Arranjos & Desarranjos escrita por Lily Masen, Shalashaska


Capítulo 6
Chá & Barganhas


Notas iniciais do capítulo

Chegamos com um capítulo enorme!
Não deu tempo para abordar mais personagens, mas não se preocupem! Logo outros irão aparecer ♥
Boa leitura.



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Até mesmo o clima parecia ter seguido as ordens de Frederik Strawell para transformar aquela tarde em um dia perfeito para um chá: o Sol brilhava, mas não o suficiente para queimá-los, pois nuvens brancas também pintavam o céu azul. O vento, por sua vez, era fresco e moderado, trazendo apenas o aroma das flores dali perto. Lá estavam eles no parque — assim como tantas outras pessoas que foram aproveitar o dia — sentados à mesa perfeitamente organizada e cheia de pratos deveras deliciosos. Era quase como se uma delicatessen inteira tivesse fornecido a variedade de bolos, pães e vários docinhos ali da mesa e o pior — para Beatrice — era manter a cabeça no lugar enquanto doces genuinamente italianos estavam à sua frente.

A confeitaria Butler não era nada diante das opções servidas e era difícil esperar mais um pouco pela companhia da terceira integrante do trio de moças. Ao lado de Beatrice D'Angelo estava Aurora Wintergarden e toda sua delicadeza, mas nada de Margot. Ela havia mandado um funcionário de sua casa avisar que poderia demorar mais alguns minutos para chegar, mas caso não viesse em quinze minutos, poderiam prosseguir o chá sem ela. Todos ao redor da mesa cumprimentaram-se logo no início do encontro, os rapazes — Henry  e Frederik — e as damas — Beatrice e Aurora.  E, após precisamente quinze, Frederik conferiu seu relógio de bolso e sorriu daquele jeito que daria inveja a uma flor de cravo. 

— Bem, senhoritas… — Ele fechou o relógio e guardou-o com cuidado. — Conto com vocês para não deixarmos passar essa bela chance de dar dicas sobre pontualidade à Margot Berkshire no futuro, certo?

Beatrice riu, lembrando-se de quando Margot reclamou justamente sobre isso com o rapaz. Toda a ocasião poderia ter lhe aborrecido — afinal, estava ali somente porque conheceu Frederik na casa dos Berkshire — no entanto, estranhamente não se sentia desconfortável mesmo com tal contratempo. Estava nítido que Strawell se esforçara para deixar o ambiente impecável para as convidadas, tanto é que um trio de criados aguardava abaixo da sombra de uma árvore para atender quaisquer demandas de seus patrões. 

Ela ficou feliz de ter escolhido um vestido belo e que valorizasse bem o seu corpo, em um tom claro e de tecido confortável. Não era raro que não se sentisse bonita — algo talvez reforçado pelos comentários esporádicos acerca de seu peso pelo seu falecido pai — mas naquela ocasião, Beatrice tinha especialmente apreciado sua visão no espelho. Simples, leve, confortável. Tudo o que desejava ser naquela tarde.

E, na realidade, Frederik parecia mais empolgado por conhecer as duas do que trocar falas — ou farpas? — espirituosas com Margot. Algo dentro do peito dela deu um salto ao vislumbrar a possibilidade de interesse por parte de Frederik, mas tudo o que ela disse foi:

— É uma ironia, de fato. 

Ele repousou sua atenção magnética sobre Beatrice, mas logo tal atenção foi roubada por um último convidado: Um rapaz alto e cabelos pretos, vestido com um belo tom de azul marinho em seu casaco e um colete discretamente estampado. Elegante, discreto.

E o cumprimento de Frederik o puxou direto para o centro das atenções:

— Vejam só quem chega! — Levantou-se e ofereceu a mão para um aperto firme. — Pensei que ia seguir o exemplo da senhorita Berkshire!

— Ela não veio?

Diante da visível confusão do rapaz, Henry Dashwood apressou-se em explicar o acontecido:

— Houve uma emergência na comunidade de astronomia e deve ser algo importante, pois ouvi dizer que se trata de uma réplica em menor escala do telescópio dos irmãos Herschel. Aparentemente Margot e o irmão eram as pessoas mais indicadas para o conserto.

— É uma pena, de fato. Mas, — Frederik colocou o braço em torno do ombro do amigo. — Poderemos ainda aproveitar esse chá da tarde e quem sabe marcar um próximo, não? Um evento no qual Margot possa vir também.

Aurora, tímida até então, se entusiasmou com a ideia e uniu as mãos enluvadas em um gesto adorável.

— Ah, seria esplêndido!

— Agora, vamos às apresentações, sim? — Ele estendeu a mão, indicando à direita. — Assim como apresentei às senhoritas mais cedo, este é meu primo Henry Dashwood. E aqui ao meu lado, nosso amigo Salazar Roffman, um empresário também. — Deu um último tapa amigável no ombro dele e finalmente o soltou, para que pudesse tomar o assento livre ao lado de Henry. —  E não se enganem, aquele jornal da sociedade pouco faz jus a ele.

Salazar congelou antes de se sentar.

— Eu… Sai no jornaleco de fofocas?

— Sim. — Frederik continuou. — E seu suposto esquema de lutas de boxe entre mulheres.

O rosto pacífico de Henry torceu-se em uma expressão travessa. Era como se não pudesse conter o riso devido a imagem que lhe viera à mente, mesmo que desejasse mostrar apoio ao amigo:

— Um negócio inusitado, devo admitir.

O pobre coitado perdeu todas as cores da face, talvez imaginando as exatas palavras que maldito jornaleco havia dito ao seu respeito. Na verdade, a italiana não achava tudo tão grave assim. Inconveniente? Claro. Mas fantasioso o suficiente para ninguém acreditar. 

Embora até uma risada tímida tivesse escapado da irlandesa ao seu lado.

— Roffman, aqui estão Beatrice D'Angelo e Aurora Wintergarden. 

As duas se levantaram brevemente para uma mesura educada, enquanto Salazar retribuía o gesto do outro lado da mesa. Não demorou para que todos estivessem finalmente sentados à mesa e Frederik foi o primeiro a puxar um bolinho terrivelmente açucarado para si. Desta forma, todos os presentes se sentiram mais à vontade para começar a petiscar.

— Então, — Ele disse, ainda com um pouco de açúcar sobre os lábios. Beatrice fez força para não encarar muito, fingindo-se distraída com o chá que nem sabia o sabor. A parte consciente de sua cabeça implorava por pensamentos que envolvessem a beleza  da porcelana, não os lábios dele. — O que as senhoritas pensariam de um ringue para garotas?

Aurora riu de novo, motivada em parte pela visão que a pergunta evocava e parte por puro nervosismo. Ao menos ela conseguira reprimir parcialmente o adorável barulho que lhe escapava da garganta quando ria demais — fato que acontecera diversas vezes no observatório há dois dias — e que se assemelhava ao balir de uma pequena ovelha.

— Devo admitir que nunca pensei no assunto! — Ela comentou, ainda cobrindo um pouco a boca. — E não creio que eu seria capaz de bater em alguém. 

Beatrice trocou um olhar confidente com Frederik, Henry e até o recém chegado, Salazar. Só pela aparência dela, somada a sua baixa estatura, nenhum deles realmente imaginaria que a jovem dama era capaz de agredir alguém. A italiana a encarou com carinho, depois comentou:

— Acredito que todos considerariam indecoroso, mas entre homens é um esporte, não? Não vejo a razão de ser um absurdo completo.

— De fato. — Frederik concordou. — Só me intriga a vestimenta adequada. Certamente não iriam querer usar esses belos vestidos… E chemises são restritas apenas a alguns olhos.

O rubor subiu em Beatrice por alguns instantes. Havia algo no olhar dele e no jeito que ele havia mencionado sobre peças de roupas íntimas que provocara lampejos em sua imaginação. É claro que poderia ser apenas sua impressão, pois Frederik se mostrava sempre muito humorado e não muito apegado ao pudor, mas ela decidiu morder a isca:

— Interessado em nos chamar para um ringue, senhor Strawell?

— Tenho que consultar Roffman primeiro.

As risadas foram inevitáveis. Nem mesmo o senhor Dashwood foi capaz de conter um breve riso, por mais discreto que tenha sido. Salazar suspirou e, com um sorriso sem graça,levantou as mãos em rendição:

— Desejo reforçar entre os presentes que eu não tenho um único ringue, seja em qual cidade for.

— Não fique tão sério. — Frederik estalou a língua. — Há todo tipo de bolinho e doce aqui, sem uma única grama de amêndoa. Especialmente para você.

Henry soltou um suspiro e revirou os olhos.

— Eu quase pensei que Frederik mandaria trazer um abacaxi fresco para esse chá.

— Posso providenciar isso para o próximo. — O primo respondeu de imediato, enquanto sua mão buscava uma fatia de pão. — E confesso que tive vontade de oferecer uma iguaria de milho vinda do sul, mas achei que poderia ser deveras exótico para esta tarde.

Comendo com parcimônia, Aurora pareceu titubear um pouco e questionou:

— Qual é a preocupação com a amêndoa?

— Alergia. — Salazar respondeu, com um leve suspiro.

— Oh! Sinto muito.

— Tudo bem. — Sorriu, talvez para que a loira não se sentisse triste. — Não é tão comum assim colocarem amêndoas nas comidas, então não sinto falta.

Aurora anuiu, concordando com a afirmação e em sequência saboreando o sabor de um pão de grãos, com a xícara de chá ao lado misturada com um pouco de leite. Enquanto alternava entre as opções da mesa — pois queria provar um pouco de cada prato — Beatrice prosseguia a conversa com todos. Era uma surpresa boa que os cinco estivessem em um diálogo tão agradável quanto o dia, e os assuntos fossem igualmente leves: A comida, o tempo, o verão passado… Todo o constrangimento que pudesse existir em um primeiro encontro entre desconhecidos tinha se esvaído e a italiana suspeitava que o jeito de Frederik fosse responsável por isso.

É claro que Salazar parecia ter opiniões diferentes e talvez Beatrice concordasse com ele, caso estivesse na mesma posição, no entanto… O rapaz de sorriso fácil e certo apreço pela cor vermelha parecia orquestrar bem aquele evento social. Fazia com que todos se sentissem incluídos e atuantes na conversa, tanto é que agora Henry e Aurora trocavam palavras constantemente. E Frederik passava a impressão de estar entusiasmado com isso.

Deveras entusiasmado.

Uma suspeita surgiu em Beatrice e ela passaria mais tempo observando a conversa, entretanto Salazar inclinou-se na direção de Henry e os dois conversaram baixo enquanto Frederik falava mais algum desastre sobre sua última viagem. Henry, por sua vez, ouviu o que o amigo dizia com atenção, entre a seriedade e… O humor

Mal houve tempo para que ela ficasse confusa. Salazar se levantou de súbito, com a formalidade estampada em seu rosto e em sua voz.  

— Eu lamento informar que preciso me retirar, senhoritas. Há outro compromisso me esperando.

— Sim. — Henry confirmou, encarando o primo de um jeito muito calmo e articulado. — Salazar havia mencionado isso anteriormente, Frederik. É por isso que chegou tarde e deverá partir cedo.

Era quase imperceptível, mas existia certa tensão ali. Algo que Frederik não parecia saber realmente, mas que notou que Henry e Salazar sabiam — e tal fato o deixou aborrecido. A despeito de quaisquer considerações que o outro tivesse sobre a situação, Salazar voltou-se às jovens damas e sorriu:

— Foi um prazer conhecer as duas. Espero revê-las no futuro, sim?

Frederik enfim sorriu.

— Não me dê falsas esperanças, Roffman. Vou marcar um novo encontro e conto com sua presença.

Ele lhe ofereceu um sorriso de lado — apenas meio incomodado — e então realizou uma mesura educada.

Adeus.

Todos responderam e em um consenso silencioso, optaram por não comentar sobre a repentina partida de Salazar Roffman. Ouviu-se o som do vento, o chilrear dos pássaros e conversas esparsas no restante do parque antes de Frederik iniciar um novo assunto. 

— Então me diga, senhorita Wintergarden… — Aurora tomou um leve susto, soltando a colher que mexia o açúcar no chá. — Você veio da Irlanda, certo? Meu primo Henry é fascinado pela sua terra e acredito que todos nós adoraríamos ouvir o que você tem a dizer sobre lá. 

— Bem, eu… — Ela engoliu seco e sorriu. — Eu sinto falta de lá.

Novamente, Frederik havia tornado alguém o centro da conversa e normalmente Beatrice consideraria tal atitude intimidadora, mas a forma que aquela tarde se desenrolava trazia um alento natural, acolhedor, como se todos já se conhecessem há anos. Ah, se os encontros sociais fossem sempre assim…

E quem sabe fossem, se Frederik estivesse lá. Com aqueles novos conhecidos e amizades fortalecidas, Beatrice suspeitava que teria mais confiança e ânimo para frequentar festas, parques ou quaisquer outros eventos. Aurora compartilhava do mesmo sentimento enquanto falava sobre o clima e a cor verde da Irlanda.

Os três se puseram a ouvir com atenção e interesse, vez ou outra participando e fazendo perguntas. Frederik parecia animado não apenas pelo assunto, mas pelo primo ter se engajado na conversa, tanto que — de novo — Beatrice tinha suas suspeitas de que ele ardia por ser um cupido e, quando de tempos em tempos ele a encarava com aqueles seus olhos escuros, a jovem tinha quase a certeza de sentir uma flechada em seu peito. Com um tom casual e quase desinteressado, de repente Frederik disse:

— A conversa está deveras interessante, mas tarde está tão linda… — Olhou primeiro o horizonte, depois sua atenção recaiu com peso sobre a figura da italiana. — Senhorita D'Angelo, se incomodaria em passear um pouco comigo no parque? Desejo ir até a ponte, se for do seu agrado.

Beatrice poucas vezes corria riscos na vida. Sequer se aproximara de um único evento indecoroso ou algo que provocasse fofoca. Mas, sabendo que era esperado pela sociedade que em breve se casasse pela tradição e, muitas vezes achando que sua vida poderia ter um pouco mais de movimento, ela fez uma escolha. Esperava que ninguém tivesse notado o seu rubor ou a forma que tinha morrido levemente os lábios antes de responder:

— Seria adorável.

Frederik sorriu satisfeito.

— Espero que não se incomodem também. Voltamos antes que terminem o chá e, enquanto isso, vocês podem prosseguir com as belezas da Irlanda.

Henry nada pôde fazer senão sacudir a cabeça levemente.

— Sei que é apenas um capricho seu, Frederik. Eu e a senhorita Wintergarden ficaremos bem, podem ir.

O rapaz então se levantou e foi até Beatrice, oferecendo-lhe o braço para se apoiar durante a caminhada e ela ficou mais do que satisfeita em aceitar o gesto. Os dois logo partiram em um ritmo lento entre os caminhos de pedras na grama bem aparada do parque, passando por arbustos e outras pessoas. Não trocaram palavras. Beatrice alternava o olhar entre a vegetação e os pássaros, ainda que desejasse encarar Frederik por pura curiosidade.

Quando o fez, logo desviou o olhar: o rapaz estava observando-a.

Ele riu de sua timidez e soltou-a quando afinal chegaram na ponte. Era um local agradável e fresco, onde era possível enxergar patos no lago e a área onde costumava-se fazer chás ou piqueniques, ou seja, eles podiam tanto observar o casal que ficou à mesa quanto podiam ser observados. 

Beatrice fingiu ficar distraída com a paisagem, ciente em seu íntimo de que sua atuação não era nada convincente. Talvez ele até estivesse se divertindo às suas custas e não culpava-o. O fato é que a italiana tinha uma suspeita e não seria capaz de dormir aquela noite sem remoer tal pensamento inúmeras vezes, de modo que a coragem se acumulou em sua voz e, virando-se, ela disse:

— Perdoe-me a indiscrição, mas acredito que esteja tentando juntar os dois.

Nunca um sorriso ladino tinha sido tão atraente quanto o dele:

— Eu tinha certeza de que era inteligente, senhorita D'Angelo. Posso te chamar de Beatrice? É um nome agradável demais para não ser dito.

A jovem desviou o rosto e encostou as mãos com delicadeza nos apoios da ponte.

— Não acha que está forçando demais as coisas?

— Sobre chamá-la pelo primeiro nome ou sobre os dois? — Ele se aproximou rindo e ambos observaram Henry e Aurora à distância. — Eles parecem se divertir. E você também parece achar a situação… Curiosa.

— Margot estava certa em dizer que a tarde seria imprevisível.

— Arrependeu-se de vir?

Ainda não.

Hm, isso seria um desafio? Eu realmente detestaria que você saísse decepcionada daqui.

Beatrice sacudiu o rosto, encabulada. Ele era impossível. Mas ela tinha mais mistérios a resolver do que desvendar a razão pela qual seu coração batia rápido:

— Como concluiu que os dois se dariam bem?

— Foi só um palpite. — Ele deu de ombros, muito sucinto. — Talvez você saiba disso… Henry é viúvo. Eu estive com ele quando tudo aconteceu. Foram dias, meses terríveis. E vê-lo se permitir rir um pouco, conhecer outras pessoas… É bom. — Ficou em silêncio de súbito, com uma seriedade que não pertencia ao seu rosto. Minutos escorreram e ele permaneceu assim, quieto e imerso em lembranças que ela não podia ver. — Você sente falta de falar seu idioma materno, Beatrice?

— Sim. — Franziu a testa, confusa pela troca de assunto e nem um pouco incomodada por ele lhe chamar apenas por Beatrice. Talvez estivesse somente um tanto triste pela constatação de que realmente não praticava muito seu idioma. — Quero dizer… Estou acostumada já a não dizê-lo.

— Entendo. Mas às vezes falta algo, não? Acredito que é assim que meu primo se sinta… Com saudades de dizer algo numa língua que alguém naturalmente entenda. — Continuou, embora não se referisse a um idioma de fato. Era uma linguagem ainda mais sutil e difícil de dominar, palavras e gestos por onde o coração transbordava. — Mas, — Deu de ombros. — Estou certo de que ninguém espera sensibilidade da minha parte.

— Você certamente tem outras qualidades mais… Evidentes.

Ele arqueou a sobrancelha, desconfiado, mas voltando a sorrir.

— É bom que as pessoas pensem que sou um falastrão tolo, apenas. É mais fácil.

Beatrice comprimiu os lábios, desacreditada. Normalmente ela evitaria pessoas exibidas demais, pois o perigo de serem esnobes era muito alto. Todavia, Frederik se mostrava ainda mais perigoso, pois havia algo genuíno em seus olhos que o tornavam simplesmente fascinante. 

Seu irmão de certo não aprovaria aquela conversa. Somente tinha sido leniente com aquele convite porque haveria mais gente no parque e — supostamente — o irmão de Margot Berkshire estaria lá. E agora… Bem, agora desvendava planos de cupido de um rapaz deveras singular

— E você espera que eu mantenha isso em segredo? Sobre… Sobre juntar os dois.

— Sim, eu assumi isso caso você admitisse estar ciente do meu plano nada sólido. Não sei o que virá depois, ao menos a senhorita parece saber o que falar e quando falar.

— Mas não por um preço?

— Oh, uma barganha! — Ele bateu uma palma e Beatrice não pode fazer mais nada além de rir. Os olhos dele brilhavam como se estivessem dentro de mim jogo infantil. — Gosto disso. O que eu poderia oferecer à senhorita em troca de sua delicada discrição?

A dama engoliu seco.

— Eu… Eu não sei, no momento.

— Uma barganha em aberto é algo perigoso, Beatrice. Posso compensá-la, no entanto, — Frederik ergueu o dedo indicador, alertando-a. — Deverá confiar em mim.

— Não confio.

— Aí é algo que eu não posso mudar. — Deu de ombros. — Diga-me o que quer e eu estarei feliz em lhe oferecer. Do contrário, deverá se contentar com surpresas. 

— Eu pensarei em algo.

— Ótimo. — Ele lhe ofereceu o braço novamente, para que pudessem caminhar. — Será um prazer fazer negócios com a senhorita.

Beatrice riu mais uma vez, pronta para realizar o caminho de volta.

A metros de distância, Aurora Wintergarden terminava de narrar mais alguns detalhes sobre sua terra natal. Ao mesmo tempo que agradava-lhe o coração falar sobre as paisagens naturais da Irlanda, o clima e certos costumes, considerava o assunto perigoso. Sentia o sotaque voltando — fato que não era bem visto pelas pessoas, tanto é que a família Wintergarden havia contratado um tutor para corrigir sua fala nos primeiros anos em que passou a viver com eles — e tinha que tomar cuidado para não explorar demais temas que levassem a concluir que sim, Aurora pertencera a uma camada menos abastada da sociedade enquanto morava lá.

Os pais eram donos de uma quinta, mas com mais seis bocas para alimentar e instabilidades na agricultura, não sobravam-lhe dinheiro ou luxos. Portanto, Aurora estava acostumada ao trabalho no campo e a costurar para famílias mais ricas. Nesta sua última ocupação, tinha certo talento e foi deste modo que o casal Wintergarden — de férias pelo país — descobriu a moça solteira com verdadeiro potencial para se tornar uma dama. Acolheram-na, e ela foi educada com esmero nos anos seguintes para se casar e ganhar um título de peso. 

Aurora era uma boa aluna. Por mais que ficasse incerta ou envergonhada como agir em situações adversas, ela sabia dos protocolos a serem seguidos e das normas de etiqueta. Sua memória guardava trechos das missas e sua devoção à religião havia sido também absorvida — imposta — pelos Wintergarden, porque aquilo parecia simplesmente… correto. Se falhava na pintura ou na dança, compensava em sua cortesia, gentileza e nos bordados. Seu próprio corpo era ciente do que era esperado dela, uma jovem debutante. Com um bom casamento, além de prosseguir com o nome e as posses dos Wintergarden, ela seria capaz de enfim de tirar a própria família da pobreza, portanto… a irlandesa tinha todas as motivações para seguir com os planos traçados para ela, tanto é que Lady Wintergarden havia ficado exultante com o convite do — talvez — futuro Conde de Stormhold. 

Não esperava gostar tanto do evento assim, na realidade. Ela se sentira leve e ouvida, finalmente com espaço para falar — mesmo que brevemente — sobre coisas que eram caras ao seu coração. No pequeno espaço dentro do peito em que guardava seus sonhos, ela se imaginava sendo um pouco mais… egoísta. Detestava a palavra, mas não saberia caracterizar melhor seus anseios de viver um pouco para si. Então, ainda que não fosse cortejada por nenhum deles ou tivesse recebido uma proposta séria, ela gostara de sair um pouco dos olhos atentos dos pais adotivos apenas para conversar um pouco. Viver uma pequena aventura inócua e breve.

Ela encarou um pouco Beatrice e Frederik à distância, encantada com os dois. Conversavam cheios de sorrisos, quem sabe despreocupados com o futuro. Não era nada certo, mas ela podia imaginá-los vivendo uma fantasia, um sonho. E como Aurora ardia por viver algo semelhante.

— Não se assuste com Frederik, senhorita Wintergarden. — Henry despertou-a dos devaneios. Mais um pouco, Aurora chegaria a cogitar o tal ringue para mulheres para sair da rotina, mesmo que não tivesse imensa força. — Ele não passa de uma ave colorida cantando na primavera.

Ela sorriu com timidez.

— É difícil não notá-lo.

— Certamente. — respondeu-lhe com um tom amável. — Foi muito interessante ouvir tanto sobre a sua terra natal, o que me leva a seguinte pergunta: O que uma irlandesa orgulhosa de seu país veio fazer na tão barulhenta Londres?

— Oh, bem… — Engoliu em seco. Era difícil encará-lo e era mais difícil ainda mentir. Ela mediu bem as palavras na boca e optou por uma afirmação simples, embora verdadeira. — Eu não levava a mesma vida lá que levo aqui, senhor Dashwood. Os Wintergarden me acolheram e aqui estou, com muito pouco do meu sotaque.

Henry Dashwood era observador, isso ela tinha notado. Sua face variava entre a calmaria e um toque de humor, mas mesmo rindo ele parecia prestar muita atenção ao seu redor. Não de uma maneira má intencionada, porém. Aliás, não havia sombra em seu rosto que indicasse uma gota de escuridão em sua índole e ele, apesar de um tanto discreto e até melancólico, soava sempre verdadeiro.

Diferentemente do estranho na Igreja. Michael Caine, o pianista cujos olhos muito brilhavam, mas pouco diziam.

O rapaz anuiu com tranquilidade, absorvendo o significado por trás da afirmação de Aurora. Parecia enxergar tudo, inclusive o desejo dela de manter a questão de lado:

— Compreendo.

— E o senhor também está longe de casa. — comentou, colocando uma mecha do cabelo loiro escuro para trás. Era melhor mudar de assunto, sem falar que ela julgou educado conversar mais sobre os interesses do rapaz. — Veio de Gales?

— Não, mas perto. Condado de Stormhold, próximo à fronteira. É um lugar bonito e calmo, mas existem festivais frequentes. — O riso dele foi breve. — Acho que todos nós ansiamos um pouco de aventura, não?

Aurora entendia bem o sentimento. Bem demais.

— Eu suponho que sim.

— Ao menos temos um pouco de nossa culinária. — Ele deu de ombros, escolhendo um tipo de pão típico do norte. — Embora meus conterrâneos se lembrem mais do whisky irlandês.

Ainda restavam pratos com bolinhos açucarados, travessas com fatias de pão e geleias; fora o leite, o chá e outros doces com ingredientes diferentes — talvez especiarias mais nobres — que um viajante como Frederik teria acesso. Aurora inspirou fundo e, entre o assombro e a preocupação, comentou:

— Acredito que há mais do que podemos comer.

— Não se aflija, isso será doado à paróquia mais próxima junto a nossas doações quinzenais.

Aquilo acalmou seus nervos. Desperdício a deixava nervosa.

Oh. É uma atitude louvável. — Pegou o bule de porcelana. — Mais chá, senhor Dashwood?

— Aceito. E não tema me chamar pelo primeiro nome, caso não seja um constrangimento. “Senhor” às vezes me faz sentir velho.

O peso do bule junto com o chá foi demais para seus braços e a súbita lembrança do pianista falando seu nome  — e como Aurora poderia chamá-lo apenas por Michael — em nada ajudou sua coordenação nas mãos. Em um piscar de olhos, ela tinha derrubado a porcelana na mesa e todo o chá em suas luvas, nas mãos de Henry, na toalha...

— Oh, perdão! Não foi intenção…

Ele somente riu, colocando os guardanapos de panos para evitar que o acidente se espalhasse pela mesa. Fez um gesto rápido para indicar aos criados de que estava tudo bem e não havia necessidade de uma intervenção, enquanto ajudava a limpar um pouco da pequena bagunça.

— Está tudo bem, é só chá. Não acha melhor tirar as luvas? Ficaram ensopadas.

Aurora somente piscou, lançada de volta para o dia em que recebera a cicatriz em seu braço. Tinha apenas treze anos na época e sua querida irmã Eleanor, dez. Mesmo com a pouca idade das duas, o pai delas não considerou má ideia tentar mandar a mais nova para um convento — a despeito dos rumores de maus tratos lá. E ele não hesitou em queimar o braço de Aurora com um atiçador de brasas quando ela tentou impedir que levassem a irmã.

A queimadura ainda estava lá, debaixo de sua luva na mão direita e cobria quase toda a extensão de seu antebraço. Tinha vergonha daquela marca, mesmo com algo dentro de si sussurrando-lhe que tal sentimento era infundado. O fato é que julgava que ninguém iria se interessar por uma mulher com cicatrizes, ainda mais quando muitos ainda consideravam as ações dos pais sempre corretas, independente do quê.

Ela piscou de novo e de repente estava de volta para o tempo presente, com Henry encarando-lhe com apreensão. Parecia ter visto a mesma cena que se repetia de novo e de novo atrás das pálpebras dela própria. Aurora não foi capaz de falar nada. Nem de pensar em um único argumento ou um sorriso falso, tanto que recriminava-se por ser tola e inadequada. O chá morno continuava a pingar de suas luvas.

— Sabe, — Henry segurou o próprio queixo por alguns segundos, acomodando-se na cadeira. —  Pouco depois do meu acidente com cavalo, fiquei tentado a não usar uma bengala. Era desconfortável andar sem ela, mas… as pessoas me olham como um coitado ou um ancião quando a uso. O fato é que, depois de um tempo, eu optei por me manter confortável, senhorita Wintergarden. E, se puder aceitar a opinião de um conhecido, prefiro que se mantenha assim; seja para tirar ou manter as luvas. 

A aceitação incondicional dele quase provocou lágrimas em Aurora. 

— É apenas… — Sua voz estava sufocada na garganta. — Complicado.

— Então permita-me oferecer esse lenço, sim?

Após a dama ter concordado com gesto breve da cabeça, Henry passou a enxugar os braços dela — ainda enluvados — com o lenço verde que tirara do bolso interno do casaco. Tocava-a com leveza, tirando o excesso de umidade do tecido, e não fez grandes cerimônias ou discursos sobre a ocasião. Para seu alívio, também não perguntou mais nada.

Quando Frederik e Beatrice chegaram, Henry Dashwood comentou de maneira breve sobre o acidente enquanto Aurora fingia limpar um cisco abaixo do olho. Iria guardar o lenço com carinho até que fosse devolvê-lo.

Por alguns dias, o dinheiro nas mãos de Michael rendeu: pagou suas dívidas mais atrasadas, como o aluguel e o dois bares; se alimentou bem e melhorou um pouco da tosse; comprou um cobertor mais grosso e até mesmo resolveu suas pendências com algumas moças do bordel que — para seu orgulho próprio  — não tinham feito questão de lhe cobrar até então. A quantia que Frederik lhe dera não era eterna, mas pôde cobrir as somas passadas que tiravam-lhe o sono e ainda garantia mais algumas semanas. Diabos, ele até doou uma parcela para a caridade na igreja do padre Ward!

Entretanto, o pianista estava longe de ser perfeito.

Reduzir a quantidade de álcool que ingeria parecia uma alternativa fácil, mas se provou uma tarefa tão desafiadora e ingrata quanto segurar o vento. O brandy não parecia tão forte. Vinho? Só aquele seco do porto. E tinha em todo lugar. Ali, na pensão; em restaurantes e bares da cidade. Em cada lugar que iria tocar para ganhar um trocado. Era tentador aceitar e sempre lhe ofereciam. Muito

Havia também a questão do cigarro. Michael não quis parar com o fumo ao mesmo tempo, pois tentou anteriormente e falhara de forma miserável. No entanto, continuar com um cigarro entre os dedos parecia longe de ajudar. Era o álcool que chamava por um cigarro ou era o cigarro que pedia um copo de uísque?

Ele contou os dias em que ficou sem beber nada mais que água e um pouco de leite pela manhã. Talvez cortar toda e qualquer gota de álcool fosse melhor do que tomar uma quantidade insossa. Talvez. Não dormia bem, não apagava direto em sua cama quando chegava de madrugada de alguma festa — onde seus dedos trabalharam incansavelmente para tocar inúmeras melodias e sua boca repetia a mesma canção: Não, obrigado. Não estou bebendo. 

Até que tomou vinho para pegar no sono. Depois, um pouco de licor oferecido pelo proprietário do local em que havia sido contratado para aquela noite. Ele sabia que tinha que parar. Outra alternativa seria entregar suas reservas de dinheiro para alguém confiável e retirar apenas quando necessário, no entanto… Além das poucas opções de pessoas de confiança, ele não suportaria passar pela humilhação. Estava ciente de que pediria pelo dinheiro para comprar mais uma garrafa. E, se estivesse em mais um episódio frágil de seus próprios tormentos, imploraria por isso.

E esta seria uma experiência que ele não queria para si.

Sua sede secou garrafas e seu dinheiro. Em sua opinião enviesada e tola, ele se tornava um pianista verdadeiramente talentoso quando ébrio — ou era isto que parte de si repetia em seus pensamentos. O fato é que agora tinha poucas moedas no fundo da gaveta e se questionava como seria o próximo mês. Em sua cabeça, circulava a memória nublada dos últimos goles e a explosão de uma briga sem sentido no bar Garrison.

Ele olhou para o reflexo no espelho apoiado em sua escrivaninha, capturando a imagem de seus olhos cansados. Já fazia alguns dias desde aquela briga — cujo motivo não se recordava — e tanto seus machucados quanto sua profunda ressaca se curavam. O problema era um ferimento pouco acima de sua nuca, causado por cacos de vidro. Seu cabelo teve que ser cortado e, naquele instante, ele acertava o restante para ficar mais apresentável. Na realidade, outra pessoa fazia o serviço.

Continuou a encarar sua imagem no espelho. Patético. Ao menos não perdia a compostura em eventos ou lugares mais importantes e aristocráticos, como o clube de Anthony Hartridge. Isto sim abalaria qualquer possibilidade de continuar trabalhando com música. Inspirou fundo enquanto sentia as mãos da mulher atrás de si arrumarem seus cabelos pretos, expulsando os fios soltos que havia cortado. Depois, ele observou o reflexo do sorriso satisfeito dela.

— Michael Caine, o pianista. — Ela apertou os ombros dele, em seguida espanou qualquer resíduo que existisse nas roupas dele. — Em toda a sua glória.

De fato, seu aspecto havia melhorado bastante. Ao invés do corte retalhado que um enfermeiro fez em seu cabelo para cuidar da ferida — e até mesmo distante dos cortes de cabelo baratos que podia pagar por aí — Michael agora ostentava algo mais uniforme e menos selvagem, ainda que excêntrico. Laterais e nuca com o cabelo curto, enquanto o topo era mais longo.

Ele até conseguiu sorrir. Era difícil não ser afetado pelo olhar inquisidor e divertido de Irina Praskovia — outra moradora da pensão — que exigia de maneira silenciosa um elogio pelo seu trabalho. E ele não seria capaz de negar tal pedido àqueles olhos verdes.

— O que seria da minha reputação sem a senhorita?

Levantou-se e começou a conferir o restante de seu traje, pois logo às 19h tinha compromisso marcado no clube de cavalheiros e iria a pé. Seu quarto na pensão não era grande o bastante, mas Irina deu um passo para trás para que ele tivesse espaço e também para admirar o resultado do corte de cabelo. Não era a profissão da russa, embora Caine lhe desse crédito por ser deveras competente.

— Sabemos que seria a mesma reputação, senhor Caine. Se não eu fosse te ajudar, seria outra pessoa… — Ela se aproximou para ajeitar a gola dele. — E ouso dizer que você próprio daria conta.

— Eu certamente não teria um lenço tão elegante.

Mais uma vez ela sorriu, agora sim satisfeita pelo reconhecimento. Michael não via problemas em continuar com o guarda roupa preto e branco, mas a russa insistiu — sem poupar aquele seu sotaque — no lenço azul escuro. 

— Você é gentil demais. — Disse ela, desviando o olhar. 

— Não tenho motivos para não ser gentil com você, Irina.

Ela suspirou. Na realidade, a sociedade costumava ser menos acolhedora com a estrangeira. Qualquer um poderia julgá-la pela história de um rico cavalheiro que viajou à Rússia com a esposa durante meses e no fim retornou com mais a amante e uma filha bastarda. O tal cavalheiro, John Arden, depois faleceu em um naufrágio e tudo que restava a Irina eram sua filha e a mesada que o homem havia deixado para as duas até o fim de sua vida.

Amantes eram comuns e muitos relacionamentos extraconjugais tornavam-se públicos, tanto que fazia parte da honra de um homem sustentar adequadamente a mulher com quem compartilhava suas noites. Nada disso, portanto, deveria chocar severamente as pessoas, mas o fato de Lady Arden — a esposa legítima — ter viajado com o marido na época e depois se tornado uma viúva tão cedo e sem herdeiros deixava a situação mais amarga. Já fazia alguns anos e o alarde geral havia baixado, felizmente. Logo viria o oitavo aniversário da menina e Irina completaria trinta e cinco.

— De fato, nós temos um bom acordo. Você dá algumas aulas para Sasha, e eu te ajudo aqui e ali. E, — Ela elevou o tom de voz, ao mesmo tempo que guardava a tesoura e a navalha em um estojo. — Devo dizer que tirar sangue da sua camisa foi a pior coisa que fiz essa semana. Da próxima vez que brigar, tire a camisa antes.

A expressão do homem mal se alterou, porém ele não conteve o sarcasmo na voz. 

— Uma visão e tanto.

Michael não saberia dizer se a ligeira definição dos músculos de seus braços — ou os calos nas mãos — eram objetos de desejo e duvidava que sua pele, pouco beijada pelo sol, provocasse uma reação positiva de quem quer que testemunhasse tal coisa. Ele só deu de ombros e puxou um cigarro para si, acendendo-o com um palito de fósforo.

— E onde está Sasha?

— Ouvindo nossa conversa atrás da porta. 

Ele encarou a fresta e, de fato, viu uma sombra por baixo — a silhueta dos pés da filha dela. Encarou Irina de volta, sem saber o que pensar disso, enquanto a russa explicava:

— Faz dois dias que ela quer te dar um desenho, mas está tímida demais.— Irina disse ao largar o estojo de volta na escrivaninha, para depois aproximar-se da maçaneta. Girou-a em único movimento e abriu a porta, porém a menina já havia partido. Foi necessário inclinar seu corpo para dentro do corredor e gritar algo na sua língua nativa para chamá-la. — Sasha!

Ao ouvir os passos dela chegando mais perto — talvez correndo — ele se sentou à escrivaninha em busca do cinzeiro. Apagou o cigarro à tempo, pois logo a menina estava ali com seu vestido rosa pálido de algodão e as madeixas ruivas herdadas da mãe. Tinha aquele seu ar inocente, tanto que Michael só era capaz de chamá-la pelo apelido, nunca pelo sério Alexandra. Só achava curioso quando a mãe dela inventava outros nomes, como o demasiadamente russo Sashenka. Hesitante, a menina ficou à porta com um envelope em mãos. Em seguida, Irina instruiu-a com um tom formal:

— Primeiro cumprimente seu professor.

— Céus, Irina. — Dispensou a etiqueta. Havia passado tempo demais com ela para se ater a regras de cortesia rígidas. — Venha cá, Sasha.

Ela foi ao seu encontro rápido e não demorou para que Michael a colocasse apoiada em seu joelho esquerdo, mesmo que seu corpo estivesse dolorido. Esperava que a menina não sentisse o cheiro do cigarro enquanto a segurava.

— Sua mãe contou que tem um presente para me dar, huh?

— É.

O papel dentro do envelope era ligeiramente amarelado e grosso, feito para desenhos ou cartas importantes. Michael soltou um assovio impressionado. Irina não economizava na educação ou nos pertences da filha, e Sasha não havia poupado esforços para ilustrar com lápis um salão com um piano e duas figuras: um homem e uma garota.

Oh. Você é muito boa nisso, sabia?

— Sou eu e você. — Ela disse, como toda criança acostumada a ter que explicar seus desenhos. —  Em um piano de cauda, igual na sala da Lady Fleming. 

A memória dela era boa para se lembrar de um comentário feito por Michael, durante uma breve aula de piano, sobre como desejava ter um piano de cauda. Isso somente o fez redobrar o cuidado com as palavras na presença dela.

— Obrigado, Sasha. É um presente adorável e eu vou deixá-lo exposto junto com minhas coisas. — Apoiou o papel junto com seu próprio material de escrita. — O que acha?

Ela anuiu naquele seu jeito pueril, um tanto encabulada, depois desceu do joelho dele para ir de encontro com a mãe. Irina segurava o estojo que trouxera e novamente lembrou sua filha a usar a boa educação:

— Agora se despeça do seu professor. Nós iremos jantar.

Sasha realizou uma breve mesura antes de sair correndo para o quarto da mãe:

— Adeus, senhor Caine.

— Adeus, senhorita Praskovia.

Irina permaneceu no batente da porta por alguns segundos antes de encarar a fundo o pianista. Ele não era tolo o bastante para não faltar o peso daquele olhar, ainda que fosse difícil desvendar o significado de súbita seriedade. A russa era assim, entre sorrisos e silêncios enigmáticos. Existiam mais histórias trágicas por trás do jeito confiante de Irina Praskovia. Uma razão pela qual ela parecia ter sido educada como uma nobre, mas reduzida a amante; um motivo para se importar demasiadamente com a instrução da filha, mas não sair da pensão. Podiam ser os olhos de Michael, no entanto ele considerava que havia ocasiões em que ela atendia ao seu próprio nome como uma atriz chamada pelo nome de um personagem: havia reconhecimento, mas distância. Uma máscara. E um pouco de tristeza também. Quem ela costumava ser na Rússia?

Às vezes, ele a escutava cantar em sua língua materna do outro quarto, como um pássaro vermelho em uma gaiola. Um som melancólico, agridoce, pois estava longe demais do ninho. Mas este era outro assunto sobre qual não falavam.

— Juízo, Michael. — Irina disse por fim. — Parece uma noite importante.

— Os alcoólatras e fumantes mais endinheirados de Londres estarão lá para perder um pouco da própria fortuna. — Deu de ombros, pegando o cigarro de volta do cinzeiro. — Só isso.

— Então aposte um xelim por mim.

— Só um xelim?

Ela sorriu, embora sua face servisse de aviso. Ambos não conversavam sobre as coisas difíceis demais e tampouco trocavam conselhos de como guiar a própria vida. Ainda assim, Irina não queria que Michael entrasse em novos apuros e sua expressão deixava aquilo claro. Após uma breve despedida, ela saiu para encontrar com a filha, deixando o pianista a sós com seus pensamentos. 

Esta noite ele tentaria permanecer sóbrio no clube de cavalheiros. Era um pouco mais fácil por Anthony Hartridge realmente detestar que o músico bebesse durante os intervalos entre as apresentações, mas Michael se esforçaria de verdade. Encarou uma última vez o espelho antes de partir, observando o azul do lenço e de seus olhos. Talvez de fato apostasse uma moeda para testar sua sorte.


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Notas finais do capítulo

* Abacaxis eram iguarias tão especiais que podiam ser alugados em festas.
* Sim, eu fiz uma referência à pamonhas hahah
* Durante a Regência Britânica, amantes fixas eram pagas. Dei uma pesquisadinha sobre isso depois de ver um comentário sobre Bridgerton, alegando que o Anthony tecnicamente poderia ter ficado com a cantora de ópera.
* Tentei revisar o quanto pude, mas ainda pode escapar alguma coisa. É só falar se encontrar algum erro!
* Hm, testemunhamos duas personagens que querem aventuras - cada uma à sua maneira. E o que o Salazar foi fazer, hein? Saberemos no futuro hihihi Também estamos curiosas para saber o que acharam das novas personagens, Irina & Sasha!