Dublê de Corpo escrita por Clarisse Hugh


Capítulo 1
Dublê de Corpo


Notas iniciais do capítulo

Estava ouvindo minhas músicas no aleatório e, quando me dei conta, estava analisando a letra dessa música enquanto a escutava, achei perfeita para o Simon e Baz e precisei escrever ♥



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Quando pousam na Inglaterra após a desastrosa viagem para os Estados Unidos, Simon e Baz ainda não conversaram propriamente sobre sua discussão acalorada na praia do outro lado do Atlântico.

Durante todo o voo, enquanto fingia dormir, na mente do antigo Escolhido só ecoa uma única frase – “Como pode não enxergar que eu não seria feliz em nenhum lugar sem você?”— e aquilo provavelmente lhe tirara o chão. Ou talvez finalmente tenha oferecido solo firme para aterrissar.

Simon não consegue descrever as sensações que subitamente tomam seu corpo. É estranho, como um misto entre pensar em tudo e nada. Um zunir nos ouvidos, eletricidade constante correndo pelos braços e se acumulando na ponta dos dedos. Um aperto no peito ao sentir a coxa de Baz tocando a sua no banco de trás do táxi que os leva até o apartamento que divide com Penny.

Suas pernas estão em contato, mas nada além delas, e uma ansiedade gigante lhe corrói pensando nesse perto tão longe. Na tristeza imensa que seria perder de vez esse fio de conexão. Há pouco tempo ele estava tão seguro de saber o que era certo, mas agora...

Agora, suas íris ardem com a imagem do perfil do herdeiro dos Pitch encarando desolado a paisagem em constante movimento através da janela esquerda do carro, como se estivesse derrotado.

Aquilo não podia ser.

Já provara ter sido o pior escolhido que alguém poderia escolher antes, mas agora não mais. Não se a pessoa disposta a escolhê-lo fosse Tyrannus Basilton Grimm-Pitch.

Tão logo destranca as portas do apartamento, Penny arrasta Shepard para seu quarto, ocupada em atualizá-lo sobre os detalhes de Watford enquanto tenta contatar sua mãe para entender melhor a confusão em que iriam se meter na sequência. Sozinhos na sala, Simon se senta na ponta do sofá e encara a televisão sem, de fato, vê-la. Ali, com a vista embaçada, começava a enxergar claramente e Baz...

Baz permanecia de pé, claramente desconfortável. Perdido.

— Bem, eu er... Estou cansado da viagem. – E, embora até fosse verdade, ambos sabiam que a situação ia muito além. – Acho que o melhor talvez seja ir até o prédio da Fiona tomar um banho...

Ainda sem conseguir falar, sem saber exatamente o que dizer, Simon sinaliza o banheiro de seu próprio apartamento com um aceno da cabeça e espera que essa minúscula oferta – de paz, de trégua, de algo a mais – seja suficiente.

Sobrancelha levantada, claramente balançado, o vampiro parece buscar algo no rosto de seu antigo colega de quarto e, se não encontrou exatamente o que esperava, a emoção exibida nos olhos azuis pareciam ser suficiente. Ele suspira, abrindo o zíper de sua mala de mão para agarrar a primeira muda de roupas limpas que encontra, e se dirige ao banheiro.

— Está bem. Eu já volto, Snow.

O som do chuveiro sendo ligado não sobressalta o rapaz de asas de dragão e ele se concentra no ritmado cair das gotas, respirando profundamente, tentando encontrar seu próprio reflexo na superfície da mesa de centro. Minutos depois, os quais podiam muito bem ser uma vida inteira, sua visão periférica capta um objeto esquecido no canto do cômodo e, como que acometido por uma espécie de transe, ele se levanta e caminha em sua direção.

Trata-se de um violão caramelo de cordas gastas, reminiscência de tempos mais tranquilos quando, mesmo com o poder de uma bomba nuclear pulsando por sob sua pele, sua maior preocupação fora aprender alguns acordes para acompanhar Penélope e Agatha em suas cantorias em volta da fogueira nos finais de semana dos meses mais frios em Watford. A madeira clara exibe sinais de uso, cortesia de seu jeito desastrado, mas há uma infinidade de marcas anteriores, oriundas de Ebb, a dona anterior do instrumento.

Era um alívio não cair no choro instantaneamente ao lembrar-se dela e, para ser sincero, os últimos tempos haviam lhe tirado tanto do eixo que Simon tem a clara impressão de ter estado na presença daquele violão sem nem sequer se recordar quem o havia presenteado por meses e meses.

Naquele dia, entretanto, ele se lembra e a memória não machuca como antes. Volta a se sentar no sofá, acomoda o corpo do instrumento em seu colo e arrisca dedilhar suas três últimas cordas. É um pouco como se reconectar a si mesmo e a música perfeita para expressar como se sente lhe vem muito facilmente.

Eu não reconheço mais, olhando as fotos do passado. O habitante do meu corpo, este estranho dublê de retratos. – Sua voz soa hesitante e rouca no silêncio da sala, mas a verdade de cada palavra ecoa alta em si. – Talvez até eu já vivesse em algum corpo emprestado. Esperando só por você pra reunir meus pedaços.

No fundo era aquilo, não? Não se reconhecer mais e, portanto, duvidar de tudo. Sem ver com clareza quem estivera do seu lado o tempo tudo e, consequentemente, sem entender seus motivos. O porquê alguém escolheria ficar tendo a possibilidade de partir.

Foi tanta força que eu fiz por nada. Pra tanta gente eu me dei de graça... Só pra você, eu me poupei. Será que o tempo sempre disfarça? Tomara um dia isso tudo passa... Desculpa as mágoas que eu deixei.

Todos aqueles dias catatônicos, deitado naquele mesmo sofá, embriagado de falta de perspectiva e medo. Assombrado pela memória de cada uma de suas cicatrizes e temendo batalhas futuras em antecedência, o corpo todo sofrendo daquela dor fantasma.

Eu já dei a outra alma aos bruxos e vampiros. Eu quero que eles façam a festa enquanto eu me retiro. – Aquele verso em especial parecia quase providencial e um riso inesperado lhe escapou pela garganta ao mesmo tempo em que a porta do banheiro se abria vagarosamente, transbordando cautela, como se seu ocupante temesse o que fosse encontrar do lado de fora. – Só você sentiu por mim o que nem eu sentiria. Você foi o meu escudo e eu a própria covardia.

A expressão normalmente tão séria e controlada do mago de olhos cinzentos pouco a pouco se desfazia para exibir uma certa confusão esperançosa e Simon queria que cada um dos acordes lhe assegurassem de que tudo ficaria bem: Você não precisa ter mais medo, Baz. Eu estou de volta. Estou aqui com você, se ainda me quiser.

Foi tanta força que eu fiz por nada. Pra tanta gente eu me dei de graça... Só pra você, eu me poupei.

Uma mecha dos cabelos negros de Baz, ainda úmida, desprendeu-se de detrás de sua orelha e foi assim, muito vulnerável, que tentativamente ele deu um passo para mais perto de seu namorado.

Será que o tempo sempre disfarça? Tomara um dia isso tudo passa... Desculpa as mágoas que eu deixei.

Aquela não era exatamente a desculpa que ele merecia depois de tanto sofrimento causado a cada vez em que Simon o afastara, mas o garoto de pele salpicada de pintas espera que seja o suficiente por enquanto. Quer ter a oportunidade de, igualmente, caminhar um passo de cada vez.

Juntos.

Se você ainda acreditar, eu prometo dublar seu corpo. Te proteger, te poupar das dores, te devolver o amor em dobro. — Ainda não haviam proferido as famosas três palavras em voz alta um para o outro, mas elas estavam em cada pequeno gesto, não? Simon se sentia bobo por não ter percebido antes. – Não se ama, amor, em vão...

Um novo suspiro, dessa vez de alívio, e Baz se prosta de joelhos defronte a seu amado pesadelo ambulante, os olhos de ambos marejados.

Foi tanta força que eu fiz por nada. Pra tanta gente eu me dei de graça... Só pra você, eu me poupei. Será que o tempo sempre disfarça? Tomara um dia isso tudo passa... Desculpa as mágoas que eu deixei.

Com as palmas calejadas do mago com fogo nas veias repousando em seus ombros, Simon finalmente se sente pronto para seguir em frente.


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