Arranjos & Desarranjos escrita por Lily Masen, Shalashaska


Capítulo 3
Cigarros & Lunetas


Notas iniciais do capítulo

Olá, todo mundo ♥ Hoje quem está falando é a Shalashaska!
Desejo a todos que fizeram o ENEM hoje (segundo dia) só sucesso. Sei o quanto a prova é exaustiva e espero do fundo do coração que vocês tenham ido bem ♥
A quem não prestou a prova, espero que seu dia tenha sido ótimo.
O capítulo está enorme e nos esforçamos muito para terminá-lo a tempo. Está quentíssimo, recém-saído do forno, então acredito que esteja apetitoso também haha.
Boa leitura, meus amores.



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Os lábios de Hanabi exibiam um sorriso discreto e adorável. No entanto, a realidade era que seu coração batia rápido dentro do peito, ao passo que sua mente parecia flutuar junto a melodia do salão e acima das dúzias de conversas. A jovem considerava-se articulada e educada como qualquer outra de sua idade e classe deveria ser, mas estar em um salão cheio de pessoas novas às quais deveria fingir interesse em conhecer era um tanto perturbador.

Além disso,estar na página da frente de um jornaleco de fofocas não foi nenhuma vantagem. Tudo o que fez foi aumentar a curiosidade das pessoas em relação a ela. Ela conseguia imaginar as perguntas pairando no ar, entre as mulheres e homens abastados que preenchiam o salão. “Por que a família Westminster retornou a Londres?” diriam. “Qual é o significado de seu nome, afinal?” Algo que o dito jornaleco mencionou e sequer se deu o trabalho de esclarecer.

Ela já tinha explicado uma dúzia de vezes naquela noite e talvez tivesse que repetir dúzias de vezes mais. “Fogos de artifício.” dizia com um sorriso emplastrado no rosto. “Nasci na mesma época do festival do país natal de minha mãe.”

Hanabi ouviu mais de uma vez a suposição de que ela, por extensão, deveria gostar muito de festas. Isso não era lá uma mentira, pois comemorações, boa comida e música eram sempre bem-vindos. Apesar de preferir um estilo mais casual e cores pastéis, a moça gostava de se vestir apropriadamente para cada ocasião, o que resultava em um armário variado. Entretanto, ela preferia a companhia de conhecidos, ou que ao menos lhe dessem tempo de memorizar o nome das pessoas e seus respectivos rostos. Ela esfregou as mãos, nervosa. Não admitiria para ninguém, mas temia a rejeição das damas e dos rapazes ali presentes. Assim como a possibilidade de sentir-se deslocada, que também a amedrontava. Ela até ouvira dizer que havia um marquês e futuro duque naquele baile. Ah, como o seu pai ficaria orgulhoso se ela se tornasse uma duquesa. Ela tinha certeza que um título era a única coisa que poderia oferecer a ele que o faria valorizá-la mais que aos seus irmãos. Mesmo que Hanabi tivesse o costume de dizer que amava sua família — desde que estivessem a uma distância considerável — ela ainda se esforçava para orgulhá-los. Entretanto, se quisesse fazer isso, precisava se acalmar. Os irmãos mais velhos estavam perdidos na multidão, assim como seus pais. Não a surpreendia que eles a tivessem abandonado num momento de dificuldade como aquele, no qual não conhecia uma alma sequer e tinha apenas a si como companhia. Desejou que sua timidez a abandonasse também, mas sabia que ela precisava de um empurrãozinho para isso.

Ela aproveitou que nenhum par de olhos estava voltado para si e escapou para os jardins da propriedade, puxando do espaço entre os seios um cigarro de emergência, como ela costumava chamar. No entanto, quando buscou a luz que resolveria os seus problemas mais urgentes, notou que não estava ali. Mas que bela cabeça, a sua, esquecera-se totalmente do fósforo. 

— Nenhuma dama que se preza foge do baile para fumar escondida, minha querida irmã. — Hideo apareceu, como um cavaleiro de armadura brilhante, com um cigarro aceso entre seus dedos. 

— Ah, não enche. — Hanabi aceitou o cigarro do irmão, usando a ponta em brasa para acender o seu. No entanto, quando ela lhe ofereceu o cigarro de volta, Hideo apenas derrubou-o no chão para apagá-lo com a ponta do sapato.

— As mulheres não gostam do cheiro da fumaça, e eu já fumei demais. 

O homem de cabelos escuros arrumou suas vestes, enquanto a garota simplesmente deu de ombros e deu uma tragada profunda. 

— Tenha cuidado com o seu hálito, quando voltar. Você não quer que descubram que você se parece mais com uma chaminé que com uma lady, não é? — Hideo alertou, ligeiramente receoso, mas ela retrucou com uma careta de desagrado.

— Não precisa se preocupar comigo. Eu estou bem. Juro. — garantiu, enquanto via o homem virar de costas e partir, deixando-a sozinha. De novo

Ela não se importava com o que aquela gente pomposa pensava. Que fossem pro inferno eles e todo o seu fingimento. Ela nunca conhecera ao fundo outra família que não a sua, mas tinha a mais plena certeza de que todos eles se esforçavam ainda mais que os Westminster para manter a fachada de perfeição. 

Hanabi suspirou. Infelizmente, ela não poderia se esconder ali para sempre, embora se sentisse tentada. Tragou pouco — lembrando-se do conselho do irmão — e com sopros de fumaça nervosos ao vento. Depois, encarou as estrelas no céu, derrotada. Tinha que voltar para dentro antes que sentissem sua falta, ou pior, antes que um boato qualquer surgisse, para logo ser publicado num detestável jornaleco de fofocas.

O tempo correu de modo estranho após Hanabi apagar o cigarro e retornar ao salão. Em sua cabeça, parecia que de repente havia aparecido ao lado de seu outro irmão, por mais que soubesse que isso não passava de uma mera sensação causada pelo nervosismo. Tinha andado em direção a festa e até trombou com uma moça que lhe parecia ir até o jardim. Naquele momento, porém, os minutos gotejavam devagar.

Com os pés fincados novamente ao piso de mármore, ela olhou fixamente para o casal de meia-idade à sua frente, embora sua atenção estivesse em qualquer outro lugar que não ali. Um de seus irmãos mais velhos, Hikaru, apertou sua mão levemente, para que ela se lembrasse de reagir à conversa com casal mais velho à sua frente, amigos de longa data dos Westminster. Hanabi assentiu com um sorriso, concordando com o que quer que tenha sido dito. Orou para que não fosse uma pergunta e, de fato, não era. Ela só alisou o vestido lilás e ajeitou as pontas de seus cabelos castanho-escuros, presos com belas presilhas. Preferia um coque do que aquele penteado, que deixava tais mechas pincelando seus ombros e provocando-lhe cócegas. Depois, encarou o irmão — que conduzia o diálogo — com falsa atenção, deixando sua mente vaguear pelo salão novamente. Seus ouvidos focaram na melodia ao fundo, mais especificamente nas notas de um violino, que eram lindas para o grande público, mas hesitantes para um ouvinte mais treinado — um ouvinte como ela.

Não era uma especialista em violino. Os instrumentos que dominava eram a harpa, o piano, a flauta e sua bela voz. Também estava aprendendo o tradicional koto. Mas, como uma compositora atenta, ela sabia quando um músico demonstrava insegurança.

Ao menos o talento do pianista recuperava qualquer opinião negativa que alguém poderia esboçar sobre a música no salão. Ela inclinou o queixo na direção do som, alongando no pescoço na tentativa de observar os músicos com mais detalhes. Era impossível. Havia muitas pessoas ali dentro e, quando ela achava que encontrara uma brecha, logo alguém bloqueava sua visão. Isso sem falar daqueles que dançavam.

Ela suspirou. Seria bom encontrar alguém para conversar sobre música… sobre tons e notas, melodias e ritmos. Sobre sentimentos que muitas vezes ela guardava até de si mesma. 

Antes que quaisquer outros pensamentos atravessassem sua cabeça, ela notou que a conversa com o casal havia se encerrado e — sob o olhar de reprovação de Hikaru — executou uma mesura apressada para se despedir deles. Esperou pela reprimenda do irmão, que não demorou a chegar: 

— Preciso falar com outros convidados, Hanabi. Conhecidos de nosso pai. — Ele a encarou com seus olhos escuros e afiados, o mesmo olhar que ela própria carregava. Naquele instante, existia desprezo na face de Hikaru, como se ele falasse à uma criança travessa e parva. — E, já que sua mente está em outro lugar, prefiro fazer isso sozinho.

Uma resposta inadequada ardeu em sua garganta. Hanabi era tão instruída quanto ele, tão inteligente quanto qualquer um dos herdeiros Westminster. Ela era, provavelmente, a dama mais culta daquele maldito salão de festa e — independentemente de sua timidez — o irmão deveria ouvi-la com mais frequência, pois ela sempre tinha razão.

No entanto, era óbvio que Hikaru desejava fazer tudo sozinho. Ele era tolo o suficiente para tal coisa e ser o primogênito somente endossava o seu comportamento patético. Dessa forma, a jovem apenas forçou um sorriso e respondeu, evitando uma cena polêmica na festa:

— É claro.

— Aproveite para estabelecer laços, irmã. Viemos justamente para isso. — Ele disse, embora tivesse notado o veneno nas palavras de Hanabi. Inabalável, ele aproximou-se dela e a instruiu, sua voz mais baixa. — Um último aviso: Beba um gole de champanhe, por favor. Irá espantar os outros convidados se não sumir com esse fedor de cigarro.

Ela estreitou as pálpebras enquanto observava seu irmão partir em outra direção, sentindo um misto de ódio e receio. Era pura hipocrisia da parte de Hikaru censurá-la por fumar, pois quem a ensinou a tragar foi principalmente ele, uma vez que Hideo não fumava muito. A diferença era a cerimônia que o primogênito fazia, usando um belo kiseru em casa. No entanto, era melhor que ele a flagrasse do que seu pai ou sua mãe.

A fim de evitar mais aborrecimentos, Hanabi aceitou uma taça de champanhe servida no baile e caminhou com graça entre as pessoas. Custava-lhe admitir que Hikaru estava — em parte — certo sobre ela estabelecer laços. Para ele, a questão era um tanto comercial, já para ela, um desafio de equilíbrio no instável mundo social. Apenas fingir interesse em pessoas novas não traria-lhe bem algum a longo prazo, então ela optou por se esforçar mais um pouco. 

E foi assim que ela sentou-se próxima às moças de sua idade, em uma área com poltronas e sofás de estofado macio, reservada justamente para quem desejasse repousar um pouco. Era também um bom ponto para observar os casais dançando, sem que tivesse que ocupar a cabeça com aborrecimentos ou a boca com diálogos que lhe exigissem muita atenção. Outro benefício era que o local — assim como o resto do salão — estava decorado com flores frescas, o que conferia um aroma agradável e deveras conveniente para disfarçar o odor de tabaco. Hanabi ofereceu um sorriso discreto às duas damas com quem dividia os assentos e deu um suspiro gracioso à esmo, como quem lançava uma isca para iniciar uma conversa.

Funcionou. Após um breve instante em silêncio — pois as duas moças pareciam tão tímidas quanto ela própria — a dama de cabelos mais claros e de aspecto inocente feito uma margarida inclinou-se levemente em sua direção, tentando ser simpática e solícita:

— Dançou muito?

Quem dera. — Suspirou de novo e, desta vez, o suspiro era real. Estava brava com seus irmãos, mas simultaneamente esforçando-se para agradá-los. — São tantas pessoas para cumprimentar que só consegui descanso agora.

— Oh, você deve ser… Hinata Westminster, sim?

Ela encarou diretamente, observando bem os olhos cor de mel da outra. Não parecia ter errado seu nome de propósito, portanto corrigiu-a suavemente:

Hanabi.

— Perdão. — Desviou o olhar, suas bochechas enrubescendo. — Meu nome é Aurora, da família Wintergarden. 

A outra moça — vestida em um tom azul celeste e de cabelos mais escuros —  aproximou-se, interessada em fazer uma nova amizade. Aliás, Hanabi notou que as mãos dela se agitavam no colo, passando as pontas dos dedos nos detalhes do vestido em um gesto nervoso. Não agradava-lhe ver alguém sofrer, mas não podia dizer que não estava aliviada por encontrar outra pessoa lutando contra a própria timidez.

— E eu me chamo Beatrice D'Angelo. Eu e Aurora acabamos de nos conhecer também.

— Sim. — Aurora confirmou. — Não dançamos muito, mas esse lugar pareceu perfeito para fugir um pouco e descansar. 

— E dá para ouvir bem a música daqui. — Hanabi completou, embora sem mencionar que o jardim era outro lugar bom para fugir. Era mais sensato apostar em temas seguros, como comentar detalhes sobre a festa. — Pessoalmente, prefiro o piano.

Com essa última afirmação, Aurora voltou a enrubescer. Não era necessário ser um gênio para entender que existia alguma lembrança ou pensamento por trás de seus olhos bondosos, e Hanabi conseguia ser especialmente atenta quando desejava. A pergunta que ela fez em seguida somente confirmou sua suspeita de que Aurora estava pensando em alguém:

— Viu os músicos?

Hanabi estreitou as pálpebras, mas ao fim somente sorriu e disse:

— Não. 

— É quase impossível achar alguém aqui. — Beatrice reclamou. — Uma amiga confirmou que viria… Mas não a vi até agora.

Aurora, agora recuperada de qualquer devaneio que tivera, ofereceu doces palavras em sinal de empatia.

— Quem sabe ela esteja te procurando também. 

A expressão contrariada de Beatrice se desfez lentamente ao considerar a possibilidade. As três voltaram a atenção para as pessoas dançando, os movimentos suaves e as cores dos vestidos. E, pela primeira vez durante o baile, o relativo silêncio não foi tão ruim. Aurora e Beatrice não lançaram-lhe perguntas baseadas no jornaleco de fofocas, o que já era um imenso avanço em relação às outras pessoas com quem conversara naquela noite. Se dali surgiriam laços ou amizade, só o tempo iria dizer.

Mas ao menos era um começo.

— E você, senhorita Westminster? Está procurando alguém ou está fugindo?

Hanabi às vezes desejava fugir de tudo; das expectativas de sua família e de como fingiam que se davam bem. Queria encontrar pessoas com quem se identificasse e partilhassem das mesmas ambições. Sem explicar o que estava dentro de seu coração, deu um novo gole no champanhe e respondeu com simplicidade:

— Um pouco dos dois.

Não demorou muito para que mais figuras se juntassem às garotas, sentando-se defronte à jovem Westminster. Dentre elas, olhos azuis a fitaram com intensidade, como se tentassem ler seus pensamentos. Ela começava a se sentir desconfortável sob o olhar atento da dama desconhecida, quando os lábios da garota finalmente se moveram.

— Você é a estrangeira que debutou nessa temporada, não? — disse, sem oferecer tempo para que a garota a respondesse, continuando logo em seguida. — É um prazer conhecê-la. Madelyn de Loughrey.

— O prazer é meu. — Hanabi forçou um sorriso. Ela não se diria uma estrangeira, como o abominável jornaleco a descrevera. Era verdadeiro o fato de que sua família esteve longe da Inglaterra por algum tempo, mas estava certa que uma longa estadia em outro continente não seria capaz de mudar sua nacionalidade. No entanto, julgou que corrigir Madelyn não valia o seu tempo. Além disso, aquele não era momento para cultivar inimizades e, por mais que não tivesse gostado da atenção especial que recebera, a jovem de olhos azuis logo transferiu o seu interesse para o outro recém-chegado.

O homem adentrou o salão com passos firmes e resolutos. Ele trajava uma roupa formal de general com botões vermelhos enfileirados sobre o tecido azul-escuro, exibindo com orgulho as medalhas e condecorações que acumulara ao longo de sua carreira militar. Ao seu redor, pairava um ar nobre e elegante — ele tinha a postura que se esperaria de um cavalheiro notável e um olhar atento, que lembrava os de um soldado em combate; a sua mera presença era intimidadora, uma ameaça flutuando no ar, iminente — ao mesmo tempo via-se um semblante austero e prepotente estampado em seu rosto, como se ele acreditasse que poderia esmagar qualquer um que lhe cruzasse o caminho com a sola dos sapatos. Seus cabelos vermelhos flamejavam como labaredas, enquanto os seus olhos pareciam tão negros quanto carvão. 

— Então este é o famoso general Gallagher… — Madelyn sussurrou, inclinando-se na direção de Cecília. 

— Ele é bem conhecido por ser o mais jovem a ocupar o posto. — Cecília confirmou, baixando a voz antes de continuar — As más línguas dizem que há sangue irlandês em suas veias, dado os cabelos ruivos.

— Interessante. Muito interessante. 

Ela lambeu os lábios, enquanto um desejo luxurioso estendia seus tentáculos sobre sua pele alva. Killian Gallagher parecia-se com um desafio, uma conquista. Madelyn via o general como um corcel selvagem que precisava ser domado, o que ela faria com um sorriso satisfeito estampado no rosto. A garota tinha o costume de ter seus desejos atendidos com um estalo de seus dedos, e o jovem militar não fugiria à regra.

— Pare de olhar para ele, por favor. — Cecília pediu, tocando o ombro da nobre suavemente para chamar a sua atenção.  — Um bastardo não deveria chamar a atenção de uma dama como você. Nem de qualquer uma de nós, só traria mau agouro.

A senhorita de Winter não tinha dúvidas quanto ao caráter do general. Um homem como ele não poderia ser confiável. Alguém com a reputação tão manchada quanto a dele jamais hesitaria em se aproveitar de uma dama inocente como ela. Afinal, como algo de bom poderia advir de um relacionamento que não fora abençoado pelos céus?

— É verdade, Madelyn. Encantar-se pelo bastardo do rei não combina com a sua persona. — Carlota sibilou, bebericando uma taça de vinho. 

— Quem seria mais adequado à minha persona, então? — A jovem se inclinou para a frente, focando sua atenção na garota de olhos grandes e intensos.

Carlota perdeu a compostura por um segundo, atordoada pela aproximação repentina da dama de cabelos tão escuros quanto os seus. As palavras pareceram presas em sua garganta, e quase fugiram de seus lábios convertidas em sua língua materna. Mas logo um sorriso mordaz voltou a enfeitar seu rosto, enquanto sua voz tornava-se um sussurro diminuto, para que ninguém além de Madelyn escutasse sua resposta.

— Alguém que finja tão bem quanto você, é claro. — Carlota Benedetti tinha uma língua afiada, e recusava-se a mantê-la acorrentada. Ela apreciava pessoas sinceras e de mente aberta, uma combinação um tanto difícil de encontrar, especialmente durante a temporada social, mas via na jovem de Loughrey uma rival à sua altura.

— Alguém como você, então. — desdenhou, os olhos brilhando com tanta intensidade que pareciam capazes de incendiar o salão.

— Suas insinuações são infundadas e não me afetam.

— Todos nós temos segredos. — Madelyn sorriu, aproximando-se ainda mais. Seus lábios roçaram suavemente no ouvido da garota e, sentindo-a enrijecer sob seu toque, sussurrou: — Você conhece o ditado, não brinque com fogo se não quer se queimar. 

Os olhos amendoados de Jasper encontraram o olhar tímido de Cecília no canto do salão. Ela encolheu um pouco os ombros, desviando-se do fitar do marquês.  A garota não apreciava ter a atenção sobre si e, sem sombra de dúvidas, sequer estaria ali se sua presença não fosse necessária. No entanto, sob o olhar atencioso do jovem nobre, a garota lhe pareceu um tanto solitária, mesmo envolta numa multidão. Ele não poderia afirmar que tal feição se devia ao seu desgosto quanto ao evento no qual se encontrava, ou se seu próprio acanhamento seria o motivo de seu desagrado — mas algo em si o fazia sentir o ímpeto de descobrir. Talvez porque visse a si mesmo nos gestos ensaiados e contidos da senhorita à sua frente, assim como no olhar ligeiramente entristecido que ele julgara ter visto, mesmo que por um breve momento. 

Jasper não se descreveria como um rapaz tímido. Ele frequentava o clube de homens de Anthony Hartridge e tinha um bom relacionamento com a maior parte dos clientes com quem tinha o prazer e, em raras ocasiões, o desprazer de encontrar. Preparava-se para assumir suas responsabilidades como Duque de Marlborough e o fazia com maestria. Era competente, confiável e um amante da liberdade. Quando sozinho, gostava de pintar a natureza que circundava seu amado Palácio de Blenheim — oferecido pela própria rainha em agradecimento à vitória de seus antepassados na batalha de Blenheim contra os franceses e os bávaros — no entanto, não se consideraria um artista, embora costumasse ser uma figura recorrente nas festas onde as figuras mais talentosas e emblemáticas da Inglaterra se reuniam. Ainda assim, Jasper sabia como era estar à sombra de alguém. Ele nunca teve talento para fingir, manipular ou influenciar pessoa alguma, não importava o quê, ou o quanto estivesse em jogo. Não seria capaz de mentir, mesmo que sua vida ou, no caso mais provável, sua propriedade dependesse disso.

O marquês era terrível em esconder suas verdadeiras intenções e sentimentos, uma habilidade necessária para uma boa convivência na corte, mas que não tivera a sorte de herdar dos pais. Por diversas vezes, ele desejou não ser considerado o sexo mais forte, o homem da casa. Apesar de amar profundamente a liberdade que tinha, Jasper sabia que não havia sido contemplado com o espírito de liderança do duque, ou a sutileza corrosiva da duquesa. Ele deixaria toda a responsabilidade sobre as costas da irmã sem piscar duas vezes — com a certeza de que a herança dos de Loughrey estaria em boas mãos — e viveria o resto de seus dias a pintar o cenário fascinante que se revelava ao redor de Blenheim, desde o nascer do sol até o momento que ele se punha. Assim, talvez, não tivesse de sentir o estômago embrulhar cada vez que precisasse mentir ou, como ele preferia dizer, omitir a verdade. Um crime com atenuantes, ele imaginava, numa tentativa de aliviar a própria culpa. 

— Vai chamá-la para dançar, ou ficar aí parado encarando-a pelo resto da noite? — Madelyn disse, tocando o seu braço gentilmente.

— Ficar aqui parado, sem sombra de dúvidas. — Jasper riu, ciente de que seu monólogo interno certamente tomara minutos inteiros.

— Ela ficará feliz com seu cobviate, estou certa. — disse, sugestiva. 

— Você não tem um lugar melhor para estar, minha querida irmã? — bufou. — Certamente tem coisa melhor a fazer que me amolar. 

— Bem, já que perguntou… — disse, com um sorriso travesso brincando em seus lábios. — Há um certo par de olhos que eu gostaria muito de atrair, é verdade.

— Por que não o chama para dançar, então?

— Estou ocupada oferecendo-lhe um pouco de apoio moral. — Ela envolveu seu braço no dele, guiando-o até o canto do salão. — Convide-a, e eu farei o mesmo. 

Ela pegou duas taças de champanhe da bandeja prateada que um dos serviçais carregava através do salão, oferecendo-lhe sorte e um pouco de coragem líquida, antes de desaparecer dentre os nobres e ressurgir próxima ao rapaz que mencionara. Madelyn não quebrava promessas, embora a sua atribuição fosse um pouco mais traiçoeira que a de Jasper. Afinal, ela não poderia simplesmente pedir que um homem a concedesse uma dança.

— Lady de Winter. — disse, fazendo uma mesura.

— Vossa Graça. — Cecília levantou-se prontamente, com uma referência perfeita.

Os dois permaneceram ali, parados, enquanto um silêncio desconfortável pairava sobre eles. Ela parecia congelada no tempo, com o olhar fixado nos do homem à sua frente. Não seria educado desviar sua atenção, mesmo que a situação começasse a se tornar um tanto incômoda. Até que o marquês pigarreou, finalmente derramando as palavras sobre a garota: — Condeceriameahonradestadança?

— Perdão?

Ela suprimiu uma risada. Sentiu-se lisonjeada que um homem tão instruído se mostrasse assim diante dela e, também, aliviada em saber que sua timidez não era única naquele salão, assim como o seu esforço para interagir com todas aquelas pessoas.

Jasper inspirou profundamente, recomeçando: — Concederia-me…

— Seria uma honra. — Cecília sorriu, salvando o pobre coitado de outra performance embaraçada.

Com a mão sobre a dele, os dois caminharam até o centro, juntando-se aos outros casais. Não foi surpresa para Jasper ver que a irmã já rodopiava, com o belo vestido bordô a girar ao seu redor, uma vez que a paciência não lhe era uma das maiores qualidades.

— Está apreciando a festa, meu lorde? — a jovem de cabelos curtos disparou, com medo que o silêncio avassalador se instalasse sobre eles novamente.

— Sim, sim. Adoro as festividades, embora não seja tão participativo. — Jasper sorriu. — E a senhorita?

— Perdoe-me a sinceridade, mas se eu tivesse algum poder de escolha, certamente não estaria aqui. 

— Devo admitir que eventos sociais também não são a minha primeira escolha de lazer — disse — Prefiro pintar as belas paisagens de Blenheim. Já esteve na propriedade, não?

— Ah, estive, mas não lembro de tê-lo visto. — Cecília pensou ter visto um rubor no rosto do marquês, mas julgou ter sido uma impressão sua. — As cores do jardim ao entardecer são muito inspiradoras, tive uma experiência muito agradável.

— Talvez possa visitá-lo novamente, no futuro. — ofereceu, num gesto cortês. — Se for do seu interesse, obviamente.

No entanto, aquele não era o palco apenas de conversas inocentes e amáveis e, não muito longe dali, olhos azuis sorriam.

— Ouvi dizer muitas coisas sobre você, general. Nem todas boas, é claro. 

— A minha reputação me precede, de fato. — Killian cravou os olhos escuros como o breu no rosto de Madelyn, sem piscar sequer uma vez. — Mas nem todos os boatos são verdadeiros, devo alertá-la.

— É mesmo? Bem, eu certamente gostaria de saber quais deles são verídicos. — sugeriu, com um tom insinuante. — Você não se importaria de discuti-los comigo amanhã, não é? Posso garantir que nunca provou um chá da tarde tão esplêndido. 

Margot Berkshire estava no tipo de seu ambiente favorito: uma área externa a céu aberto, durante uma noite não muito fria. Não que fosse realmente um problema caso a temperatura caísse mais alguns graus, uma vez que estava acostumada a suportar o vento muitas vezes gélido e a umidade para observar as estrelas e a lua. No entanto, aquela noite parecia especial. Os jardins do local eram particularmente belos, ostentando o verde de plantas muito bem cuidadas e espelhos d'água que refletiam a iluminação bruxuleante de lamparinas; isso sem mencionar o aroma fresco de flores que só se abriam após o pôr do sol.

Ela não achava que teria gostado de vir. Sua mãe, Lady Katherine Berkshire, já exibia um comportamento deveras incômodo ao empurrá-la para diversos eventos sociais, quem sabe em uma vingança pífia pelos anos que Margot morou na casa de campo e afastada da alta sociedade que sua mãe tanto amava. O café da manhã no parque — aquele em que ela foi obrigada a cumprimentar diversos rapazes desconhecidos — teria sido enfadonho se não tivesse encontrado uma amiga para conversar e trocar dicas de pintura, Beatrice D'Angelo.

Toda a história da temporada social era um tanto contraditória em sua cabeça: era seu irmão que desejava criar raízes e era somente por esta razão que ele retornou com a irmã para Londres. Então, fazia sentido que sua mãe pusesse seu foco mais em James, correto? Não. Para ela, não importava que ambos trabalhassem juntos e que Margot tivesse um papel fundamental nos estudos de astronomia do irmão mais velho, ganhando até mesmo um salário significativo dele. Importava apenas que ela criasse raízes, assim como ele, imersa no matrimônio e filhos.

Portanto, suas expectativas em relação à festa eram nulas. Mas, para sua felicidade, James nunca a decepcionou; inclusive foi ele que providenciou a educação de Margot na casa de campo, onde ele estudava os astros após ter cursado uma faculdade no exterior. Ele sabia que Margot não estava satisfeita com as decisões da mãe e também que sua irmã ardia por testemunhar a chuva de meteoros prevista justamente para aquela noite. Então, ele prometeu não revelar coisa alguma a ninguém quando Margot escapasse para o jardim desacompanhada.

E agora ela estava ali, admirando o cenário com uma taça de espumante na mão direita e uma pequena luneta de bronze na esquerda. Talvez fosse a beleza do lugar somada a música extasiante ao fundo, ou talvez fossem os goles de champanhe, o fato era que Margot parecia flutuar no pavimento externo, próxima a um chafariz. Era incrível como não tivera que caminhar muito para chegar em um ponto silencioso perfeito. Ela apoiou a taça vazia em uma das muretas e andou até um banco de pedra, cantarolando junto com a melodia ao fundo. Abriu o mecanismo da luneta, alongando-a até atingir a extensão de pouco menos de seu antebraço, e espiou o céu.

Em seguida, soltou um pequeno gemido frustrado. Nuvens e mais nuvens atrapalhavam sua visão. Ela suspirou fundo e puxou o tecido púrpura de seu vestido, o suficiente para conseguir mover melhor os joelhos e subir no banco. Quem sabe dali enxergasse melhor, correto? Algum vão entre as nuvens, um espaço ínfimo onde pudesse ver os meteoros. Ela buscou um ponto limpo qualquer no horizonte e deu um passo à frente, equilibrando as pontas dos sapatos na beirada do banco de pedra.

Foi nesse instante que o vento trouxe uma voz grave que lhe arrepiou por inteira. 

— Cuidado para não cair, senhorita.

O movimento que fez para virar o torso na direção da voz foi deveras brusco e atrapalhado, tanto que Margot mal teve tempo para registrar a imagem do homem há alguns passos distante de si. Nem bem reparou nos olhos arregalados dele, prevendo o desastre. No segundo seguinte, ela estava lutando para manter o equilíbrio e falhava miseravelmente. Já pressentia o impacto contra o chão, preocupando-se com a desculpa tola que daria para mãe pela sujeira e sangue no vestido.

Entretanto, braços a seguraram com firmeza antes que seu corpo beijasse o solo.

Surpresa pela sequência de eventos catastróficos, Margot finalmente ancorou sua atenção na face de quem a salvara: um rapaz pouco mais velho do que si, de adoráveis olhos cor de mel. Era efeito da luz ou ele estava corado por estar com o rosto assim tão perto do dela? 

Um barulho craquelado desfez o breve encanto daquele instante. Margot soltou-se dos braços do desconhecido em um átimo, agachando-se em seguida — sem encostar os joelhos no solo — para conferir o estrago da luneta que escapou de seus dedos enluvados. Havia uma miríade de pedacinhos de vidro no chão, refletindo a luz como pedras preciosas, e a luneta ali, com uma extremidade amassada.

— Ah, não... — Margot pegou-a e a chacoalhou de leve, expulsando os últimos cacos da lente. — Minha luneta.

Houve um momento de silêncio. Ela se levantou com o instrumento em mãos, como se segurasse seu próprio coração.

— Eu... eu sinto muito por isso. — O rapaz atrás de si apressou-se em dizer. — Pensei que fosse cair, então me senti na necessidade de avisá-la.

Margot inspirou fundo, erguendo o rosto.

— Tudo bem. Eu realmente cai, não é mesmo? — Ela tentou sorrir. Não desejava ser ingrata e a situação bem poderia ser sua culpa. Não precisava ter tomado mais de uma taça de champanhe sabendo que era fraca para o álcool, e certamente não deveria ter subido no banco. — Se bem que eu preferiria um nariz quebrado do que quebrar essa lente.

Andou até o banco e se sentou, repousando o objeto em seu colo. Também optou por arrumar seus cabelos loiros, que certamente estavam desalinhados pela quase queda. Não demorou para que o rapaz viesse sentar ao seu lado, preocupado. Era outro convidado da festa, a julgar pelas suas vestes elegantes e postura. Levando em consideração que ele sabia onde ela estava e como parecia preocupado com o acidente com a luneta, Margot supôs que seria um dos amigos astrônomos de seu irmão.

— É de valor sentimental?

— Não. — Ela respondeu. Depois pensou mais um pouco e decidiu completar: — Não muito, para falar a verdade. É a minha primeira luneta e foi meu irmão que me deu... É muito prática, mas não se compara com outros instrumentos, como o telescópio. 

Ele assentiu, ouvindo com atenção.

— O dano mais grave foi na lente, não é? Acredito que dê para consertar.

— Não conheço ainda alguém na cidade que possa fazer isso. Você conhece?

— É um modelo mais antigo... Mas posso dar um jeito. — Mostrou-se solícito e deixou a palma direita para cima, em um gesto sutil para receber a luneta. Margot depositou o objeto em sua mão com delicadeza, tomada por um distinta confiança. Tecnicamente, era somente um estranho, mas ela não acreditava que ele iria roubá-la. E era um amigo ou conhecido de James, não? — Agora, se pode satisfazer minha curiosidade, o que estava tentando observar aqui fora?

Oh. Então ele não era um dos amigos de seu irmão, ou saberia do fenômeno previsto para aquela noite.

— Bem, — Ela engoliu seco. Era difícil não parecer tola para quem compartilhava do mesmo amor pelos astros. — A comunidade de astronomia fez uma previsão da aproximação de meteoros na constelação de Leão, mas ainda não consegui observar bem devido ao tempo fechado nesta última semana. 

Os olhos do rapaz encontraram o céu no mesmo instante, encarando o ponto onde as nuvens corriam. Isso particularmente chamou sua atenção, embora Margot tenha se esforçado para não divagar muito sobre os ângulos perfeitos de seu queixo e mandíbula.

— Ah, sim. Choveu recentemente.

— Exato. — Ela desviou o olhar. Não era muito falante por natureza, mas a atenção dele sobre si, aliada ao resto de álcool em seu corpo, a obrigava continuar a conversa. — E apesar da chance das nuvens dissiparem ser pequena, pedi para meu irmão trazer a luneta para mim, já que é evidente que não tenho bolsos. Claro que o fenômeno é observável a olho nu, mas eu também queria tentar ver mais de perto.

— E você foi obrigada a vir na festa e por isso não pode ver pelo telescópio.

— Sim. — Franziu os cenhos, impressionada com a velocidade de raciocínio dele. — E que tolice a minha, não? Acabei aborrecendo o senhor e ainda quebrei a luneta.

— Em sua defesa, talvez você não tivesse derrubado a luneta se eu não tivesse a assustado.

— Isso é verdade… — Margot concordou, embora achasse que ele era demasiadamente gentil na afirmação. — Também se interessa por estrelas? Olhou direto para o rumo da constelação só de ouvir o nome.

— Sim, mas não do mesmo jeito que você, acredito. Eu navego muito.

— Oh. Um viajante dos mares.

Ele sorriu e olhou para frente, após mexer um pouco em seus cabelos pretos e ondulados em um gesto ansioso.

— Pode-se dizer que sim.

— Eu nunca vi o mar. Digo, além do porto. — Margot confessou. — Deve ser bom para observar o céu também. A quietude, a escuridão... eu me pergunto se explorar os cosmos será como explorar o oceano, um dia.

Foi a vez dela sentir as bochechas arderem. Quem sabe a bebida oferecida na festa não fosse somente champanhe, pois ela ainda estava a proferir bobagens na presença de estranhos.

— É um pensamento e tanto.

— E qual é seu nome, senhor? — O sorriso nervoso dela escapou de modo involuntário, enquanto tentava mudar o foco do diálogo. Temia falar sobre os cálculos que executava com seu irmão, ou pior, seus sonhos com estrelas. — Ou vai me dar sua alcunha de pirata?

A noite ouviu uma breve risada dele. A fim de seguir com uma tradição cortês, ele se levantou do banco para executar uma mesura educada:

— Salazar Roffman, ao seu dispôr.

Mesmo ainda sentada, ela retribuiu o gesto e inclinou levemente o torso.

— Margot Berkshire.

— Ah, irmã de James Berkshire, correto? Eu já fiz negócios com ele. Bom, será mais fácil de te encontrar. — Ele comprimiu os lábios e optou por se explicar. — Para devolver a luneta, é claro.

É claro. Veio obrigado à festa também?

Salazar se sentou de novo.

— Pode-se dizer que sim. Nem sei o que exatamente estão comemorando, para falar a verdade.

— Acho que é só mais uma festa, entende? — Ela deu de ombros. — Para fazer as pessoas felizes.

Ele ergueu apenas uma de suas sobrancelhas.

— É difícil fazer as pessoas felizes se elas se sentem, ou se são, obrigadas a vir na festa.

— Isso também é verdade.

Houve uma pausa. O silêncio não incomodava a Margot, pois ela podia ainda desfrutar do som da água no chafariz ali perto e uma nova melodia no salão de festas ao fundo. Aliás, estava deveras acostumada com o silêncio e se questionava se aquele instante era tão agradável para Salazar quanto era para ela. Encarou mais uma vez o céu e sua língua deixou escapar outro de seus pensamentos diáfanos.

— Se você pudesse fazer um pedido a uma estrela... O que pediria?

— Ora, eu não sei. — Ele franziu a expressão, de repente muito sério. — Talvez... que ela apagasse uma lembrança ruim. Um erro do passado.

Profundo.

— E você?

Não houve tempo para resposta. De uma pequena abertura no céu limpo entre as nuvens, Margot viu um rastro de luz cortar o zênite da abóbada celeste. Agarrou o antebraço de Salazar por puro instinto, empolgada com a visão.

— Veja, uma estrela cadente! Vá, faça seu pedido.

E então fechou os olhos. Não demorou mais do que alguns segundos para mentalizar um pedido em sua cabeça e, ao abrir as pálpebras, lá estava Salazar encarando-lhe.

— E então, — A voz dele ressoou de um jeito macio. Margot reparou que ainda segurava-o e fez o favor de recolher a mão. — Qual foi o seu desejo?

— Agora que a estrela passou de verdade, não posso mais te contar.

Ele lhe ofereceu uma expressão amena e simultaneamente desconfiada.

— Significa então que o meu pedido não se realizará?

— Hm. — Margot buscou a resposta dentro de si. — Se a estrela não souber que você me contou antes...

— Será nosso segredo, então. 

Ela confirmou:

— Para o seu desejo de realizar.

— Que sorte a minha.

Novamente naquela noite em que ela tinha expectativas reduzidas a zero, Margot sorriu. Mal pudera assistir os meteoros e ainda tivera o azar de quebrar a lente de sua luneta, no entanto, não seria capaz de dizer que a festa tinha sido ruim. E quando Salazar sorriu de volta para ela, seu coração deu um salto.

Ou quem sabe fosse apenas o efeito do restinho de álcool em si.

De repente, Margot ficou muito consciente da situação em que se encontrava e como isso poderia levantar questionamentos impróprios. Sim, estava acostumada a lidar com homens porque James levava colegas de profissão para dividir suas observações e notas, então não era raro que ela estivesse na posição de interagir com cavalheiros instruídos. Entretanto, não era igual estar no jardim desacompanhada em pleno baile. Da maneira mais graciosa que podia, Margot se levantou do banco.

— Eu acredito que devo ir agora. — Engoliu seco e fez uma educada mesura. — Até a próxima aventura, pirata Roffman.

Ele também ficou de pé e retribuiu a reverência.

— Até, senhorita Berkshire.

Margot não conteve o sorriso tímido e logo adiantou-se para retornar à festa, não sem antes — é claro — de pegar a sua taça vazia de volta, deixada momentos atrás na mureta do jardim. No caminho de volta, se questionava qual lembrança ruim Salazar desejava obliterar de seu passado e se fora um erro dividir um segredo com ele.


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Notas finais do capítulo

Glossário:
*Koto = instrumento tradicional de cordas japonês.
*Kiseru = Tipo de cachimbo japonês, fino e - ao menos eu acho - super chique.

Olha, nós encontramos alguns problemas para descrever fumos, cigarros, fósforos e isqueiros. Mas optamos por um pouco de liberdade criativa, assim como no lance da chuva de meteoros. Meteoros somente passaram a ser estudados com maior afinco a partir de 1833, quando ocorreu uma chuva de meteoros beeem estrondosa. Enfim, espero que tenham gostado!
Comentem o que acharam! Estamos super curiosas para saber!



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