Xeque-Mate escrita por Dani, Sannybaeez, Braguinhah


Capítulo 6
Webs - Quando soquei o Lucas




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Os campos verdejantes, amplos e arejados, o aroma adocicado de morango recém colhido se espalhando por todo o acampamento. O som agradável e sutil da correnteza do rio. A agitação constante de crianças e adolescentes correndo por todo lado. As músicas animadas dos meus irmãos de apolo. 

Sim, essa era a minha vida, por quase 18 anos. As coisas ruins, perdas e monstros ficavam do lado de fora, afastados por uma barreira indestrutível. Não vou mentir ou lhes iludir, dizendo que sempre fui feliz, ou sempre estive totalmente seguro, não, mas pelo menos nunca estive sozinho.

Como filho de Apolo, estar cercado de barulho, melodias e algazarras fazia parte do cotidiano, era o tom natural de todos os dias, o sinal de que estava cercado de amor.

Mas quando o que restou foi apenas o silêncio, confesso que nunca me senti tão perdido.

E o silêncio daquela cela fria, parecia ser ainda mais ensurdecedor e gritante.

— Nós deveríamos deixar ela aqui.

Alguém sussurrou, soltando palavras ácidas, mas parecendo transbordar mais mágoa do que realmente raiva na voz.

— Ela não teve culpa.

Outra pessoa respondeu, com a voz ainda mais melancólica.

— Fale isso para os mortos e desaparecidos Laís.

— Isso não é hora para brigarmos Lucas, se acalme.

Lucas pareceu soltar um rosnado.

— Não peça para eu me acalmar Fabrício, você sabe o que acontece quando semideuses se viram contra os outros — A voz de Lucas vacilou por um segundo — Você sabe, eu não quero perder mais ninguém.

— Eu também estou chateado, mas quem está querendo se virar contra alguém aqui, é você Lucas — Reconheci a voz como sendo de Paulo — Você tem que sentar e respirar — Falou, levemente autoritário.

Alguém que imagino ser Lucas, grunhiu, mas não insistiu, bufando por fim, sentando-se de forma barulhenta no chão como uma criança.

E novamente um silêncio desagradável se instalou, enquanto eu permanecia de olhos fechados. Minha cabeça latejava, me sentia tonto, enjoado e dolorido, esse último sendo cortesia do nosso último encontro com monstros, extremamente agradável.

Mas todo o resto era pura ansiedade. San como traidora? Não, isso ainda não parecia, real, ou certo, ou minimamente possível, mas era, aquilo foi possível. Aconteceu.

E agora precisávamos lidar com isso.

Mas, como lidar com o fato de que sua irmã, sua família, foi responsável — Mesmo que de forma não proposital — Por tantas perdas?

Certamente não é uma resposta fácil.

Felizmente fui tirado desses pensamentos amedrontadores e desagradáveis pelo rangido de portas se abrindo, sendo seguidos pelo tilintar ruidoso de um molho de chaves. Passos ecoavam pelo pequeno ambiente de fora da cela, enquanto uma voz de mulher ressonava. Uma voz inconfundível para todos nós, e que me fez abrir os olhos.

— Peço sinceras desculpas pelos meus clientes delegado.

Uma mulher alta, ruiva, com porte de modelo, usando óculos redondos e brilhantes, e de traços quase divinos apareceu em frente às grades. A aura ao seu redor parecia brilhar como se estivéssemos perante a uma versão humana do próprio sol, ou talvez fosse apenas meus olhos se acostumando com a claridade repentina, entretanto, quando se tratava da Bela, era difícil saber.

— Não se preocupe Srta. Cristina, é muito comum termos jovens infratores como eles aqui conosco — O homem barrigudo, baixo e com uma barba desgrenhada e suja com migalhas do que pareciam ser rosquinhas — Só lhes aconselho jovenzinhos, que isso não volte a se repetir, nem todos os policiais são tão toleráveis como eu, principalmente com você — Apontou acusadoramente para Lucas, que estava sentado no canto do cela, perto de um homem de aspecto duvidoso e prestes a aceitar um gole de uma garrafa de aspecto também duvidoso — Eu nunca vi uma ficha tão longa pra alguém da sua idade.

Lucas pareceu levar aqui como um elogio, e deu um sorriso orgulhoso.

Bela suspirou de forma pesada, fazendo o melhor que seu curso de atriz e DNA de Apolo lhe permitiam para esconder toda sua frustração naquele momento.

— Não precisa se preocupar, terei uma conversa séria com eles Sr. Maxon, e mais uma vez desculpe por toda a confusão.

O homem sorriu, abanando descontraidamente com a mão.

— Tudo bem, por sorte ninguém prestou queixa contra eles, e foi apenas uma briga de bar.

Nós olhamos, surpresos e impressionados de como a névoa conseguiu resumir a destruição de uma rua, o aparecimento de dois monstros seminus e deuses vândalos, em uma simples briga de bar.

O homem então se aproximou da cela, puxando o molho de chaves da cintura, e quando estava prestes a abrir para que passássemos, Bela o impediu.

— Espere Sr. Maxon, será que antes posso ter uma palavrinha com eles, a sós — Falou, ressaltando o final.

O delegado pareceu confuso, mas deu de ombros e acenou consentindo, e antes de se retirar, Bela o cutucou novamente.

— Ah, e mais uma coisa, poderia deixar as chaves comigo, assim que terminar lhe entregarei, prometo — Minha irmã sorria simpática, e com um tipo de charme na voz que apenas uma filha de Apolo teria.

O policial sorriu, parecendo prestes a lhe negar de forma educada, mas seu sorriso vacilou, um calafrio pareceu subir por sua espinha e seu corpo amoleceu, ele soltou o molho de chaves da corda presa ao seu cinto e entregou para Bela com uma careta boba.

— Obrigada — Ela respondeu, tão simpática quanto antes.

E o homem simplesmente saiu tropeçando nos próprios pés, indicando que havia finalmente se retirado da sala quando a batida seca de uma porta de metal contra a pedra ecoou, e o sorriso da nossa querida irmã se desmanchou em uma carranca irritada e levemente assassina.

Lucas foi o primeiro a se pronunciar.

— Dessa vez não foi culpa minha.

Se defendeu.

— Você falou isso da última vez, e da última vez tinha sido você.

— Mas dessa vez não foi, pode perguntar… — Bela levantou o dedo o olhando feio, cortando sua fala, mas ele não desistiu — Mas Bela… — Isabela intensificou o olhar carrancudo.

Lucas ainda tentou falar novamente, mas abriu e fechou a boca sem formar realmente algum som, desistindo emburrado, parecendo cochichar insultos para o preso bêbado e quase inconsciente ao seu lado.

Bela respirou, fechando os olhos, para em seguida olhar fixamente e irritada agora para o resto de nós.

— Agora, me falem, exatamente o que aconteceu, não deixem nada de fora.

Fabrício engoliu em seco, Paulo ajeitou sua postura e Laís perguntou.

— Você não vai abrir a grade?

A ruiva riu, de forma sádica.

— Acredite em mim sininho, é melhor para vocês se eu não abrir ainda.

Laís riu levemente assustada, e se sentou quieta ao lado de San.

Eu olhei para meus irmãos ainda calados, enquanto ela esperava que um de nós começasse a falar algo, mas a verdade é que ninguém queria falar nada, ninguém queria falar que San tinha sido responsável pelo o que aconteceu no acampamento.

Entretanto, Bela tinha o direito de saber, afinal era uma de nós. Respirei, e juntei todas as forças que havia conseguido recuperar no breve tempo na prisão.

— Bela, acho melhor você se sentar.

Sem relutar ou questionar, ela arrastou uma cadeira para a frente da nossa cela e se sentou paciente, Paulo, Fabrício e Laís me olhavam como se curiosos pelo o que fosse dizer, preocupados pela versão da história que eu poderia contar e qual seria a reação dela a tudo que aconteceu.

Passei meu olhar por cada um deles, até mesmo por Lucas que parecia ter voltado a sua seriedade irritada, e principalmente por San, que dormia tranquila.

E então as palavras simplesmente saíram.

Falei absolutamente tudo, desde a invasão do acampamento, os combates, os desaparecidos, os mortos…

Falei da profecia, a missão, sobre a cidade, os monstros, Deimos e Phobos e principalmente sobre quem nos traiu. A cada palavra o brilho que Bela emanava parecia sumir, apagar e enfraquecer aos poucos. Ela alternava o olhar entre cada um de nós, e se prendia por mais tempo na pessoa que dormia calmamente no banco de metal gélido.

Sua postura antes rígida e irritada começava a mudar para algo ainda mais tenso, angustiante, desesperado. Bela debruçava-se para frente, com as mãos cobrindo sua boca — que pude ver de relance, estar contorcida por palavras presas — tentando esconder de forma falha o ataque de ansiedade que estava tendo.

Quando finalmente terminei de lhe falar tudo, não sabia o que esperar.

Veja bem, da mesma forma que o Will era como o pai e o Fabrício como o irmão mais velho do chalé, sempre cuidando dos irmãos da melhor forma que podiam, se preocupando com quem saia em missões e quem se machucava em treinamentos, a Bela era tipo a irmã mais velha com complexo de mãe.

Ela já não vivia no acampamento faz quase um ano e meio, era um gênio, terminou em tempo recorde a faculdade de direito e começou a atuar na área de forma independente, sendo ainda bem iniciante, mas sempre conseguindo ganhar os casos que aceitava — grande parte deles sendo referentes ao Luscapeta.

Na época que morava conosco, era a responsável pelos treinamentos ao mesmo tempo que sempre se certificava que estávamos bem seja fisicamente ou emocionalmente, sendo o ombro amigo de todos. Depois que foi embora, a distância sem dúvidas afetou um pouco, mas ainda mantinha contato constante para saber como estávamos, conhecendo os novatos, fazendo visitas recorrentes e sempre que podia mandava presentes.

Eu conseguia imaginar um pouco como ela se sentia em saber sobre toda a tragédia e sobre o controle mental que uma de nós havia sofrido, mas para ela era diferente, a maioria dos mortos ela viu crescer, ela cuidou e acolheu, ela havia guiado por qual área a maioria deles queria seguir, sabia seus medos e segredo mais íntimos, conhecia cada um apenas pelo tom de suas vozes e o ressoar de suas risadas, o barulho deles fazia parte da sua vida e era parte importante da sua felicidade.

Então o silêncio excruciante que havia sobrado era doloroso demais.

Mas mesmo assim ela o quebrou.

— Como ela está lidando com isso?

Minha sobrancelha subiu, expressando uma clara confusão.

— San, como ela está lidando com isso?  — Repetiu.

— Você está falando sério?!

Uma voz furiosa ecoou do fundo do pequeno espaço. Lucas havia levantado em um pulo.

Ele se aproximou a passos pesados da grade, a agarrando furioso como se seus punhos fossem o suficiente para pelo menos entortar aquelas grossas barras de ferro. Bela não se mexeu.

— Quem liga para como ela está lidando com isso Bela?! Isso tudo é culpa dela, eu tô cagando para como ela está se sentindo.

— Lucas…  — Fabrício se aproximou, pousando a mão num dos ombros do nosso irmão.

Fabrício normalmente sempre conseguia acalmar o Lucas, na verdade quase sempre era o único que conseguia essa façanha, entretanto, naquele momento, ele estava falhando miseravelmente.

Com uma jogada de ombro violenta, Lucas fez com que Fabrício desse um passo para trás. Acho que nunca vi aquele pseudo bêbado tão irritado.

Seus olhos tinham uma ferocidade quase animalesca, seu corpo estava tenso, os nós dos seus dedos estavam começando a ficar esbranquiçados dá tamanha força que colocava sobre as grades. Ele estava sério e parecia preparado para arrancar a cabeça de qualquer monstro que aparecesse.

A tensão naquele pequeno cubículo parecia aumentar a cada palavra, eu já estava sentindo o ar faltar dos meus pulmões, meu corpo começando a ficar trêmulo e tudo parecia girar ao meu redor, mas mesmo assim eu tinha que fazer algo.

Me levantei, sentindo minhas pernas bambearem, e a falta de oxigênio só deixava tudo pior. Paulo e Fabrício estavam ao lado de Lucas, Laís se projetava protetoramente na frente de San, enquanto a Bela apenas olhava para nós, como se estivesse esperando o seu momento para falar.

Lucas esbravejava, repetindo como uma fita cassete quebrada a quantidade de mortos, feridos e desaparecidos, detalhou a destruição do acampamento e do chalé.

Enquanto ele falava infinitamente, me aproximei, toquei seu ombro recebendo um olhar furioso e então desferir um soco bem na sua bochecha que o faz cambalear alguns passos.

— Webs!  — Bela elevou a voz.

— Você tá ficando doido Webster?!  — Lucas gritou, já recuperado do susto e do impacto.

— Cala a boca…  — Murmurei.

— O qu…  — Lucas começou a falar novamente.

— Cala a boca!  — Dessa vez fui eu que gritei o interrompendo.

Respirei fundo e continuei.

— Cala boca Lucas, isso não é hora, momento ou lugar para isso, você acha que é só você que tá sofrendo? Você nem estava lá na hora do ataque, você não recolheu os corpos, não juntou as mortalhas, não cuidou dos feridos, não orou pelos falecidos  — Minha garganta ardia e minha visão começava a embaçar  — Você estava por ai, tentando se embebedar e se doendo por perdas antigas e erros passados, quem é você para sentir raiva da San se não estava lá quando mais precisamos?!  — Meu peito ardia, mas não parei  — Ela lutou ao nosso lado, se sacrificou tantas vezes, e você quer culpá-la por algo que nem mesmo ela tem culpa?! Ela foi controlada, usada para fazer coisas que vão atormentá-la por toda a sua vida, mas você só pensa em si mesmo Lucas!

Caminhei até ele, que havia parado de tentar falar algo, e apenas olhava sério, escutando cada coisa que estava presa no meu peito.

— Você…  — Meu fôlego estava começando a sumir  — Não estava…  — Senti meu corpo fraquejar, sendo rapidamente amparado por Paulo que me segurou  — Lá.

E novamente o silêncio predominou, felizmente, esse não durou por muito tempo.

Pois poucos segundos após eu cair exausto, uma batida oca reverberou sendo seguido por um grito frustrado.

Lucas estava com o punho sangrando.

— Você está certo Webs, completamente certo!  — Ele gritava  — Eu não estava lá, estava tentando procurando formas de fugir, não queria voltar para o acampamento e me lembrar de todos os traumas que vivi  — Ele falava irritado, irado, mas em meio em todo aquela raiva, sua voz começava a ficar embargada  — Eu não estava lá por vocês, não pude me despedir de ninguém, falhei como irmão e semideus, não sou herói já faz anos, e eu sei, eu sei que a culpa é minha… Eu só…  — Seu tom de voz havia diminuído, ficando mais ameno, tomando um aspecto mais choroso, ele esfregava o rosto compulsivamente, seu rosto estava vermelho  — Eu precisava tanto culpar alguém, que não queria admitir que a culpa era minha…

Lucas olhou para mim, com tristeza estampada.

— Eu só sinto tanta saudade deles… Eu só queria os meus irmãos aqui.

E após alguns momentos uma outra voz chamou nossas atenções.

Uma voz também chorosa, sofrida como se estivesse com algo preso na garganta.

— Eu também Lucas  — San falava de pé com a ajuda de sininho, sem esconder as lágrimas que rolavam incontrolavelmente por suas bochechas que estavam voltando a ficar rosadas  — Eu também.

Lucas olhou para nossa irmã, como se estivesse em dúvida, contudo, que não durou por muito tempo, ele se moveu rápido, a prendendo em um abraço apertado.

E nesse momento ouvimos o tilintar e o raspar das grades atrás de nós.

Finalmente, estávamos livres.


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