ORBITAIS escrita por sobrehumana


Capítulo 3
Capitulo III: O Canto Das Nereides


Notas iniciais do capítulo

Oi!!!!

É O SEGUINTE: Não betei a fic, é o que temos para hoje, o tempo está corridissimo.
Como diz o ditado : O bagulho é loco e o processo é lento.
To a mais de 2 meses escrevendo e esse cap que, embora mais curto que os anteriores, foi muito mais complicado de escrever por conta de ~certas~ cenas e principalmente pq quis deixar os personagens consistentes com o andamento da história.

Obrigada a todas as pessoas que comentaram, vcs são incríveis!!! Beijos e até o próximo



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 ORBITAIS

CAPÍTULO III:  O CANTO DAS NEREIDES

ou AS FILHAS DE POSEIDON

 

Um marinheiro, atormentado por seus inúmeros infortúnios, colocou-se a remar, à esmo, num mar de escuridão. Rezava a lenda que em meio àquelas águas misteriosas, havia a mais bela e perigosa das criaturas que seria capaz de diminuir a angústia em seu peito. O homem então esperou, à luz da lua nebulosa, para que ela aparecesse. Os olhos brilhantes e alvos surgiram, a face deslumbrante e as presas afiadas estendidas em um sorriso encantador. O que deseja por aqui, tolo homem do mar? Ela perguntou. O que todos desejam, ele respondeu, rever aquilo que mais amo . A nereide riu, desdenhosa. Oh querido, talvez tenha se enganado. O que eu faço é exatamente o oposto . A criatura então desapareceu no breu infinito, deixando o marinheiro sozinho. Ali, na meia luz da noite fria, ele permaneceu imóvel encarando seu próprio reflexo na água.





“Agora as sereias têm uma arma ainda mais fatal do que sua canção,  e é o seu silêncio ... alguém pode ter escapado de seu canto; mas do silêncio deles, certamente nunca. ”

Franz Kafka (1988). “The Complete Stories”, Schocken

 

 


NAVIO ESPACIAL APOLLO XX, EM ALGUM LUGAR NO ESPAÇO 

ANO 2875

“Quanto tempo acha que vai demorar?”

“Pelo estrago nos motores, e a quantidade de peças reserva que tenho - que no momento é quase zero - eu diria que pelo menos três dias.” 

“Consegue consertar os escudos ainda hoje?”

“Se fosse só eu sozinha, não, Capitão. Mas graças a Monty posso acelerar um pouco.”

Bellamy apertou a ponte de seu nariz, sentindo-se extremamente cansado. Apesar de todos terem conseguido se encontrar a salvo no Apollo, os silurianos não perderam tempo ao tentar explodir o navio pelos ares. Se não fosse pela agilidade de Raven e Miller, provavelmente não teriam conseguido escapar a tempo. Em compensação, estavam agora no meio do nada, sem escudos ou motores funcionais, à deriva num espaço que não tinha início ou fim. 

Ele se perguntou o que Octavia diria se estivesse ali. 

Raven bem que avisou sobre os meios de comunicação da tripulação. Nós temos um navio espacial, mas não temos como bancar alguns rádios? Qual é, Bell?

Às vezes a voz de sua irmã soava em sua cabeça como uma parte irritante da sua consciência. Era como se, apesar da distância e meses sem vê-la, eles ainda compartilhassem a ligação que tinham desde criança. 

Clarke passou por ele no convés, seu ombro quase encostando no dele. Ela ainda usava a blusa branca - infelizmente, não mais encharcada de suor - e decotada que o fazia se sentir levemente tonto. Ele preparou-se para o comentário sarcástico, ou qualquer frase passivo agressiva que ela sempre tinha na ponta da língua, mas nada aconteceu. Apenas estava caminhando, e Bellamy estava em seu caminho. Ela não olhou em sua direção, ou levantou as sobrancelhas de modo desafiador como costumava: apenas olhou para frente e continuou sua rota como se ele não passasse de um mero objeto de decoração do navio.

Raven e Miller observavam a cena com expressões divertidas demais para seu gosto. 

“Sabe, Bellamy.” disse seu suposto melhor amigo. "Para alguém que gosta de se gabar por não ter sentimentos, você está sendo um pouco óbvio.”

“Cale a boca e conserte o navio.”

“O que não sai da minha cabeça é como os silurianos ficaram sabendo do mapa.” Raven comentou enquanto mexia em uma parte mecânica com uma chave de fenda. “E eles sabiam que nós tínhamos algo a ver com isso.”

Bellamy franziu o cenho, preocupado. Sim, eles sabiam que o mapa estava com Clarke, e que ela estava com a tripulação. 

“Algum guarda deve ter sobrevivido à explosão do restaurante e colocado um preço em nossas cabeças.” Disse o Capitão. Observou  o espaço nebuloso e quieto à sua volta, e pela primeira vez em muito tempo não se sentiu reconfortado por ele. “Temos que acelerar ao máximo os reparos, ou vamos acabar mortos.”

“Eu posso ajudar.” uma voz disse ao seu lado, o assustando. Clarke havia voltado sem ao menos fazer um barulho, e sua figura pequena era ainda mais surpreendente ao aparecer de supetão. Ela tinha o cabelo curto preso nas laterais, em forma de pequenas tranças douradas com detalhes rosa, e Bellamy sentiu uma enorme vontade de puxá-las.

“Você? Ajudar ?”

“Não ouviu o que acabei de falar? Eu tenho experiência em arrumar bagunças, minha mãe e eu temos um restaurante. Tínhamos , na verdade.”

A expressão de tristeza passou rapidamente por seu rosto, a lembrança da sua casa em chamas ainda fresca em sua memória. 

Bellamy queria falar algo reconfortante, mas tudo o que saiu foi:

“Cuidado, princesa, esse tipo de trabalho costuma render algumas unhas quebradas.” Sinceramente, ele às vezes queria bater na própria cara. Pela expressão de Miller e Raven, não era o único com essa vontade.

Clarke revirou os olhos. 

“Se você consegue sem um cérebro, tenho certeza que algumas unhas não serão um problema pra mim.”

Deus, ela era tão surpreendentemente irritante.

Um riso divertido escapou dos lábios do Capitão. De alguma forma, a maneira rápida e cortante, mas ao mesmo tempo inteligente que ela respondia às suas provocações, afetava diretamente sua capacidade de agir como um ser humano normal.

A risada também pareceu surpreendê-la, e Clarke o encarou de forma estranha, os olhos azuis semicerrados. Os lábios levemente ressecados levantaram-se ligeiramente no canto, a pinta na parte superior esquerda da boca tremendo quase imperceptivelmente. 

Thelonious Jaha. Por que o matou?

Ele não havia esquecido a insistência de Clarke sobre o assunto, e a pequena trégua que eles pareceram chegar parecia frágil demais para trazer o assunto à tona novamente. Com o tempo, ainda iria descobrir o que ela estava escondendo.

Alguém pigarreou. Raven observava a cena com uma expressão provocativa e Bellamy sabia que ela estava se segurando para não fazer um comentário de mau gosto. 

Por que quase atirou em Kane?

Clarke não havia tirado seus olhos dos dele, analisando-o com uma curiosidade contemplativa. Como se cada ação de Bellamy fosse uma prova de sua  completa inocência ou absoluta culpa. 

Ele não era nenhum dos dois. 

“Por mais adorável que seja vocês dois atingindo um nível estranho de amigabilidade, nós ainda estamos presos no meio do nada sem nenhum tipo de proteção então...Se puder, sei lá, flertar enquanto arrumam a bagunça , eu agradeceria muito.”

Um clima de constrangimento se instalou entre os dois, as dúvidas, desconfianças e receio voltando à tona em um turbilhão desarranjado.

Bellamy, porém, não deixou de notar quando as bochechas de Clarke coraram em um tom deliciosamente rosado.

O barulho de construção constante já havia virado um som ambiente no Apollo XX. Todos estavam ocupados com tarefas para consertar o navio, reparando e arrumando a confusão que os silurianos haviam feito. Monty remendava alguns fios de uma placa mãe levemente queimada, tentando salvar o que restava do painel de controle, quando Jasper o interrompeu.

“Seu namorado está te procurando.”

Monty revirou os olhos, tentando esconder o rubor que subia pela pele já corada. O relacionamento com Nathan era...Complicado, no mínimo. Afinal, não é todo dia que seu ex-namorado pirata invade o restaurante da sua amiga à sua procura para ajudar a encontrar a irmã do Capitão mais falado do cinturão.

“Ele não é meu namorado.”

“Mais.”

“O que?”

“Ele não é mais seu namorado...Mas é um status que pode ser alterado.”

Jasper estava parado ao seu lado, apoiado em uma parte do largo painel de controle. Tinha em suas mãos um conversor de energia e, conhecendo seu amigo, não era uma boa ideia estar em suas mãos. Jas tinha a tendência de explodir coisas.

“Por que se importa comigo e Miller? Pensei que estava com raiva de mim.”

Seu melhor amigo o enviou um olhar exasperado. O conversor quase escorregou entre seus dedos, e temendo que caísse no chão e abrisse mais um buraco no navio, Monty o pegou e guardou na caixa de ferramentas ao seu lado antes que o Capitão Blake visse e os jogasse pra fora.

“Eu não estou com raiva de você! Eu estava...irritado. Eu entendo por que escondeu sobre Miller e a Sky Box, mas eu o teria apoiado. Eu o apoio.”

Jasper encarava o chão dessa vez, envergonhado. Após toda a confusão que aconteceu nos últimos dias, eles tiveram pouco tempo para conversar e esclarecer as coisas. Monty estava embaraçado por ter mentido, e por ter colocado eles naquela situação - afinal, se não fosse por ele, não estariam praticamente reféns em um navio pirata que não funcionava no meio do nada.

“Obrigada, Jas. Desculpe por ter mentido e por...Você sabe.”

“Se não fosse você, Blake não apareceria e não teríamos saído do restaurante vivos. Não precisa se desculpar.” 

Os dois trocaram um olhar cúmplice, e Monty sabia que tudo havia voltado ao normal entre eles. 

Jasper acenou com a cabeça para a esquerda, onde Clarke e o Capitão se encontravam reunindo os fragmentos de navio resultantes do encontro com os lagartos em uma pilha num canto do convés. Pareciam quase confortáveis um com o outro, e pela primeira vez conversavam sem brigar.

“O que acha disso?”

Monty deu uma risadinha.

“Cedo ou tarde vai acontecer, tenho certeza. Não vê o jeito que Clarke olha pra ele, como se Blake fosse o pedaço de carne mais apetitoso do cinturão?”

“Ele é mesmo muito atraente. Não vejo a hora de conhecer a irmã dele.” Jasper sorriu, maroto. “Aposto que é bem bonita. Falando nisso, alguma ideia do paradeiro dela?”

“Comecei a rastrear os movimentos dela desde a fuga de Sky Box, mas com toda loucura de explosões e lagartos assassinos, não tive muito tempo pra procurar de verdade.”

“Blake vai te matar se não encontrá-la logo.”

“Nah.” Monty balançou a cabeça, olhando para o Capitão, que observava Clarke falar com admiração nos olhos. Clarke percebeu que ele estava olhando e corou, desviando o olhar para o chão. “Ele já está ocupado o suficiente.”

A sensação de estranheza espreitou pelo corpo de Clarke como um parasita , tomando conta do seu âmago em uma agonia quase imperceptível, que estava aumentando cada vez que interagia com o Capitão Blake.

A princípio, ela havia paquerado ele, no restaurante. Não tinha nenhuma intenção maior por trás daquele ato a não ser talvez conseguir transar após um bom tempo sem nenhuma ação, e Clarke sempre foi uma pessoa muito resolvida com sua sexualidade. Até sua casa explodir pelos ares e ela descobrir a real identidade do sujeito que salvou a sua vida, mas ao mesmo tempo arruinou a do seu melhor amigo.

Era uma constante batalha, lidar com Bellamy Blake. Ele tinha aquele ar durão e ameaçador - o que, sinceramente, excitava Clarke mais do que gostaria de admitir - mas não era só aquilo. O homem era extremamente complexo. Uma hora eles estão brigando e discutindo, e no momento seguinte parecia que eram amigos de longa data, provocando um ao outro e flertando.

Pelo amor de deus, os flertes. 

Chegava a ser embaraçoso, os olhares que enviavam para o outro, mesmo durante alguma discussão. Faltava Clarke escrever na sua testa “Por favor, me coma” cada vez que Bellamy esboçava aquele sorriso de lado.

E tinha toda a história do assassinato. Ela não sabia discernir o que era verdade e o que não era. O Conselho tinha sua fama de incriminar pessoas inocentes, mas ao mesmo tempo Blake deixava claro em suas atitudes que não era o mocinho. 

Assim como você tem direito aos seus segredos, eu tenho direito aos meus.

O que ele havia dito durante a fuga pelos túneis subterrâneos havia se fixado em sua mente. Quais segredos Bellamy Blake escondia? Ele nunca afirmou ou negou seu envolvimento com a morte de Jaha. Ele sempre foi retratado como um pirata sanguinário e cruel, e que fazia o que fazia por gostar daquilo. 

Não deveria estar se vangloriando, então? Afinal, o homem e sua tripulação haviam escapado do Conselho mais de uma vez, de acordo com a fala de Kane no restaurante. 

Abby sempre dizia que Clarke gostava de flertar com o perigo. Ela só não imaginou que isso aconteceria literalmente. 

Enquanto Bellamy pegava enormes pedaços de madeira fragmentada e os jogava na pilha que ele e Clarke haviam montado, ela tentou com muito esforço não olhar para seus braços fortes e expostos, as tatuagens expandindo na pele toda vez que ele flexionava os músculos. Os desenhos no corpo do Capitão não eram as usuais colunas solitárias, que representavam a independência, ou as caveiras - bem clichês, na verdade - que demarcavam um verdadeiro pirata. Ao invés disso, as colunas em pares estendiam-se pelos braços até o pescoço.

A imagem de Bellamy Blake sem camisa, recém saído do banho, inundou sua mente como um dilúvio em um deserto.

Por que ele tinha que ser tão atraente?

“Uma hora ou outra vamos ter que discutir sobre o elefante na sala.” Ele disse, sua voz levemente ofegante pelo esforço de segurar os maiores pedaços. Deus, Clarke estava a beira de um colapso nervoso. 

Ela corou ao ouvir a frase, o coração batendo à mil. 

“O- o que? Elefante?”

Bellamy arqueou as sobrancelhas, e apontou rapidamente para o peito de Clarke, desviando o olhar rapidamente. Quase...Envergonhado?

“O mapa. Nós temos ele, mas não as coordenadas e não temos ideia de onde ir. Nosso “acordo” está parecendo muito uma furada, princesa.” 

Ah, ele estava apontando para o bolso na jaqueta dela, onde estava guardada a orbe. Mas é claro.

Estúpidos hormônios de merda.

“Jasper e Monty acham que existem chaves que abrem o caminho para Thanatos. Provavelmente ALIE os colocou para evitar que quem tivesse o mapa em mãos, tivesse toda informação. Mas até agora, não sabemos onde encontrar as chaves.”

Bellamy franziu o cenho, pensativo. O cabelo estava mais bagunçado que nunca, os cachos escuros balançando enquanto ele passava a mão na nuca em um ato de reflexão. Era perceptível que ele tinha milhares de perguntas a fazer, a curiosidade brilhando em seus olhos.

“Não tem nenhuma informação no mapa? Uma mensagem, ou…”

“Mostra um diagrama geral do cinturão, mas nenhum caminho específico. Talvez se olharmos de novo, encontramos algo que deixamos passar.”

“Eu conheço uma pessoa que pode nos ajudar. Ele conhece muito sobre essas relíquias tecnológicas, coleciona e tudo. Raven não vai ficar muito feliz com essa ideia, entretanto.”

“Por quê?”

“É o ex dela.”

Clarke soltou uma risada leve. O som quase a assustou, como se sua garganta estivesse desacostumada a emiti-lo. Com tantas preocupações em mente, ela havia se esquecido do que era sorrir de verdade.

Bellamy sorriu suavemente, com o canto dos olhos enrugado pelo movimento. Apesar de demonstrar curiosidade, ele a guardou para si, e Clarke ficou eternamente grata. Ainda não estava pronta para trazer a história de seu pai à tona.

O parasita estranho remexeu-se dentro dela, aumentando de tamanho.

Conversar com ele a estava dando enxaqueca. Não sabia se odiava o homem, ou se queria ser amiga dele. Ou algo mais…?

“Raven tem uma previsão de quando vamos conseguir sair daqui?” Ela perguntou, pigarreando, e desviando o olhar, tentando focar no pedaço de madeira na sua mão. O estilhaço bateu com força na pilha, reverberando um som oco em meio à cacofonia de martelos, soldas e parafusadeiras utilizadas pela tripulação nas reparações.

“Ao menos três dias, foi o que ela disse. Espero que ninguém nos encontre até lá.”

“Kane deve ter sobrevivido à explosão e mandado nos caçar. É a única explicação para terem nos encontrado tão rápido.”

Bellamy cerrou os olhos, parecendo perdido em pensamento, e Clarke notou que ele observava Murphy e Emori conversarem à distância.

“É, talvez..” 

Eles trabalharam durante algumas horas em silêncio, com agilidade. Após terminarem de separar os fragmentos, seguiram para o próximo passo, que era colocá-los de volta aos seus respectivos lugares. Clarke entregava os pedaços a Bellamy, que, com uma espécie de solda para madeira, colocava de volta à embarcação. Surpreendentemente, os dois faziam um belo time quando não estavam na garganta um do outro.

“Olha, princesa.” Disse ele, quando finalizaram a última parte, suor beijando sua testa em pequenas partículas e a bochecha suja de fuligem. Clarke resistiu à vontade de limpar com seus dedos. “Considerando que você tem o mapa, e eu, o navio, estava pensando que talvez essa - essa coisa que fazemos possa atrapalhar a missão.”

Ela arqueou uma sobrancelha, surpresa.

“Essa coisa?”

“Sim, bem…” Ele coçou a nuca, e então enviou um sorriso matreiro “Não que eu não aprecie você me paquerando, mas….As pequenas discussões, os conflitos, a raiva, nada disso é produtivo para achar o tesouro.”

“Mas é claro.” Respondeu, ironicamente. A estranheza havia voltado, dessa gritando cuidado, perigo! . “O que faz pensar que eu paquero você? E quem diz paquerar hoje em dia, quantos anos você tem, sessenta?”

Bellamy revirou os olhos.

“Você é tão insuportável, que saber - esquece.”

"Essa é sua tentativa de propor uma trégua?"

“Sem esquemas pelas costas um do outro, sem mentiras e armações. Apenas agir de forma civilizada e fazer as coisas funcionarem...O que pode ser um pedido muito difícil pra você, eu sei.”

“Ha! Não foi você que apontou uma faca pra mim da última vez, Blake? Quem é o não civilizado da história, huh?”

Ele sorriu de lado.

“Certo, digamos que é um empate. Acho que se gastarmos nossa energia tentando cumprir nosso objetivo ao invés de tentar destruir o outro, os resultados serão mais promissores.”

“Estranhamente, eu concordo com você.”

Bellamy deu um passo para trás, as mãos levantadas como se segurasse uma câmera. 

“Uau! Poderia dizer isso de novo? Mas dessa vez diga olhando para a câmera.”

“Você é ridículo.”

Ela pensou sobre o assunto. O jogo que eles tinham era no mínimo perigoso, ainda mais considerando a situação de perigo constante que estavam. Seria estupidez colocar tudo em risco por uma tensão sexual mal resolvida.

Clarke então estendeu a mão, em um sinal de acordo, e tentou ignorar a eletricidade que percorreu seu corpo quando Bellamy a apertou com firmeza.

“Temos um acordo então?” Ele perguntou.

“Sim.” ela respondeu, ainda surpresa com a iniciativa dele, e ainda mais surpresa com a disposição dela em aceitar. “Acho que temos.”

NAVIO ESPACIAL APOLLO XX, BAÍA DE NETUNO SEPTIMUS

ANO 2875

Passava-se de uma hora da manhã. O espaço infinito e escuro emanava a sensação permanente de anoitecer, nenhuma estrela perto o suficiente para aquecer o navio. Raven havia trazido a terrível notícia que o sistema de calefação do Apollo havia sido danificado, e o calor retido no domo de oxigênio invisível criado pelo navio estava se dissipando em uma velocidade alarmante.

Todos haviam se retirado para descansar, menos Raven, Monty e Bellamy, que ficaram de guarda enquanto tentavam consertar o termômetro do navio. O frio estava crepitando pelo Apollo, como uma névoa invisível e gelada, fazendo-o arrepiar da cabeça aos pés. Logo seu sobretudo não seria o suficiente para mantê-lo aquecido.

Bellamy sentia-se envolvido em uma espécie de estupor. Sua mente ainda estava processando os últimos eventos, e a recém trégua entre ele e Clarke parecia uma novidade frágil e ao mesmo tempo excitante. Ele esperava que o acordo desse a oportunidade de conhecê-la melhor e, quem sabe, descobrir o que a mulher escondia por trás do mistério do mapa do tesouro. 

A preocupação com Octavia, em compensação, parecia diminuir com o passar das horas. Monty já estava à beira de conseguir uma localização em tempo real, e Bellamy sentia-se otimista em ver a irmã finalmente. 

Ele fitou o mar de estrelas à sua volta. O Apollo começava a adentrar uma área comumente encontrada em meio à galáxia, chamada Oasis, onde pedaços de asteroides e pequenos ecossistemas abertos flutuavam. Não era a primeira vez que Bellamy avistava algo parecido, mas o local não lhe trazia muitas recordações. 

“O que é isso?” Um sussurro encantado o tirou de seus devaneios. Clarke havia se materializado ao seu lado, os braços cruzados tentando se proteger do frio. Ela observou as cachoeiras suspendidas acima dela, as águas caindo em fluidez em sua mini atmosfera, os olhos azuis arregalados em maravilha.

“Oasis.” Ele respondeu, com o mesmo tom de irreverência, tão maravilhado quanto ela, mas não pelo mesmo motivo. Ela parecia tão pequena, e ao mesmo tempo tão presente em sua forma, admirando com olhos curiosos. 

Uma horda de botos passou perto do navio, suas duas caudas nadando pelo cosmos e indo em direção à cachoeira mais próxima. Clarke esboçou um sorriso.

“É lindo.” ela comentou, e, ao ver que Bellamy a observava, corou. Ele limpou a garganta e desviou rapidamente o olhar, mas já era tarde demais. Ela já havia percebido.

“Pode parecer estranho, mas eu nunca viajei.” Clarke comentou, ainda sussurrando. O silêncio era quase ensurdecedor no espaço, como um eco mudo que envolvia toda a matéria. Ela falava como se tivesse medo de quebrar algum encanto. “Quer dizer, já visitei ArkStation, sempre passeava pela Cidade Central com Wells, mas nunca pisei o pé em um novo planeta, ou conheci outro cinturão. Minha mãe sempre foi super protetora.”

Ele ficou surpreso com a informação. Não imaginava Clarke o tipo de garota que obedecia aos pais, muito pelo contrário. Apesar de Abby parecer fechada e rígida, parecia estar acostumada com a rebeldia da filha. Bellamy se perguntou se Wells era aquele garoto de Sisna que levara Abby para um lugar seguro. 

Talvez isso explicasse a raiva dela nos túneis subterrâneos. Ele havia interrompido algo entre eles e por mais que tentasse se sentir culpado, parte dele sentia-se um tanto satisfeita. A ideia de Clarke ser tão próxima de outra pessoa o incomodava sem motivo aparente.

“Compreendo a super proteção.” ele respondeu. “Minha mãe era assim com Octavia, e eu acabei puxando dela esse comportamento. Parando pra pensar, vocês duas são muito parecidas, você e minha irmã. Não importa onde estejam, não tem medo de arranjar encrenca - e vocês sempre acabam arranjando.”

Clarke riu. Uma mecha de cabelo escapou das suas tranças e ela o moveu para trás da orelha, ainda admirando a paisagem. 

“Você e sua irmã parecem bem próximos. Sempre quis ter um irmão ou irmã, mas…”

“Política de um filho de ArkStation. É, eu sei.” Ele respondeu, a amargura inevitavelmente aparecendo no seu tom de voz.

A lembrança da morte de sua mãe era gravada em seu cérebro com ferro quente. Ele nunca iria esquecer o desespero estampado no rosto de Aurora quando a mandaram para morrer no espaço. Nem o rosto e nome daqueles que deram a ordem.

Ele fitou Clarke novamente, e a expressão que ela tinha o surpreendeu. Não era pena, ou dó pelo que ele havia passado. Era um misto de assombro e...culpa?

“Bellamy eu tenho que te contar uma coisa-”

“Capitão!” Raven os interrompeu com um semblante de desespero. “Temos um problema. Esse Oasis não é qualquer um. Estamos na Baía de Netuno.”

“Merda! Merda, merda, merda...” 

Assim que o xingamento saiu da sua boca, elas apareceram. Pareciam estar espreitando o Apollo ao longo da passagem pelo Oasis, mas ele estava distraído demais com Clarke para perceber. As criaturas espiavam o navio com curiosidade, e ele sabia que era uma questão de tempo até perceberem que tinha algo comestível dentro da embarcação.

Ótimo dia pra virar comida de sereia.

“Acha que consegue consertar os escudos em alguns minutos?” Perguntou à Raven. Era perceptível, mesmo a centenas de metros de distância, o brilho das nereides enquanto elas se preparavam para atrair suas presas.

“Não, mas vou dar meu melhor. Monty e eu vamos nos empenhar. Precisamos acordar os outros pra tentar proteger o navio.”

“Não! Você sabe o que elas fazem, não podemos correr o risco de atraírem o restante. Tranque-os nos aposentos.”

“Mas Capitão-”

“AGORA!”

Raven correu, Monty em seu encalço.

O desespero estava começando a tomar conta de Bellamy. As nereides perceberiam que ele era uma presa fácil, mas não podia deixar Raven e Monty expostos enquanto tentavam acionar os escudos.

Clarke observava as criaturas com os olhos arregalados de pavor, o encantamento anterior agora transformado em medo, o que significava que provavelmente ela não era afetada. Teria que confiar nela.

As sereias começaram seu canto, aproximando-se do Apollo com uma rapidez ameaçadora. Bellamy sentiu seu corpo amolecer-se, cada vez mais tornando-se suscetível ao poder das criaturas.

“Blake, o que-”

“Clarke, me escute, por favor. Preciso que me tranque nos meus aposentos agora.” Ele tirou a arma presa em sua cintura e entregou nas mãos dela, que estavam trêmulas. “Não importa o que eu diga, ou o que eu faça, me mantenha longe delas. Use essa arma se for preciso, mas não me deixe chegar perto delas. 

A arma em sua mão parecia mais pesada do que da última vez.

Clarke não entendia o que estava acontecendo. Diversas criaturas estranhamente encantadoras surgiram em volta do navio, enquanto ela tentava arrastar Bellamy para dentro dos aposentos. 

A princípio, ele havia colaborado, e os dois correram do convés para o quarto do Capitão. Estavam no meio do caminho quando um som terrível soou pelo convés. As sereias estavam emitindo um som abominável, como um lamento agudo e choroso, reverberando pelas nebulosas onde nadavam. Bellamy parou abruptamente ao ouvir, e seu rosto tornou-se disperso, como se sua mente estivesse a milhões de anos luz dali. 

Raven apareceu com Monty em seu encalço, os dois ofegantes, indo em direção ao painel de controle.

“Tire-o daqui agora! Elas não vão nos incomodar por enquanto, e os outros estão presos. Temos pouco tempo até elas perceberem que não estão conseguindo atrair ninguém.” 

As duas puxaram Bellamy pela mão, mas seu corpo parecia preso ao chão do navio. 

“Raven!” Monty gritou do painel. “Preciso de você, temos pouco tempo ou elas vão invadir o navio!”

Clarke estava desesperada. Uma criatura parecia chegar cada vez mais perto. Ela tinha quatro braços, o tronco análogo ao de uma mulher humana e a cauda enorme de enguia. Sua cabeça era um emaranhado de luzes coloridas, como uma nuvem de nebulosas que mudavam de cor e textura a cada segundo, e de vez em quando algo parecido com um rosto aparecia. 

“Clarke, me escute.” Raven a segurou pelos pulsos, tentando sacudir Clarke de seu medo. “Essas criaturas atraem aqueles que já viram a morte de um ente querido. Elas se alimentam do seu luto e desespero. Bellamy é o mais afetado entre todos nós, não o deixe ir para a beira do navio ou ele vai se jogar. Eu preciso ligar os escudos antes que muitas se aproximem, ou elas vão destruir o navio! Tome cuidado.”

Ela não tinha muito tempo. Uma das nereides serpenteava pelo espaço e estava quase na beira do convés. 

“Blake, vamos agora, precisamos ir!” Ela o puxou pela mão com força, mas ele só se moveu alguns passos. Ele fitava a criatura, que estava a poucos metros deles. Sua expressão era de um alívio doloroso, como se o que visse fosse algo bom demais para ser verdade. Clarke se pôs entre ele e a sereia e segurou seu rosto entre as mãos.

“Bellamy, me escute, isso não é real! Seja lá o que esteja vendo, não é real, por favor venha comigo...Você me pediu que o levasse, lembra? Venha comigo, por favor!”

Ela conseguiu sua atenção por alguns segundos, e os olhos castanhos dele arregalaram ao perceber o que estava acontecendo. Então a nereide novamente entoou o som agonizante, e Bellamy se jogou no chão de joelhos, lágrimas escorrendo por seu rosto.

“Mãe?” ele sussurrou, a face contorcendo-se em agonia e completa dor. As lágrimas caíam livremente, e o peito sacudia-se em soluços aflitos. Ele parecia tão indefeso e exposto.

A criatura estava no convés, há alguns metros de distância. Suas quatro mãos tinham garras que arranhavam o chão do navio ao longo de suas avançadas, a cauda animalesca e cintilante arrastando-se pelo convés. Clarke congelou. Por um segundo, pensou ter  visto o rosto de seu pai no emaranhado de cores. 

“Me desculpe.” O choro de Bellamy tornava-se cada vez mais forte, seus ombros caídos em posição de derrota. “Me perdoe, por favor. Me perdoe.”

Clarke segurou a arma entre as mãos e atirou. O disparo deu um tranco e quase a fez cair, mas ela continuou disparando contra a criatura. A nereide guinchou e recuou alguns metros, e o grito pareceu quebrar o encanto do Capitão.

“Bellamy, vamos!” Clarke não esperou resposta, e o puxou pelas mãos. Os dois correram o mais rápido que conseguiram até o aposento, e ela o empurrou para dentro com força, trancando a porta atrás de si.

Bellamy parecia em choque, e não se movia. Apenas encarava a porta com um misto de comoção e vergonha. 

Clarke empurrou a estante de livros até a porta com muito esforço, formando uma barreira extra, e se largou no chão, exausta e ofegante.

Mas que porra tinha acabado de acontecer?

Alguns segundos se passaram arrastados, um silêncio abrupto no quarto, e apenas a respiração ofegante dos dois preenchia o ambiente. O Capitão sentou-se na beira da cama, trêmulo, sem conseguir encontrar os olhos de Clarke. Ela sentiu-se indefesa. A dor e o sofrimento que as criaturas fizeram Bellamy passar era tamanha, que ela sentiu seus olhos encherem d’água. 

O som de algo arranhando a porta ecoava pelo quarto. A nereide tentava entrar, mas a barricada de Clarke parecia estar dando certo. Bellamy sentou ao seu lado, e os dois ficaram por diversos minutos segurando a porta contra os impactos da criatura.

“Bellamy-”

“Por favor. Não diga nada” ele disse, sua voz tão pequena quanto sua postura. Ele parecia extremamente cansado, como se centenas de anos tivessem sido sugados de sua alma. Encarava o chão com o cenho franzido, os olhos ainda molhados e chorosos. 

Clarke queria abraçá-lo, confortá-lo de alguma forma. Ela entendia como era perder uma pessoa querida, e sabia que era uma ferida que nunca curava. Sempre que alguém mencionava seu pai, o corte em seu coração abria-se de novo. E naquele momento doía mais ainda a quase certeza do envolvimento de Jake com o sofrimento do Capitão.

Não tinha ideia do que acontecia lá fora. Será que Monty estava bem? Teriam eles conseguido erguer os escudos? 

Um lamento estridente e alto percorreu o navio novamente, como dezenas de vozes, fazendo a estrutura do Apollo  vibrar. As vozes traziam a sensação do mais profundo e incompreensível pesar , fazendo cada pêlo no corpo de Clarke eriçar em medo.

Bellamy ajoelhou-se abruptamente em frente à ela, segurando seus braços com uma força desesperada.

“Eu preciso vê-la, Clarke. Por favor, por favor , deixe-me ver ela só mais uma vez.” O desalento em sua voz era tão grande, que ela não se importou com os dedos apertando sua pele, e quase cedeu. 

“Não posso.” sussurrou em resposta, as palavras fazendo seu peito doer. A culpa que carregava, mesmo sabendo que não havia sido ela quem matou sua mãe, era esmagadora. “Desculpe, Bellamy, você me fez prometer eu- Me desculpe, eu não posso.”

Ele a soltou, derrotado, afundando a cabeça entre as mãos. Os soluços que saíam de seu peito eram tão angustiantes, que Clarke esqueceu completamente dos gritos das sereias do lado de fora.

“Ei, está tudo bem.” Ela murmurou, tocando seu braço levemente para não assustá-lo. Quando Clarke se questionava, às vezes, como seria ver Blake vulnerável, não era nada disso que imaginava. Não era nada agradável.

Bellamy levantou os olhos e a fitou, torturado, como se falar fosse o maior sacrifício que poderia fazer. 

“Tudo o que eu faço é machucar as pessoas. Deveria se afastar de mim antes que seja tarde.”

Tarde demais, ela queria responder. Ela não sabia de onde vinha aquele discurso, e não era de sua conta para perguntar. Mas sentiu, simplesmente sentiu , que não era completamente verdade.

“Você salvou minha vida mais de uma vez. Você pode ser um completo idiota boa parte do tempo, mas...Eu preciso de você. Ninguém teria sobrevivido ao ataque no restaurante se não fosse por você.”

Bellamy balançou a cabeça em negação. 

“Minha mãe, ela- Ela me criou melhor do que isso. Não pra ser desse jeito, eu....Sou um monstro. Sei que também pensa isso de mim, com toda a coisa do Jaha.”

“Eu não acho que seja um monstro. Ok, a questão do Jaha é muito complexa e dolorida, mas... Poderia ter me deixado pra trás em Sisna e ficado com o mapa, mas não fez isso. Se arriscou para me salvar. Um monstro não faria isso, faria?”

Clarke o observou de perto. Estavam lado a lado, encostados na estante de livros que formava a barreira na porta. As sardas no rosto dele eram mais evidentes de perto, sua pele morena entrando em contraste com as luzes do ambiente. 

Ela ficou surpresa com a própria franqueza. Não falara aquilo por pena, ou apenas para confortar Bellamy. Realmente não acreditava que ele era um monstro. Apesar do Conselho gostar de pintar o Capitão Blake como uma figura maligna, ela o via como era: uma pessoa, como ela, capaz de cometer erros e acertos. 

No caso de Bellamy, infelizmente, seus erros eram grandes o suficiente para assombrá-lo à noite. E ela não o julgaria se ele tivesse realmente matado Jaha. Não depois do que havia aprendido sobre sua mãe. 

“Eu nunca te agradeci.” ela disse, corando. De repente olhar para seus pés se tornou uma atividade interessante. Sentia-se patética e envergonhada. “Por ter me salvado, e aceitar o acordo. Obrigada.”

“A parte do acordo eu não tive muita escolha.” ele esboçou um sorriso quebrado, mas mesmo assim um sorriso. 

Percebeu então que não havia mais cantos angustiantes - as sereias haviam ido embora. Precisavam ver se os outros estavam a salvo. Precisava sair dali antes que falasse a verdade e o machucasse ainda mais. A culpa inundou seu peito, apertando sua respiração de forma sufocante. 

Clarke não tinha ideia de que Bellamy era de ArkStation. Será que eles já haviam se encontrado antes? Será que ele sabia sobre seu pai, e todo legado de morte e injustiça que carregava seu nome? 

Se ela dissesse seu nome completo, Blake reconheceria e a mandaria pelo espaço. Assim como Jake fez com a mãe dele.

Um momento constrangedor se instalou. Ambos desviaram o olhar, envergonhados. Após essa conversa, Clarke tinha certeza que nada seria o mesmo entre os dois.

Assim como o canto das sereias havia chegado abrindo todas as feridas, ele havia ido embora, deixando o silêncio ensurdecedor tomar conta do depois.

A madeira arranhada o encarava com uma intensidade absurda demais para um objeto inanimado. O frio continuava a aumentar - afinal, as reparações no termostato do navio foram interrompidas pelas sereias assassinas - e seus dedos estavam começando a ficar dormentes. O sobretudo o aquecia em noites de brisa, mas o ar gélido começava a entrar pelas brechas de suas roupas. Porém, os calafrios que percorriam seu corpo não eram relacionados ao clima.

O rosto de Aurora ainda estava marcado na mente. Bellamy não sabia como, mas as criaturas conseguiram imitar quase perfeitamente a sensação de estar perto de sua mãe novamente, os olhos castanhos tão parecidos com os seus o mirando com carinho e compreensão.

Como pode ser tão estúpido ao se deixar levar daquela forma? Ele sabia que não era Aurora, que aquele rosto não pertencia ao corpo alienígena ao qual estava preso, que os gritos e lamúrias não eram humanos. Bellamy havia chorado como um garotinho perdido, implorando de joelhos para Clarke que o deixasse sair, deixando-se vulnerável em frente a uma mulher que mal conhecia. 

Após as nereides pararem de cantar, o silêncio havia tomado conta do Apollo de forma sorrateira, crepitando pelos cantos do convés. Nenhum dos dois havia dito sequer uma palavra após a conversa carregada de emoções que tiveram, Clarke nem ao menos o olhou nos olhos, provavelmente enojada com o show que Bellamy havia dado. O perigoso Capitão Blake, procurado por todo cinturão e caçado pelo Conselho, soluçando desesperado em posição fetal. 

Raven e Monty haviam conseguido reerguer os escudos por um triz. Miller havia arrombado a porta da parte inferior do navio, onde estavam presos, e ele e o resto da tripulação tinham eliminado o resto das criaturas que haviam conseguido entrar no Apollo. 

Os corpos das criaturas, agora apagados e sem vida, foram jogados no espaço onde pertenciam, e no lugar da imitação do rosto de Aurora tinha um vazio infinito, um buraco negro sem fim ou começo. Era como se ele tivesse a perdido de novo.

Durante todo esse tempo, Bellamy não havia falado nada. Miller, apesar de parecer furioso por ter sido trancado, sabia que era melhor deixá-lo sozinho, assim como o resto da tripulação. Ele estava envergonhado demais, fragilizado demais e temia que se abrisse a boca novamente, as lágrimas voltariam à tona.

Emori havia lhe entregado uma xícara de chá quente e se retirado para seus aposentos, sem antes apertar seu ombro de maneira confortante. No fundo, ele sabia que sua tripulação não o achava uma piada - eles confiavam um no outro, sabiam da história de Bellamy e acreditavam que ele era um bom líder. 

Ele estava prestes a entrar na sua cabine e tentar descansar um pouco, quando a imagem da porta arranhada pelas garras da criatura o paralisou. O problema não era ele ter desmoronado e caído aos pedaços por pesar, luto e saudades de sua mãe, mas sim ter feito isso na presença de Clarke. Bellamy não confiava nela, e apesar de estarem começando a se tornar civilizados um com o outro, o assustava pelo fato de ela saber a parte mais obscura e vulnerável dele. 

O que ela faria com essa informação? Bellamy já estava praticamente à mercê de Clarke. Já havia aceitado a contragosto sua proposta de ir atrás do tesouro, e já havia quase morrido duas vezes por conta disso. E por mais que fosse uma grande recompensa, não se interessava tanto no tesouro. 

Preciso encontrar Octavia. Ela é a única que compreenderia o que vi essa noite.

“Vai beber esse chá ou esperar ele congelar como o resto de nós?”

Raven o fitou com curiosidade e preocupação. Seu rosto cansado parecia pálido com o frio, e os lábios tremiam enquanto ela tentava se aquecer em seu poncho. Bellamy havia se esquecido do frio. Achava que a sensação de dormência de seu corpo estava mais relacionada ao choque. Ele passou a xícara ainda fumegante para a morena, que bebericou o chá com um suspiro de alívio.

“Nós podemos consertar, você sabe. A porta. Sei que o Apollo é seu bebê, e que ele foi quase destruído três vezes nos últimos dias, mas...Você tem à mim. Sabe que consigo fazer qualquer coisa.”

“Menos consertar o termostato.”

“Há! Mas salvei sua bunda de sereias assassinas, então de nada.”

Ele a fitou seriamente. Raven era uma mulher complicada, cheia de dores do passado e muito dura consigo mesma, e Bellamy ocasionalmente tinha que chamar sua atenção para que não trabalhasse ao ponto de exaustão. E apesar de ser um pé no saco e estar sempre fazendo piadas à suas custas, sempre o apoiou e desafiou quando fosse necessário. Se não fosse por ela, Bellamy não conseguiria fazer metade do que se propunha.

“Obrigada, Raven.” Ele disse, sem nenhuma ironia, apertando a mão gelada da comandante. “Se não fosse por você, não estaríamos aqui.”

“Sim, tem razão. Eu sou muito boa no que faço. Mas se não fosse por Monty, também não conseguiria. E se não fosse por Clarke, você não estaria vivo.”

Ele cruzou os braços de forma defensiva. Não queria pensar nela, ou na conversa que haviam tido. Não queria lembrar dos olhos azuis evitando os seus, como se fugissem dele. Talvez fosse bom que ela fugisse, assim diminuiria a chance de danos maiores.

Eu preciso de você.

“Clarke só está aqui por conveniência e você sabe disso. Ela só precisa de um idiota que aceite ser seu guarda costas pra encontrar essa merda de tesouro, que nem sabemos se é de verdade.”

“Então por que aceitou?”

“Você sabe por que. Preciso encontrar Octavia.”

“Podemos encontrar ela de outro jeito! Não existe apenas Monty como hacker no universo, sabia?”

“Mas ele é o melhor.”

“Então já sabe onde se meteu. Não adianta cruzar os braços e achar ruim, Blake!. Você está nessa por que quer, e vai ter que conviver com Clarke por um bom tempo até tudo isso acabar. Cabe a você decidir como vai lidar com isso, Capitão.”

Bellamy estava prestes a responder, mas Raven já havia se retirado, resmungando consigo mesma e indo em direção ao termostato. 

“Não se preocupe que vou consertar essa coisa. Enquanto isso entre e se aqueça, antes que essa cara feia fique congelada no seu rosto pra sempre.”

Mais tarde, ela sonhou com seu pai.

Estavam os dois parados no convés do Apollo. O céu não era de nebulosas e estrelas, mas de um azul tão claro que faziam os olhos de Clarke arder. Um vento quente e agradável soprava pelo navio, fazendo os cabelos cor de areia dele se movimentar em pequenas ondas. 

Nenhum dos dois abriu a boca.  Clarke queria dizer que estava com saudades, contar tudo o que acontecera e ao mesmo tempo gritar com ele de raiva.

Por que nos abandonou? O que fez de tão ruim que o levou a deixar sua família?

A imagem de Jake tremeu. Era como se ele estivesse ali, e ao mesmo tempo, milhões de quilômetros de distância, sua imagem refletindo a incerteza de Clarke. Ele virou para encarar a filha, mas seu rosto já não era o mesmo - ele bruxuleava, como um fantasma. 

O corpo não era mais de seu pai, também. No lugar das pernas, uma cauda de enguia se estendia pelo convés, quatro braços com garras se arrastando pelo chão em um barulho agudo. A criatura avançou sobre ela.

“Clarke, acorde!” Uma voz murmurou ao longe. “Blake convocou uma reunião, quer todos no convés agora.” Jasper a encarava com os olhos joviais, e uma ruga entre suas sobrancelhas. 

“Você está bem?”

Ela levantou da rede, suando frio, suas mãos tremendo levemente. Como instinto, procurou no bolso da jaqueta pela pequena orbe, e suspirou de alívio quando seus dedos encostaram no objeto metálico e gelado.

“Sonho ruim, só isso.”

Jasper a ajudou a levantar. Ele estava sujo de graxa e fuligem, e o óculos preso no topo da cabeça estava escorregando em direção a testa. Ela percebeu que era a primeira vez em dias que olhava direito para seu amigo, e Clarke sentiu uma enorme vontade de chorar.

“Ei, está tudo bem.” Ele a abraçou, os braços magros e lânguidos segurando seus ombros de forma desajeitada. “Você só teve uns dias difíceis....Estou surpreso por ter aguentado tanto tempo.”

“Me desculpe, Jas.” Ela murmurou contra o peito do amigo, as lágrimas caindo livremente sobre o colete laranja dele. Clarke tinha a sensação de que havia um nó no lugar do seu coração. “Andei tão preocupada com todas as experiências de quase morte que não dei atenção a você e à Monty. Obrigada por ter vindo comigo.”

“Ei, não se desculpe. No seu lugar, eu já teria me jogado da prancha. Ou atirado no Capitão Blake.”

Clarke soltou uma risada chorosa, ainda abalada pelo sonho, mas grata pela presença dos amigos. Pensou em sua mãe e Wells, e o aperto em seu peito aumentou. 

Por favor, que eles estejam bem.

“Madame.” Murphy apareceu, sua expressão extremamente entediada. Clarke não gostava dele. “A reunião já vai começar.”

Todos estavam no convés, em volta do leme, onde Raven mexia em alguns fios com seus dedos ágeis. Ela tinha olheiras embaixo dos olhos, com um ar cansado, e tinha a aparência de quem não dormia bem à dias. Do seu lado, Monty sentava em uma cadeira e digitava no computador em um sistema que Clarke nunca tinha visto antes, cheio de números e código indecifráveis.

Ela apertou o ombro do amigo, que se sobressaltou em surpresa, mas enviou um sorriso logo depois, e ela soube que estava tudo bem entre eles.

Blake estava de pé ao lado de Raven, os braços cruzados e uma expressão indecifrável, estóica como uma rocha. Ele nem ao menos olhou em sua direção, e Clarke logo desviou o olhar para a pessoa mais próxima.

Miller a encarou de volta com uma expressão confusa.

“Chamei vocês aqui porque, como já sabem, o navio está praticamente destruído.” Ele enviou um olhar rápido e raivoso para Clarke. “Nós quase não sobrevivemos ontem, e se não fosse por Raven e Monty, teríamos virado comida de peixe. Monty aqui conseguiu nos comprar um tempo, despistando o Conselho e enviando uma localização falsa do navio, para um lugar bem longe daqui. Nós temos três dias.”

“Quase três.” O garoto falou sem tirar os olhos do computador. “Dois e meio, sendo otimista. Quem sabe dois…”

“E vamos ficar atoa e à deriva durante esse tempo todo?” Emori perguntou.

“Clarke disse que não tem muita pista no mapa, então vamos procurar alguém que possa nos ajudar. Raven conseguiu colocar os escudos de volta, mas sem peças adequadas, só vai durar até certo tempo. Por isso vamos para Meshan Nuk.”

A tripulação começou a falar ao mesmo tempo, em objeção, o desgosto pelo trajeto estampado em seus rostos. Raven bateu com mais força do que necessário no leme, sua boca em uma linha, o rosto emburrado.

“Odeio esse lugar.”

“Capitão, por que não vamos a Tatooine ou sei lá, qualquer outro lugar do universo? Você sabe como o nukianos são.” Emori reclamou.

“É o mais próximo da rota que podemos chegar sem o Apollo se desmanchar por completo. Nós precisamos de partes, e precisamos de ajuda com o mapa, Meshan Nuk tem os dois e é mais perto.” A voz forte de Bellamy reverberou pelo convés, seu tom de finalidade. Não haveria outra opção.

Clarke não entendia os protestos sobre o planeta, e se encontrou curiosa para descobrir. Nunca havia pisado em um planeta na vida, apenas em estações espaciais, por conta da super proteção dos seus pais. Seja lá qual fosse o motivo que causou a indignação na tripulação do Apollo, ela não via a hora de ver com seus próprios olhos.

“Raven e Murphy vão negociar as partes. Emori e Miller ficam no Apollo com Monty enquanto ele procura Octavia - não deixe ninguém além de nós chegar perto do navio. Clarke, eu e Jasper vamos atrás de Wick.”

“Quem é Wick?” Jasper perguntou.

Raven fez um barulho enojado.

“Confia em mim, você não quer saber.” 

Miller soltou uma risada, e compartilhou um olhar divertido com Bellamy. O Capitão deu um sorriso de lado, e Clarke jurou que ele havia olhado para ela por um segundo. Mas logo sua expressão voltou à impassividade.

“Não se separem. Permaneçam alertas e em hipótese alguma encostem na espuma.”

“Espuma?” Clarke perguntou, sua curiosidade falando mais alto. 

Murphy deu um risinho sarcástico.

“Você vai ver quando chegar lá.”

A reunião parecia ter chegado ao fim. Todos se dispersaram, restando apenas Raven, Monty, Bellamy e Clarke. O Capitão parecia disposto em sua tarefa de ignorá-la, observando Raven consertar seu leme com um interesse concentrado - quase forçado.

Clarke respirou fundo, a culpa e ansiedade voltando a tomar conta dela. Você não é seu pai, uma voz no fundo de sua mente tentava insistir. Posso não ser, mas carrego seus olhos e seu nome, e isso basta.

“Podemos conversar?” disse antes que desistisse e saísse correndo pelo convés como uma adolescente envergonhada. Os ombros de Bellamy tencionaram, o cenho estava franzido. Monty a enviou um olhar curioso.

Clarke manteve a postura, o queixo erguido e os olhos no rosto do Capitão. Não iria agir como se tivesse feito algo errado, mesmo que o sentimento em seu âmago gritasse o contrário. 

Você não é seu pai.

“Estou ocupado.” Bellamy respondeu, os olhos ainda fixos no trabalho de Raven. Desespero começou a precipitar pelas beiradas, mas Clarke se conteve. Não tinha como ele saber sobre seu pai. Ninguém havia falado nada, ela não tinha dito seu sobrenome. Ninguém fora da estação conhecia Clarke Griffin. 

Ali, ela era apenas Clarke, perdida no espaço, à procura de um tesouro lendário, com o objetivo nobre de tirá-lo de mãos perigosas. Bellamy não sabia que ela tinha um motivo maior, cheio de bagagens do passado - que tinham tudo a ver com ele, e a morte da sua mãe - que a assombravam à noite.

Ela sabia que devia contar ao Capitão sua relação com a perda da mãe dele. Assim como sabia do risco que corria se o fizesse. Ele a mataria? Jogaria ela do Apollo, assim como Jake fizera com sua mãe, deixando-a morrer sufocada e congelada no espaço infinito, seu corpo um satélite sem vida pairando pelos céus? 

Clarke não poderia se dar o luxo de comprometer ainda mais a missão. Ela precisava de Bellamy e do Apollo. Bellamy precisava dela e de Monty. Todos ganhavam algo no acordo. Ele não precisava saber.

“Faça isso.” A voz de Kane invadiu sua mente, o peso da arma que havia apontado para ele ainda presente em suas mãos. “Vai ver que é mais parecida com seu pai do que imaginava.”

Blake continuava a ignorando. Talvez ele estivesse com raiva dela por não ter conseguido o levar a tempo para a cabine antes das nereides aparecerem. Talvez sentisse ressentimento por Clarke o colocar naquela posição. 

Talvez ele simplesmente a odiasse.

“Tudo bem.” Ela respondeu finalmente, e olhou de relance para ela, rápido e quase imperceptível.

Quase.

“Você que manda, Capitão. 


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Notas finais do capítulo

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PFVR

Qualquer coisa para essa pobre escritora cansada que trabalha e estuda e ainda arranja tempo pra escrever pra vcs!!!!!! Beijos no core até a proxima ♥



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