um jeito de fazê-la enxergar novamente. Não era apenas aliviar a sua dor que ela buscava, mas devolver-lhe todas as cores.

As dores ela conseguia realmente resolver e por isso Shiryu era muito grata.

Ainda que nada pudesse ver, Shiryu não sabia explicar, mas tinha certeza de que, ao saber que seus curativos e ervas haviam funcionado, Shunrei sorria. Como se o ar se movesse de forma quase imperceptível quando a garota estava animada.

— Hoje eu vou até o pequeno lago de Luhua. — falou ela. — Dizem que crescem ali ervas que podem te ajudar.

— Shunrei… — começou Shiryu. — Sou muito grata a você. Mas…

— Não comece novamente, Shiryu. — disse a amiga, comovida.

— Nem o Mestre Ancião sabe como seria possível curar meus olhos. Você também sabe disso.

Ela ouviu como a respiração de Shunrei vacilou. A tábua de madeira rangeu, e Shiryu sabia que isso acontecia sempre que a amiga entrava e saía de seu quarto; não saiu rápida, colérica, mas calmamente, encolhida. Voltou, aí sim mais firme.

— Não desista! — falou ela. — A Xiaoling e os outros devem estar esperando boas notícias suas. 

Shiryu lembrou-se de Xiaoling, que a havia trazido até sua casa; a viagem toda contando bobagem, a fazendo rir, puxando sua mão no trânsito e, em último momento, também explicando com muita dor o que havia se passado com ela para o Mestre e Shunrei.

— Não pode desistir só porque parece difícil. — falou a amiga de vez.

Sentiu como Shunrei se aproximou, colocou a mão em sua mão que repousava na cama e a trouxe perto de uma caneca morna. 

— Vamos, beba isso que vai ficar menos chata no resto do dia.

Shiryu experimentou sorrir e sentiu o ar deslocar-se com o sorriso de Shunrei. Seus dedos, no entanto, tatearam e vacilaram a pegada na caneca, que caiu de suas mãos e rolou molhando os lençóis para, finalmente, quebrar-se no chão em muitos pedaços. A tudo isso Shiryu pôde apenas adivinhar pelos barulhos da caneca rolando, a água absorvida pelo tecido, e então o barulho agudo da porcelana que se quebrava, seca.

Shunrei nada falou, mas Shiryu percebeu claramente como havia segurado a respiração.

Sentiu-se péssima. Triste, e seus cabelos esconderam seus olhos inúteis.

Não podia segurar uma xícara. Não podia ir lá fora, ou cairia no rio. Não podia servir-se. Não podia sequer levantar da cama.

Tudo mentira, mas era como se sentia naquele instante.

Não podia recolher os cacos de sua vida.

 

—/-

 

Dias se passaram e o bom humor de Shunrei invadia a escuridão de Shiryu e a fazia rir dia ou outro. O Mestre Ancião, no entanto, como percebeu Shiryu, pouco havia deixado sua vigília debaixo da cachoeira. Dias e noite após noite, ele ficava imóvel diante das quedas de água feito uma pedra. Por vezes, Shunrei achou que ele fazia aquele tipo de coisa só para dar razão ao nome que davam aos Cinco Picos Antigos. O tomava por teimoso sempre que podia e parte dos risos de Shiryu se davam quando Shunrei ralhava qualquer coisa com o velho.

Mas ela também deixava sempre ao seu lado, na pedra, uma panelinha quente de arroz e legumes frescos, que recolhia ao cair da noite sempre vazia. Desde que Shiryu havia retornado com a terrível notícia de que não mais poderia enxergar, o Mestre pouco havia falado e agora parecia esconder-se naquela vigília sem sentido.

— Eu não entendo. — falou Shunrei certa noite. — Você aqui precisando de ajuda e o Mestre fica dia após dia olhando aquela cachoeira.

— Eu sei que o Mestre também sofre. — disse Shiryu. — Eu tenho certeza de que ele está procurando dentro de si uma forma de me ajudar também.

— Eu não entendo nada disso. — falou Shunrei, colocando uma panela de bambu à frente de Shiryu, que viu-se invadida por uma fome enorme ao sentir o aroma delicioso daquele arroz.

— Shunrei, sua comida está ainda mais deliciosa. — falou ela.

— Ora, Shiryu, quer dizer que minha comida é feia?

— Não! — corrigiu-se logo ela. — Não foi isso que eu quis dizer.

 

E sentiu como a amiga largou um sorriso bonito que não podia ver.

Juntas jantaram. Shunrei, assim como ela, também havia sido abandonada na região das montanhas ainda muito pequena e o Mestre a acolheu em seu pequeno retiro. Assim como havia feito com outras crianças pelo curso de sua longa vida, como as duas vieram a saber mais tarde. Muitos deles cresciam e então mudavam-se pelo mundo, dizia ele.

Nos últimos anos, no entanto, sua vigília e sua velhice pareciam ter-se agravado, portanto Shiryu na verdade fora a última criança que ele abrigou naquele retiro afastado. Shunrei era mais velha que ela por pouca coisa, e ali já estava quando a futura amiga apareceu. Ajudavam-se no que podiam e quando a adolescência chegou em sua vida, Shiryu teve sorte, pois Shunrei estava ali e a ajudou muito. Shunrei teve de lidar com os conhecimentos antiquíssimos do velho Mestre desesperado, pobre menina.

O jantar estava realmente ótimo, mas vazio, sem a presença doce e bem-humorada do Mestre. Àquela altura, Shiryu já tirava seu prato e levava até a pia da cozinha; tarefa simples que, para ela, demorava uma enormidade. A primeira vez que não quebrou a porcelana foi de grande alegria para Shunrei. E para ela também.

 

—/-

 

Certa tarde quente, Shunrei levou Shiryu pelos braços até um rio baixo muito bonito em que costumavam ir nadar quando o tempo estava bom. Como estava naquele dia. O barulho das folhas dançando nas árvores, os pássaros e animais na escuridão eram ainda mais nítidos para Shiryu, que descobriu detalhes que talvez nunca havia percebido antes. Como era rica a música daqueles picos.

Tirou seus sapatos e sentou-se em uma pedra com os pés descalços dentro de um rio que, lembrava-se bem, era cristalino, de modo que podia ver todos os peixes que nadavam contra a correnteza em certas épocas do ano. A água estava refrescante.

— Você trate de não olhar, ouviu? — disse Shunrei para ela, quando imediatamente percebeu o equívoco. — Ah, Shiryu… Me desculpe, eu não quis...

— Está tudo bem, Shunrei. — sorriu Shiryu. — Nada que eu já não tenha visto.

Shunrei jogou água na amiga, protestando contra aquele chiste, e foi assim reclamando que ela despiu-se inteira. Shiryu nada pôde ver, mas sabia, pois era sempre assim. E suas roupas perfumadas junto de uma toalha felpuda, ela deixou ao lado de Shiryu antes de pular na água. E pulava de lá pra cá.

— A água está ótima, Shiryu!

— Tome cuidado, Shunrei. — alertou a amiga.

— Você devia entrar um pouquinho. — falou ela.

— Ai, Shunrei, você vai me molhar, não é? — adivinhou ela.

E, com efeito, Shunrei saiu do rio e abraçou Shiryu, deixando-a toda molhada, sob protestos e sorrisos. Assim ficaram com saudades uma da outra.

— Vai ficar tudo bem, Shiryu.

Shiryu pensou que ficaria mesmo. Sentiu o beijo na bochecha que ganhou de Shunrei antes do abraço se abrir e a garota pular de volta no rio. Ela estava com frio, adivinhou Shiryu, escutando a garota tiritar levemente antes da água espalhar com seu mergulho.

— Não quer sair?

— Só mais um pouco. — disse ela, distanciando-se para nadar no rio.

Sentada, Shiryu buscou com as mãos ao seu lado a toalha para deixar preparada para Shunrei, quando sentiu nos pés submersos na água, algumas folhas enroscarem em seu calcanhar. Não deu tanta bola e colocou a toalha em cima de seu colo. Um galho então enroscou-se entre seus dedos e Shiryu colocou a mão na água para tirá-lo. A correnteza parecia forte.

E então percebeu que não ouvia mais os mergulhos e brincadeiras da amiga.

— Shunrei? — chamou Shiryu. — Shunrei!? — tornou a chamar agora mais preocupada.

Ficou em silêncio para buscar na escuridão de seus olhos qualquer sinal de sua voz, de suas brincadeiras, ou qualquer perturbação na água.

— Shunrei, se estiver brincando comigo, não faça isso. — Shiryu já estava preocupada.

Levantou-se tirando os pés do rio, chamando pela amiga a plenos pulmões. Corajosa, Shiryu entrou na água e caminhou por aquele trecho do rio que lhe batia no alto da coxa; suas mãos buscavam Shunrei, na vã esperança de que ela estivesse brincando com ela para fazê-la entrar no rio. Já odiava a brincadeira.

Então escutou mergulharem no rio com um grande alvoroço; Shiryu virou-se para a direção em que havia escutado e novamente chamou por Shunrei. Ninguém lhe respondeu, mas ela ouviu, atenta, que assim como alguém havia mergulhado, alguém havia saído do rio e caminhava em sua direção.

Shiryu virou-se até a margem e, tateando com seus braços, também conseguiu sair da água.

— Não se preocupe com Shunrei. — falou uma voz jovem, mas com trejeitos muito familiares para Shiryu. — Ela está apenas inconsciente, mas ficará bem.

— Dohko? — perguntou Shiryu. — É você, Dohko?

O rapaz não respondeu e Shiryu adivinhou, pelos passos e pelo peso, que ele havia deixado Shunrei deitada em alguma encosta perto.

— Sim. — falou ele novamente. Sua voz era jovem, mas muito mais madura da voz de criança que tinha antigamente.

Dohko era um antigo rival de Shiryu de seus tempos de criança, também treinado pelo Mestre Ancião.

— O que o traz de volta? — perguntou Shiryu, que lembrava-se das infelizes circunstâncias de sua partida, mas então percebeu que precisava, primeiro, lhe agradecer. — Não, me perdoe. Obrigada por ter salvo Shunrei, Dohko.

— Não há porque agradecer, Shiryu. 

Shiryu sentiu então uma malícia naquela voz que ela bem conhecia, embora agora tivesse contornos mais endurecidos. Claramente, em sua escuridão, Shiryu notou que à sua frente Dohko ascendia um cosmo forte e duro. Ela colocou-se em guarda.

— Contam por aí que a Armadura Sagrada de Dragão está vaga. — falou ele, ameaçadoramente. — Pois vim ter o que era para ser meu. Esqueceu de sua promessa, Shiryu?

Ela colocou-se em guarda e olhou o vazio à sua frente.

— Se não vai me atacar, eu começo, como sempre! — falou a voz do rapaz.

Shiryu escutou com clareza que seu cosmo rachava algumas pedras ao seu redor; tudo que ela pôde fazer foi colocar seus braços à frente antes de ser arrastada por uma lufada de vento gigantesca para bater com violência contra um paredão atrás dela. A pressão do cosmo de Dohko, que Shiryu não pôde adivinhar como se manifestava, a pressionava para dentro da pedra.

Pensou que era a primeira vez que sentia medo.

— Pare com isso! — ouviu a voz de Shunrei chorar. — Pare! Ela não pode enxergar!

Dentro de si, Shiryu sentiu uma enorme revolta, mas não podia sequer pedir à Shunrei que nada dissesse. Sentiu então como o cosmo de Dohko amainou-se, fazendo com que seu corpo deixasse o fundo daquele rochedo para cair no chão; dentro de sua boca, o gosto metálico do sangue.

— O que você disse? — perguntou Dohko.

Shunrei correu até Shiryu, abraçou-a no chão e buscou limpar seu sangue da boca. Shiryu escutou os passos de Dohko virem até ela.

— Shiryu. Os seus olhos… 

— Não. — protestou Shiryu. — Não importa. Por que parou, Dohko? Ainda não está terminado! — disse ela. — Não tenha pena de mim!

— Você está errada. — falou Dohko. — Você não é a Shiryu que eu conheci.

Tomada de revolta, Shiryu quis apagar aquilo de seu peito; se os olhos nada podiam ver, seu coração a tudo podia sentir.

— Seu cosmo começou a tremer antes mesmo de começarmos a lutar. Você perdeu seu espírito de luta. — falou Dohko. — Não precisamos continuar, pois já temos o resultado.

E claramente ouviu Dohko virar-se para partir.

— Não, Dohko! Espere! — pediu Shiryu, em vão. — Não vá, Dohko! Não tenha pena de mim.

— Pare com isso, Shiryu. Por favor, pare. — pediu Shunrei ao seu ouvido.

Mas ela sequer precisava pedir, pois Shiryu não tinha condições de se levantar. E não teria condições de encontrar Dohko se pudesse.

Lamentou, derrotada.

 

—/-

 

Com o sol acima de suas cabeças em uma tarde muito parecida, Dohko e Shiryu estavam à beira daquele mesmo rio. O garoto esmurrava pedras a torto e a direito, destruindo-as com certa facilidade e convidando Shiryu a fazer o mesmo, como se a provocasse.

— É moleza! — falou o garoto. — Venha tentar, Shiryu!

— Certo. Agora é a minha vez. — respondeu a garota animada.

O toque de uma bengala na pedra, no entanto, chamou a atenção dos jovens.

— Parem vocês dois. — disse a voz rouca de um velho. — Não façam isso.

— Mestre? — assustou-se Shiryu, parando imediatamente o que estava fazendo.

— Só queremos testar nossa força. Nem isso a gente pode fazer? — perguntou Dohko.

— Ora, mas não precisamos de nossos punhos para quebrar as rochas. Podem usar um cinzel ou até mesmo um martelo… — o garoto Dohko imediatamente perdeu a paciência.

— Ai, lá vem mais um dos seus sermões. — reclamou o garoto, entrando no rio para se refrescar. 

Bebeu da água fresca e então chutou o fluxo do rio, entediado. O Mestre Ancião deixou escapar sua rouquidão pensativa antes de falar novamente.

— Se quer tanto um desafio, jovem Dohko, porque não tenta desviar o curso do rio com seu punho?

O garoto olhou para o velho, confuso mas animado.

— Desviar o curso do rio é impossível, Mestre. — falou a garota ao lado de seu Mestre.

— Impossível, é? — zombou Dohko olhando para as águas que corriam abaixo dele. — Pois veja só isso.

Dohko caminhou cheio de si para o meio do rio, em uma parte rasa, mas de forte correnteza.

Olhou para as águas cristalinas ao seu redor e socou com a força de quem podia destruir pedras; a água esguichou, mas seu curso ficou inalterado. Abalada, mas nem por um instante fora de seu fluxo. A água se espalhou e o molhou por inteiro. Da margem, Dohko escutou o velho largar de dar risada.

— Isso foi só bater na água. — disse a voz envelhecida. 

Dohko ralhou os dentes e tentou ainda outras quatro vezes, sempre com o mesmo resultado, molhando-se cada vez mais. O velho então olhou para Shiryu com um sorriso no rosto.

— Já conseguimos fazê-lo tomar o banho da semana. — falou, e então ofereceu à garota sua bengala. — Shiryu, veja que o punho de Dohko pode destruir a rocha, mas nada pode fazer contra o curso do rio.

O velho entrou no rio; ele tinha a mesma altura de seus discípulos, já envelhecido e encolhido pelos anos, e foi colocar-se ao lado do encharcado Dohko. 

— É impossível fazer isso. — falou o garoto, olhando para seus fortes punhos.

O velho Mestre passou por ele e foi até um ponto do rio em que os dois pudessem vê-lo claramente. Dohko e Shiryu viram como uma aura solar envolveu o corpo envelhecido do Mestre Ancião; ele levantou uma das mãos espalmadas e simplesmente a colocou perto da superfície da água à sua frente. A água simplesmente começou a evitar uma pequena área formada por sua mão, de modo que o fluxo do rio lentamente desviava-se dela.

A tal ponto que o Mestre Ancião abaixou-se, afundando sua mão até a pedra do fundo do rio, e a correnteza simplesmente o evitou por completo, formando um vão no meio da água. Dohko e Shiryu olhavam surpresos e maravilhados. 

— Tem um buraco no rio. — comentou Shiryu. 

— Shiryu. Dohko. — chamou o Mestre Ancião. — Não se orgulhem demais da força de seus punhos. Ainda precisam descobrir onde reside a verdadeira força de vocês.

E então sua aura apagou-se e o rio voltou à sua correnteza normal.

— Vocês ainda têm um longo caminho pela frente. — disse rindo no meio do rio.

 

—/-

 

Outro dia amanheceu nas montanhas e Shiryu sequer esperou para trocar os curativos da noite; uma noite sem sono algum, pois não pôde grudar os olhos um segundo sequer. No fundo, tanto fazia se os deixava abertos ou fechados. Tudo do que se lembrava, sem ver cor alguma, era a pena de Dohko sobre si. Era esquecer-se de quem ela era.

Por isso, pela manhã Shiryu agradeceu a preocupação de Shunrei e marchou decidida para fora de casa.

— Ora, Shiryu. O que pretende fazer? — perguntou a amiga segurando-a antes de sair.

— Shunrei. Você tudo faz por mim, mas eu não consigo sequer protegê-la de nada. — lamentou-se ela.

— Não importa, não pense assim. — pediu Shunrei.

— Não é só isso. — continuou ela. — Dohko foi capaz de sentir aquilo que eu tinha mais medo. É uma vergonha enorme viver assim. 

— Não diga isso, Shiryu. Eu te imploro. — pediu Shunrei, abraçando-a pelas costas. — Esqueça as lutas. Esqueça tudo isso e tenha uma vida tranquila como as outras pessoas. Eu tenho certeza que a Xiaoling e os demais vão entender se os seus olhos não se curarem. Eu serei os seus olhos. Para sempre. Por favor, Shiryu.

Shunrei pedia de forma sentida, e ainda que não pudesse ver Shiryu pôde sentir suas lágrimas em seu pescoço. Mas em sua mente falava repetidamente a voz dura de Dohko. Você não é a Shiryu que eu conheci. Não era mais a mesma. Um cosmo que tremia. 

Dohko tinha razão.

Shiryu desvencilhou-se do abraço de Shunrei e, sozinha, trôpega e tateando no ar, foi decidida por uma trilha, da qual conhecia cada centímetro, até onde sabia estar seu velho Mestre.

— Mestre Ancião. — disse ela sem vê-lo, mas com a absoluta certeza de que estava ali, pois podia sempre senti-lo.

A princípio, somente as águas se faziam ouvir naquela enorme cachoeira. Mas então ele falou.

— Estou aqui, Shiryu. — sua voz muito grave e extremamente rouca, como se há tempos não dissesse uma palavra.

— Dohko retornou. — falou ela.

Ouviu a respiração pesada de seu Mestre, mas ele nada disse a mais.

— Ele me desafiou pela Armadura de Dragão. — continuou Shiryu. — E eu acredito que seu desafio seja justo. 

— Então está feito. Entregue-lhe a Armadura. — falou muito seriamente seu Mestre, e aquelas palavras lhe rasgaram o peito de tristeza.

Ela ficou boquiaberta à sua frente, engoliu suas palavras e tropeçou de volta para a pagoda onde Shunrei a aguardava na soleira da porta.

— Shiryu. — começou ela ao ver que a amiga chegava muito triste. — Você tem uma visita.

Shiryu parou antes de entrar dentro de sua casa, pensando que ali era o final do seu destino como uma Cavaleira de Atena.

 

—/-

 

Em um bosque de árvores altas, Shiryu treinava seus socos e chutes contra troncos muito grossos; saltava de galho para galho e testava a sua força contra a natureza. Duas árvores tremeram de tal maneira com sua força que vieram a cair mais adiante.

— Excelente. 

Shiryu olhou para trás e viu que Dohko a observava treinar encostado contra uma árvore e um pirulito na boca. 

— Está treinando sob orientação do Mestre? — perguntou ele. — Já não é bom o suficiente?

— O Mestre já te avisou muitas vezes, Dohko. — falou ela se aproximando. — Você foi pra cidade de novo arrumar confusão, né?

— É muito melhor do que ficar aqui socando e chutando árvore. — disse o menino. — Lembre-se, Shiryu: As árvores não revidam.

Shiryu respirou fundo, cansada do tanto que o garoto metia-se em confusão e virou-se para continuar o treinamento. O garoto então cuspiu o pirulito na grama e aproximou-se dela.

— Deixe-me lhe mostrar como estou forte. Vamos, Shiryu!

Mas a garota sequer ficou em posição de batalha e disse calmamente.

— Não podemos lutar sem a permissão do Mestre Ancião. — o garoto se revoltou.

— Mas de novo isso!? Sempre essa história, Shiryu! Ele nem está aqui! Podemos fazer o que quisermos. — e então colocou o dedo no nariz de Shiryu. — Ou será que tem medo de mim?

Shiryu então segurou aquele dedo e, de maneira leve, o entortou para que ele se afastasse. Aquilo aumentou ainda mais a bronca de Dohko com ela e, com destreza, o garoto acertou duas vezes o rosto de Shiryu, esquerda, direita, e virou um chute poderoso que parou a centímetros do nariz da garota. Segurou o chute no ar, demonstrando um enorme equilíbrio.

— Já se cansou? — perguntou Shiryu com um fio de sangue escorrendo de seu nariz.

Dohko então recolheu sua perna, irritado.

— Você é uma chata! — disse ele e dali saiu.

Voltaram a se encontrar tarde daquele mesmo dia, diante da cachoeira e do velho Mestre Ancião. Shiryu nunca havia presenciado seu velho Mestre tão furioso; a sua voz, que era grave e por vezes rouca pelos anos de vida, agora era firme e colérica com Dohko. Por muitas e muitas vezes ele havia sido advertido para evitar causar confusão na cidade, mas passava o tempo e o garoto descia e batia em meninos da sua idade e até nos mais velhos. 

Dohko não imaginaria nunca o que aconteceria. Até que aconteceu.

— Como assim, estou banido do treinamento de Cavaleiro?! — perguntou, revoltado, para o velho Mestre Ancião. — Por quê?

— Deveria perguntar a si mesmo. — falou o Mestre de costas para os dois.

— Você contou pra ele, sua fofoqueira? — ralhou Dohko para Shiryu.

— Shiryu nada disse sobre você. — falou o Mestre tomando a palavra. — Pois todos da região já o conhecem muito bem. O único que não sabe quem você é, é você mesmo.

— Pois eu vou descer e bater em todos aqueles moleques que ficam me dedurando! 

— Cale-se! — pediu o velho Mestre Ancião.

— Então por quê? Acha que Shiryu é melhor do que eu? Não pode ser por isso. Ela sempre perde pra mim! — falou Dohko.

— Você pode ser mais forte que Shiryu, mas isso não basta!

Dohko tentava compreender os motivos.

— Por mais que treine, não conseguirá usar a Armadura de Dragão. — disse o Mestre Ancião de forma misteriosa.

O garoto revoltou-se e, como se falasse contra uma parede de pedra, chamou o velho de nomes, disse impropérios, acusou Shiryu e ao próprio velho antes de deixar aquele lugar correndo em profunda revolta.

Longe dali, nos degraus que levavam à uma grande ponte de madeira para deixar o território dos monastérios, Shiryu alcançou o garoto e colocou-se à sua frente. Viu como de seus olhos escorriam as lágrimas que havia chorado enquanto descia pela montanha.

— Dohko.

— Eu voltarei, Shiryu. Um dia eu voltarei. E nesse dia eu vou te desafiar pela Armadura de Dragão!

— Pois eu estarei lhe esperando. — prometeu ela. 

— É uma promessa. Uma promessa entre dois guerreiros. — jurou Dohko.

— Não. Entre dois amigos. — corrigiu ela.

— Não vou esquecer!

E chorando deixou Shiryu nas montanhas para uma vida inteira que se abriria à sua frente.


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Notas finais do capítulo

SOBRE O CAPÍTULO: Eu adoro Shiryu x Okko no desenho original e eu quis trazer essa prova de coragem para minha história. Chamei o Okko de Dohko e o próximo capítulo vai explicar os motivos. =)

PRÓXIMO CAPÍTULO: O CORAÇÃO DE ATENA

Saori compartilha com Mayura e seus amigos seu misterioso encontro no Santuário. Ela também quer saber de Mayura como foi que ela a encontrou tantos anos atrás.



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