Custódia escrita por Izabell Hiddlesworth


Capítulo 1
Como uma rainha se parece


Notas iniciais do capítulo

Olá!

Querida AS, você pediu um monte de coisas fora da minha zona de conforto, então eu tentei unir vários pontos em uma história só e foi divertidíssimo (e assustador!) produzir esse resultado. É a minha primeira tentativa em muitos assuntos. Mas eu faço votos para que você goste e se entretenha, porque foi feito com muito carinho. ♥

Se você não for minha AS: essa história foi feita completamente fora dos meus elementos, mas eu espero que você se divirta por aqui! :D

Boa leitura!



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 A repórter citou seu nome mais uma vez, e Izabel não pôde se livrar do sentimento de estranheza. Era desconfortável vê-lo estampado em revistas e jornais, exibido nas barras inferiores de programas de televisão, saindo da boca de gente que nunca havia visto na vida. A mãe sempre dizia que já deveria estar acostumada, que aquilo era uma coisa absurdamente normal para alguém do seu status, que o mundo sabia quem ela era antes mesmo que tivesse nascido.

 No entanto, para Izabel era como ser perseguida. Do alto – ou do baixo, do meio – de seus vinte e quatro anos, ainda não entendia bem quem era ou o que era. E lhe incomodava que o resto do mundo parecesse conhecê-la melhor do que ela mesma.

 “A Rainha Izabel terminou o discurso encorajando os jovens a irem às urnas amanhã”. Foi a última fala da repórter antes de o quadro mudar para uma tomada fechada em seu rosto durante o discurso.

 Izabel torceu as feições num esgar. Na televisão, sua voz soava plástica, impessoal. Se não tivesse memórias claras daquela manhã, da sensação térmica das lâmpadas sobre o palanque, das manchas de suor nas folhas de seu discurso, dos olhos atentos – dezenas de olhos e lentes de câmeras – ao menor de seus movimentos, poderia jurar que alguém fizera uma montagem sua.

 Instintivamente, ela lançou o olhar para o espelho. O reflexo era de uma jovem miúda, que parecia a caricatura de uma mulher adulta.

 É assim que uma rainha se parece?

 Na televisão, pelo menos, aparentava uma aura mais madura.

— Você quer cobrir? — Zelir, a assistente do dia, perguntou. Estava olhando para ela pelo espelho, segurando uma madeixa escovada de seus cabelos.

— A cicatriz?

— Sim... — Zelir soou nervosa.

 Izabel ponderou por um momento, reparando na metade já feita do penteado. O que queria dizer era “Tudo bem, eu gosto dela, pode deixar aparecer”. Porém, o que disse foi:

— O que você achar melhor.

 Zelir anuiu.

 Para as pessoas que tinham contato direto com ela – como a mãe e a equipe de assessores, os funcionários dos palácios, o parlamento –, o melhor sempre era apagar, suprimir, esconder todos os sinais que sugerissem a menor lembrança do acidente.

— Hoje de manhã não esconderam ela direito — Zelir reclamou, um pouco mais à vontade, trançando mechas finas de cabelo. — Mas nem dá para ver, não é?

 Ela indicou a televisão. A tela exibia cortes da equipe da rainha deixando o Palácio do Planalto. O sorriso nervoso, a procissão de assessores e seguranças, o carro comprido com as onças douradas do brasão da Coroa no capô. Izabel desviou o rosto.

 “A Rainha não declarou apoio a nenhum dos candidatos à prefeitura de São Paulo nem de outros municípios”. O âncora do telejornal estava de volta, sério, porém, quase jocoso. “Mas o candidato Josias Amaral, do PDT, tem participado de eventos de campanha com a presença da Rainha nas últimas semanas.”.

— Ah, que ótimo. — Izabel suspirou quando tomadas de momentos em que ela aparecia próxima ao político foram exibidas. — Eu disse que não queria associação com ninguém, mas não, minha mãe sempre preza a política da boa-vizinhança.

— Apoio político é muito importante para alguém como você. — Hannah, a assessora principal surgiu sob o umbral da porta, munida da agenda fiel. — E você não declarou apoio explicitamente, só deixou a sugestão. Isso é bom. — Ela caminhou para dentro do quarto, os olhos na televisão. — Significa que você pode tirar o corpo fora se alguma coisa der errado com ele, ou garantir apoio se der errado com você. Além disso, abre espaço para a gente jogar em mais de um time ao mesmo tempo…

 “A Cerimônia do Memorial da República acontecerá hoje à noite em razão das eleições municipais amanhã. Todos os candidatos à prefeitura de Brasília confirmaram presença na cerimônia do Teatro Nacional Cláudio Santoro, a qual a Rainha Izabel também comparecerá”.

— Ah, você precisa ver a roupa que separamos para hoje à noite! — Hannah sacudiu a mão livre, fazendo as contas de suas muitas pulseiras tilintarem. — Ela está pronta, Zelir?

— O que você acha? — Zelir a segurou pelos ombros para girá-la de frente para o espelho.

 A rainha estudou o conjunto de blazer e saia, as joias, as sandálias – ligeiramente mais altas do que o limite de sua zona de conforto permitia –, o penteado minimalista. E moveu a cabeça para dizer que aprovava, com um pequeno sorriso.

— Ótimo! — Hannah bateu uma palma. Depressa, tomou a rainha pela mão e a levantou do puff. — Vamos indo, então. A Tenente Deuner e os outros já estão nos esperando na entrada de carros. E parece que a jornalista já chegou no saguão do hotel.

 No caminho longo e silencioso através das entranhas do Palácio da Alvorada, Izabel fez um esforço para se concentrar nas respostas prontas que estudara com Guilherme na tarde anterior. Havia uma cola de palavras-chaves feita com caneta em cada uma de suas palmas. Quantos municípios brasileiros, porque ela não estava fazendo campanha para nenhum candidato, o que prefeitos que se opunham ao caráter monárquico do governo representariam. Seria fácil, simples. Bastava seguir o roteiro. E Hannah e Zelir estariam lá, não haveria com o que se preocupar.

— Vai ficar tudo bem — Hannah cantarolou, apoiando uma mão em seu ombro, como que para confirmar seus pensamentos. — É mais fácil do que um discurso televisionado na câmara.

— Acho que sim. — Izabel esboçou um sorriso.

 O sol a cegou momentaneamente quando chegaram no T da entrada da mansão, refletido como estava nas piscinas gêmeas. A comitiva de carros oficiais estava enfileirada na passarela em frente, com os seguranças a postos. Izabel respirou fundo enquanto caminhava de encontro ao carro guardado pela Tenente Deuner.

 Seu olhar vagou para o amplo gramado além dos carros, próximo ao ponto de pouso dos helicópteros. Aquilo a remeteu à liberdade, ao tão sonhado momento em que seria levada até o jato particular e de volta a São Paulo, à sua casa.

— Casa — sussurrou, com um sorriso amargo, enquanto passava para dentro do carro.

 Casa era uma palavra de significados perdidos para Izabel. Casa não era um lugar na Europa com a família, ou o Palácio da Alvorada com suas paredes de vidro límpido, ou mesmo o Palácio das Onças e suas árvores em São Paulo. Casa às vezes era estar com sua equipe de assessores e os poucos amigos. Mas dificilmente era estar consigo mesma.

 

— Nós podemos conversar em francês. — Izabel sorriu, condescente.

 A jornalista a observou com certa relutância por um ou dois segundos, mas foi o bastante para Izabel sentir-se insegura. Como uma personalidade pública, todos os seus mínimos gestos eram lidos e interpretados, e que leituras aquela jovem francesa não poderia fazer de sua postura?

 Ela recuou na poltrona, tentando adotar uma expressão austera.

— Obrigada, é muito gentil de sua parte — Jana Bublitz agradeceu ainda em francês.

 Izabel virou as palmas para cima sobre o colo, lendo as palavras-chaves disfarçadamente.

 O assistente de Jana, um rapaz magro e barbudo, ajeitou os gravadores na mesinha ao lado dela. Os dois trocaram algumas poucas palavras depressa, como se para evitar que fossem entendidos. Com movimentos comedidos, Jana buscou o iPad e uma pequena caderneta na bolsa-pasta que trazia. O rapaz meneou a cabeça para ela, enfático, então pediu licença e se retirou para a sala.

— Podemos começar com um flashback? — Jana pigarreou. Com apenas as duas no quarto, aquilo parecia um interrogatório para pegar alguém em uma mentira. — Sei que deve estar cansada de repassar as mesmas informações, mas é a sua primeira entrevista para a BCC francesa, então eu gostaria de começar do zero.

 A rainha aquiesceu, remexendo-se na poltrona. Discretamente, de soslaio, lançou um olhar à passagem para a saleta. Podia ver parte das costas do vestido de Hannah, o que a deixou aliviada. Se as coisas com Bublitz ficassem difíceis, bastava chamar por alguém da equipe.

— Então, como foi crescer como herdeira de um trono invisível?

 A pergunta abriu um sorriso suave nos lábios de Izabel.

— Normal, eu acho. Quando você está crescendo, no processo de entender quem se é e o que as pessoas ao seu redor são, no processo de entender o mundo, leva um tempo até cair a ficha de “sou uma princesa”. Nada como um filme de fantasia, mas foi divertido — ela gracejou. — Eu passei a maior parte da minha vida me sentindo uma princesa de mentirinha, detentora de um título de brincadeira, como um cupom que você ganha em alguma promoção e espera tanto tempo para usar que, quando finalmente resolve por qual prêmio vai trocar, ele já perdeu a validade. Herdeira de um trono invisível, como você disse.

 Bublitz fez anotações na caderneta. A luz da luminária na mesinha acentuava ainda mais seu ar de elegância, tipicamente francês. Izabel perguntou-se se também pareceria elegante e adulta aos olhos dela, mas temeu que não. Sua última fala soara como uma adolescente imberbe, sonhadora. E mentirosa.

 Embora sua perda de memória em decorrência do acidente não fosse segredo, o grau do estrago era. Suas impressões do passado frequentemente não eram mais do reconstruções com abuso de licença poética.

— E isso não te incomodava? Quero dizer, você nunca teve vontade de fazer esse trono ser visível?

 Aí está. Diante da primeira bomba no campo minado, Izabel pousou a mão cautelosamente sobre o braço da poltrona, ajustando a postura. Começara oferecendo muita abertura, mas a jornalista não estava ali para trivialidades. Aquela era uma pergunta traiçoeira, uma das muitas que Guilherme havia predito em sua cartilha de instruções para entrevistas. “Você e sua família estavam planejando um golpe?”, era o que a jornalista queria dizer.

— Quando eu era criança, acho que sim. Mas depois, eu agradecia por ser uma princesa invisível, porque isso me permitia uma liberdade maior. E nunca passou pela minha cabeça que os cupons de realeza do Brasil pudessem voltar a ter valor.

— Bem, mas um ano antes do seu acidente… — Jana leu notas no iPad. — Perdão, dois anos antes, o movimento político para uma possível transição do sistema de governo começou a ganhar forma aqui no Brasil e, publicamente falando, você e a maior parte da sua família não estavam engajadas nas manobras no Congresso ou em outras frentes, mas alguns Orleans e Bragança estavam, por conta própria. A questão da monarquia ganhou força nas discussões oficiais justamente através deles.

  Ela ergueu os olhos escuros, endurecida. Os pequenos gracejos e gentilezas tinham acabado. O que Jana desejava agora eram escorregões, falas comprometedoras.

— Pela ordem direta, se a monarquia integrasse o sistema de governo, você seria a primeira na fila do trono. Isso não acendeu a vontade de fazer valer seu título? Não te levou a participar de jogadas estratégicas nos bastidores para fazer vingar a iniciativa monárquica?

 Izabel sentiu a garganta coçar e tentou engolir o desconforto que despontava.

— Não.

— Não mesmo? — Jana arqueou as sobrancelhas. A ponta de sua caneta elegante tocou a caderneta presunçosamente. — Nem mesmo quando a sua mãe começou a se envolver com esse tipo de esquema?

 Quase sem querer, Izabel se transportou para suas lembranças nubladas no norte da França. Naquela época, reuniões a portas fechadas até tarde da noite e às vezes de madrugada, gente estranha andando pela casa, os parentes tomando muito cuidado com as palavras perto dela começaram a virar rotina – como Julian lhe contara. Já pensou? “Rainha do Brasil”, seu avô ficaria orgulhoso. O olhar da mãe, sempre muito distante, afiado, empreendedor. Você é o maior investimento da nossa família.

 Ela meneou a cabeça para desanuviar os pensamentos.

— Minha mãe não moveu peças de maneiras obscuras, se é isso que você está sugerindo. — Mas não tinha certeza.

 Jana voltou às notas por um instante.

— Bem, nada ficou completamente comprovado, mas algumas informações foram vazadas na época. Claramente os Orleans e Bragança na Europa se reuniram várias vezes, estruturando documentos para levar um membro da família ao comando do Brasil. Uma das sedes dessas reuniões foi o palacete dos seus pais, na Normandia. — Jana girou a caneta de corpo fino entre os dedos. Soava tão segura, como se a estivesse prendendo em uma armadilha, sem chance de erro. — Sua tia Heloisa Dyke chegou a participar dessas reuniões durante alguns meses, mas abandonou o grupo quando a pretensão dos príncipes Antônio e Francisco ao trono foi recusada em favor da sua. Pouco depois, ela foi a público acusar sua mãe de atos corruptos e inclusive de assassinato.

 Houve um momento de silêncio, completo silêncio. As vozes na sala adjacente tinham se calado, a rua depois das janelas às costas de Jana pareceu ficar deserta. Izabel não se moveu um milímetro sequer. Tinha uma ideia pouco consciente de que estava com a respiração suspensa, mas era incapaz de encher os pulmões como desejava.

— Então, dois meses depois, a senhora Heloisa foi acusada por apoiadores da monarquia brasileira de conjecturar com forças estadunienses para a promoção de uma política entregacionista. Segundo as provas divulgadas, os Estados Unidos apoiariam a ascensão de Antônio ou Francisco ao trono e facilitariam acordos em troca de privilégios econômicos. Uma traição à família.

— O sangue geralmente fala mais alto. — Izabel assentiu, fingindo indiferença.

 Parte da família de tia Heloisa era dos Estados Unidos, o que era visto com maus olhos pelos Orleans e Bragança. De modo que, quando Antônio e Francisco ficaram órfãos como Izabel, os primos foram educados segundo o que os mais velhos da família paterna achavam melhor.

— Foi o que seu tio-avô, Dom Luís, disse quando revogaram os direitos da senhora Heloisa adquiridos por casamento. — Jana esboçou um sorriso seco. — Sua mãe se referiu à situação como “tirar as ervas-daninhas do jardim”.

 Izabel remexeu-se com o arrepio que percorreu seus nervos. Antes de entrevistas ou declarações, Hannah sempre lhe dizia para se manter ciente de quem era, do que representava. Os outros é que devem ficar nervosos na sua presença, meu bem. No entanto, ela raramente conseguia levar aquilo a cabo.

— Até esses acontecimentos, você era muito próxima à sua tia. Como foi ter de cortar relações com ela? — Jana gesticulou como se oferecesse algo. — Acha que escolher um de seus primos em vez de você para o trono era o mais justo a se fazer? Vocês continuam se comunicando mesmo com essa tensão que foi imposta?

 Pelo canto do olho, Izabel entreviu Hannah aproximando-se da passagem que dava no quarto.Talvez o cheiro de problema estivesse começando a aguçar seus sentidos.

— Bem, acho que é difícil formular respostas certeiras que envolvem o passado depois do acidente, não é? Pelo seu problema de memória… — Jana recuou um pouco na poltrona, relaxando a mão que segurava a caneta sobre o braço retorcido do móvel. — Você precisa de um tempo?

 Izabel começava a se irritar com seu trejeito de dizer “bem”, com sua atitude inquisidora, com o rumo que a conversa tomava. Suas unhas afundaram no revestimento de camurça da poltrona.

— Pensei que a nossa entrevista fosse para falar sobre as primeiras eleições após a mudança do sistema de governo. — A própria voz soou ácida aos seus ouvidos. Um corte de faca limpo. — Não vou responder perguntas sobre relacionamentos familiares.

 Jana arregalou os olhos para ela levemente. Porém, o efeito daquele contra-ataque durou pouco.

— Perdão, vamos chegar lá — ela assegurou, um tanto atordoada. — Estou fazendo o possível para aproveitar o nosso encontro, então montar o pano de fundo é essencial. 

 O joelho de Izabel teve um espasmo. Involuntariamente, ela buscou Hannah com o olhar, sem discrição. Temia que o nariz começasse a formigar com o prenúncio de um choro de nervosismo.

 Já tinha um histórico de ataques de ansiedade em situações como aquela. O último acontecera há dois meses, com um diplomata suíço numa sala do Palácio do Planalto. O homem suscitara o assunto do assassinato de seu pai e isso fora o bastante para que Izabel ficasse com a sensação de que os órgãos implodiam. Hannah teve de socorrê-la, inventando uma desculpa para encerrar o encontro.

 Ela ajeitou a franja distraidamente, com a ponta dos dedos resvalando a cicatriz.

— Podemos falar sobre o acidente, então? — Jana inclinou-se para ela.

 De repente, a rainha se deu conta de que estivera encarando o tapete felpudo entre as poltronas. E também notou que a jornalista olhava abertamente para a sua cabeça, para a cicatriz.

— Como?

— Você nunca comentou sobre. Durante o período em que você ficou em coma, a senhora Heloisa chegou a acusar sua mãe de te usar como cobaia em testes do laboratório suíço Zarina e te substituir por uma espécie de sósia. Isso fomentou outra teoria: de que a verdadeira Princesa Izabel teria morrido em decorrência do acidente e sido substituída para que sua mãe não perdesse o lugar privilegiado.

 Izabel pestanejou, estupefata. Seu corpo pesou como se uma grande onda tivesse acabado de atingi-la e ela estivesse tentando sair do mar.

 Aquele era um assunto proibido, ignorado. A Coroa, a mando da Rainha-Mãe, fazia o possível para manter distância entre Izabel e ele. E ela mesma estava pouco inclinada a acompanhá-lo.

— E-eu… — tentou balbuciar, inclinando-se ligeiramente para frente.

 A boca encheu-se com o gosto da bile, subindo incomodamente pela garganta. Um vulto surgiu ao seu lado, bem quando ela grunhiu para digerir o ataque.

— Senhorita Bublitz, essa entrevista está caminhando para um viés muito perigoso, não acha? — A voz de Hannah era cordial, mas dura. — A impressão é que as perguntas têm o objetivo de manchar a imagem da família real, e até agora não ouvimos uma palavra sequer do assunto que concordamos em tratar.

— Queira me desculpar, mas a rainha tem idade e maturidade o suficientes para responder a uma entrevista — Jana rebateu, irredutível.

 O assiste barbudo surgiu também, aproximando-se delas. Izabel achou o quarto excessivamente pequeno e terrivelmente claro com aquela aglomeração. Era agoniante.

— Ou será que o acidente a afetou tanto assim? É difícil saber com certeza, já que suas aparições e declarações públicas parecem tão bem ensaiadas.

— Pare a gravação, por gentileza — Hannah dirigiu-se diretamente ao assistente.

— Rainha Izabel, gostaria de dizer algo a respeito dessas teorias?

 Izabel sentiu-se quente, sufocada sob o blazer de lã. Pensou na tia que se recusara a recebê-la – “Você não é a minha sobrinha.”—, nas coisas terríveis que diziam sobre sua mãe na Internet, em como raramente se sentia confortável sob a própria pele, nas memórias embaralhadas depois do coma. Estar ali, sendo alvejada pelas perguntas da jornalista, era como uma sessão de terapia ao reverso.

— Quero encerrar nossa entrevista — disse, com a voz levemente embargada. Uma criança que declarava não querer mais brincar, manhosa. — Sinto muito, mas o que a BCC combinou com minha equipe não foi isso. — Ela se levantou, as mãos seguras uma na outra, muito coladas à barriga. — Espero que tenhamos oportunidades mais agradáveis para conversar. Até mais ver.

 O som dos seus saltos voltando para a sala do quarto pareciam pertencer aos passos de outra pessoa. Izabel tentou ater-se ao ritmo dele, caminhando tão tranquilamente quanto pôde até a porta. Hannah estava logo atrás, cochichando algo no rádio-comunicador.

 A rainha deixou-se conduzir para fora do hotel e manteve-se em silêncio durante todo o trajeto de volta ao Palácio da Alvorada, a residência do primeiro-ministro. Ninguém a questionou, pequenas irreverências eram aceitáveis para o seu cargo.

 As palavras da jornalista se embrenhavam em sua mente como serpentes num ninho, suscitando lembranças diversas sobre os mesmos assuntos. Em particular, Izabel recordou-se com clareza de uma matéria que repassava o densenrolar do assassinato de seu pai, estampada em páginas privilegiadas do Estado de S. Paulo numa edição lançada na semana de seu acidente. “Cogita-se que a coroa seja passada a um dos primos da Princesa Izabel caso ela não se recupere em um prazo a ser determinado pelo Parlamento”.

 O carro parou na segunda guarita de segurança da propriedade com um solavanco. Izabel observou sem emoção seu reflexo no vidro filmado da janela.

 É assim que uma rainha se parece?

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