Exílio em Marseille escrita por Ly Anne Black, Indignado Secreto de Natal


Capítulo 1
Único


Notas iniciais do capítulo

História dedicada à Gabriela Germano, minha indigna secreta neste ISN! Só você pra me fazer escrever (enfim) uma Snamione, espero que goste!

Música: Everything I Wanted - Billie Elish



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I had a dream
I got everything I wanted
Not what you'd think
And if I'm being honest

It might've been a nightmare
To anyone who might care

Quando Hermione decidiu deixar o Reino Unido na virada do ano 2000, ninguém lhe perguntou por quê. Por isso, ela ficou grata. Não sabia o motivo, só que precisava de distância. Espaço. Três anos desde o fim da segunda guerra bruxa e os tabloides ainda estavam terrivelmente interessados.

Trio de Ouro Despedaçado?, perguntava a manchete do Profeta Diário, por cima de uma foto de página inteira na qual ela se despedia de Harry e Rony no aeroporto Heathrow, em Londres. Como eles tinham conseguido aquela foto mágica num dos maiores pontos de circulação trouxa do mundo, ela não sabia.

Hermione amassou o Profeta Diário entre as mãos e o enfiou com prazer em uma lata de lixo de Paris. Ao contrário do que a matéria especulava, não tinha ido muito longe, a fim de “afogar as ruínas do que prometia ter sido um futuro brilhante”. Só assumira uma nova identidade e pretendia se virar com recursos não mágicos por algum tempo.

Magia era ótimo, claro, mas também podia ser… sufocante.


Thought I could fly (fly)
So I stepped off the Golden, mm
Nobody cried (cried, cried, cried, cried)
Nobody even noticed

I saw them standing right there
Kinda thought they might care (might care, might care)

 

Os seus amigos mais próximos supunham que Hermione estava indo atrás dos pais, a fim de reverter os feitiços de memória que usara para mantê-los seguros no início da guerra. Ela nunca confirmara ou negara aquela hipótese. Mas não, não pretendia encontrar “Wendell” “Mônica Wilkins” e explicá-los como lhes roubara as memórias da sua única filha. Se fosse para retornar uma Hermione quebrada, era muito melhor não retornar Hermione nenhuma.

— Lily Jane Evans — ela disse para o caixa da Gare de Lyon, quando ele pediu o seu nome. Supunha que não era muito criativa, mas tinha pedido a permissão de Harry para usar o nome de solteiro de mãe dele. Também tinha colorido o cabelo de vermelho, para que pudesse usar os documentos trouxas de Lily, que Harry encontrara em uma gaveta na velha casa em Godric’s Hollow. Falsificar uma data de nascimento em documentos trouxas tendia a ser muito mais fácil do que inventar uma pessoa completamente nova.

“Para Marseille”, Hermione respondeu, quando o caixa lhe perguntou o destino do seu ticket. 


I had a dream
I got everything I wanted
But when I wake up, I see
You with me
And you say, "As long as I'm here
No one can hurt you

O bangalô que Hermione alugara em Marseille era pequeno, antigo, com paredes cor de pêssego e cheiro de coisas esquecidas pelo tempo. Em suma, perfeito. Hermione desempacotou os muitos livros que tinha trazido consigo na sua bolsinha sem fundo e os colocou em pilhas no chão, depois os organizou nas prateleiras vazias. Ela escolhu a sua primeira vítima, enrolou um cobertor em torno dos ombros e foi se sentar do lado de fora.

Respirou fundo – o ar tinha com cheiro de margaridas e salitre, não de mágoas, arrependimentos e rancores como o que deixara no Reino Unido.

Os pesadelos, no entanto, vieram no fundo da sua bolsinha e a encontraram logo na primeira noite. 


Don't wanna lie here
But you can learn to
If I could change
The way that you see yourself
You wouldn't wonder why you hear
They don't deserve you

 

Eu nunca vou deixar você sozinha”. Não fora aquele o voto de casamento de Jorge, uma das muitas promessas quebradas naquele dia? 

Sinto muito por deixar você sozinha”, ele escrevera em sua carta de despedida. Molly encontrara o filho gelado, em rigor mortis avançado, no casebre de ferramentas detrás d’A Toca.

Mas a verdade é que Jorge tinha morrido dois anos antes, junto com Fred durante a batalha de Hogwarts. Ele só precisou de algum tempo para fazer as pazes com aquilo…

Hermione acordou sem saber se estivera em um pesadelo, ou se era o pesadelo que estava nela. Às vezes, se pegava pensando se ela também não tinha morrido naquele dia, e tinha falhado em se dar conta. A aliança que ainda usava no anelar esquerdo, do homem que jurara que ficaria com ela para sempre e decidira se matar em uma noite quente de agosto, fazia com que se questionasse as suas razões pata continuar tentando. 

“Você precisa ser forte, Mione”, era a opinião de Harry sobre o assunto. Fácil para Harry falar, a força dele era interminável. Harry tinha sacrificado tudo, a própria vida inclusive, pela guerra, e não podia fazer nada menos do que reivindicar essa vida de volta agora que lhe era dada uma chance.

Harry era feliz. Como ele conseguia? 

Hermione rolou para fora da cama estranha, sabendo que não conseguiria mais pregar os olhos. Além do mais, achava que tinha ouvido batidas na porta do bangalô.

 


I tried to scream
But my head was underwater
They called me weak
Like I'm not just somebody's daughter
Coulda been a nightmare
But it felt like they were…

Severus Snape era o homem parado em sua varanda, a expressão de choque em seu rosto espelhando a que surgia no dela.

— Mas… o senhor está morto — Herione balbuciou, achando que estava finalmente vendo fantasmas.

— Você também — ele retrucou com gravidade, indicando o nome acima do endereço da sua recém-recebida correspondência, que ele devia ter pescado da caixa de correio ao passar. — Srta. Lilian J. Evans.

 

And it feels like yesterday was a year ago
But I don't wanna let anybody know
'Cause everybody wants something from me now
And I don't wanna let 'em down

 

Eu precisava me afastar — explicou Hermione, falando mais com as mãos em seu colo do que com o seu ex-mestre de poções, que agora estava sentado em uma das duas poltronas da salinha. Ela  se virou para fitá-lo, em busca de sua empatia. — Imagino que foi o mesmo para o senhor? 

— Eu suponho que sim — Severus concordou. De alguma forma, ele parecia mais jovem do que ela se lembrava. Não em aparência, mas em essência. A expressão em seu rosto era menos amargurada, o vinco tenso entre as suas sobrancelhas quase desaparecera. Ela ficou surpresa em ver beleza em seu semblante, onde antes sempre vira amargura. — Se não se importa que pergunte, Srta. Granger, como chegou até aqui? 

Hermione hesitou. Supunha que, em retrospecto, tudo fazia sentido. Mas estivera tão ansiosa para escapar da sua vida na Inglaterra que não questionara a oferta da sua ex-professora e eterna conselheira para assuntos acadêmicos e pessoais. 

— Minerva me ofereceu esse lugar. Ela disse que a sua família extendida tem várias propriedades na área, e que eu poderia… contar com apoio se me visse em necessidade. Agora que penso, suponho que ela estava se referindo ao senhor.

Severus assentiu, um leve vinco nos lábios, que poderia ser um esgar de insatisfação ou um sorriso contrafeito.

— Imagino que ela estivesse preocupada com a sua segurança. Bem, não pretendo perturbá-la mais, Srta. Granger. Só achei a conhecidência do nome em sua correspondência alarmante demais para não investigar a fundo — ele justificou, se levantando. — Se precisar de qualquer coisa, no entanto…

— Não. Eu estou bem, professor. Obrigada.

Severus parou à porta. Era alucinação dela, ou ele sorria? 

— Não sou mais seu professor, Hermione.

* * *

Que Hermione não precisava de nada era uma mentira. Agora que a sua vida era um grande vazio a ser preenchido com novos hábitos, os pesadelos tinham decidido sequestrar as suas horas na cama, impedindo o curso natural do seu sono.

Ela acordava exausta quando ainda estava escuro, atormentada, em guerra consigo mesma e com as suas lembranças. Com a sua solidão, com as suas perdas, com o que ela esperava ter se tornado mas abandonara pelo meio do caminho.

Com a sua recusa em aceitar a proposta para trabalhar no Departamento de Controle e Regulamentação das Criaturas Mágicas do Ministério. Com a sua subsequente incapacidade de assumir qualquer emprego por mais de alguns meses, por mais excepcional que ela fosse. Com a sua covardia em procurar os pais, reverter a sua memória e admitir o que fizera com eles…

A Hermione em que ela deveria ter se tornado agora era o seu demônio pessoal, decidido a fazer da Hermione real uma desculpa miserável e insone de ser humano.

Ela se viu batendo na porta de Severus Snape – agora Tobias Prince, ou ao menos dizia a sua caixa postal – no meio de uma noite quente de agosto. As noites quentes de agosto eram as piores.

— Sim? — Ele perguntou, sonolento, e ao reconhecê-la: — Algum problema, Srta. Granger?

— É Jane, agora — ela o lembrou. — E não, nenhum problema, eu só estava me perguntando se o senhor teria alguma poção do sono. Posso pagar por uma dose — ela completou numa voz baixa, ligeiramente constrangida, se sentindo uma viciada em abstinência. 

Severus olhou por cima do ombro dela por um segunod, então a convidou a entrar.

— Isso deve ajudar com o seu problema. — Ele lhe entregou uma xícara fumegante equilibrada em um pires. Hermione cheirou o conteúdo, primeiro suspeita e então decepionada: — Chá de camomila? 

Severus se sentou no sofá diante dela, com uma xícara ele mesmo, e um sorrisinho zombeteiro diante do tom decepcionado. 

— Não faço mais poções, senhorita Jane.

Ela precisou de um minuto para digerir a informação; mal podia disassociar Severus Snape de poções. Mas então, achou que compreendia. Poções devia lembrá-lo de Hogwarts, de tudo que fora forçado a fazer como espião, para Voldemort e para Dumbledore… Harry contara a Hermione todos os detalhes das memórias de Snape, depois da batalha final. E o que ele não sabia, ela descobrira de outras fontes. Severus recebera uma ordem de Merlin póstuma em reconhecimento aos seus serviços para a comunidade bruxa. Havia uma lápide com o nome dele em Hogwarts, bem perto da de Dumbledore.

— Foi Minerva que o ajudou a forjar a sua morte e deixar o país? — Ela perguntou, bebericando o chá. Ele hesitou, então assentiu. Hermione sorriu, satisfeita com a dedução correta.

— Parece que ela está fazendo disso uma carreira, então. Muito em breve haverá uma vizinhança inteira de veteranos de guerra exilados em Marseille.

Os olhos dele ficaram sombrios.

— Espero que não cheguemos a isso.

Hermione se sentiu culpada por bater na porta do homem no meio da noite, como se ele tivesse qualquer obrigação de ajudá-la.

— Sinto muito por incomodâ-lo. Obrigada pelo chá. Mas não vou… garanto que não vai acontecer de novo.

Ela se levantou, deixando a xícara sobre a mesa de centro e ajeitando o casaco para ir embora.

— Sobre o que são os pesadelos? Se não se importa que eu pergunte — ele quis saber, procurando os olhos dela.

Hermione se deu conta de que nunca tinha olhado nos olhos de Severus Snape. Eram puro caos, o puxão magnético do vazio tragando-o para baixo. Ela desviou os seus com rapidez, o coração acelerando como se o seu corpo tivesse decidido que estava em perigo.

— São as coisas que ficaram pelo caminho — ela admitiu, sem querer entrar em detalhes.

Ele assentiu, como se ela não precisasse.

— Elas sempre voltam para atormentar, não voltam? 

Havia um sorriso irônico no rosto dele, que ela só entendeu quando estava caminhando no escuro, a curta distância de volta para o seu bangalô.

Usando o nome da mulher que ele amara, voltando para bater na sua porta no meio da noite, ela era a tormenta de Severus.


I had a dream
I got everything I wanted
But when I wake up, I see
You with me

And you say, “As long as I'm here
No one can hurt you”

Quando a tintura se desgastou, Hermione não coloriu o seu cabelo de novo. Para não voltar a incomodá-lo, ela fez uma visita à feira de productos locais e comprou uma lata de chá orgânico de camomila. Quando acordava no meio da noite, fazia uma xícara para si mesma e ficava lendo em sua poltrona ou, se a noite estava quente, se sentava do lado de fora, na varanda. Ficava ouvindo os grilos, tentando se distrair com um dos clássicos da literatura trouxa que nunca tivera tempo de ler durante a escola.

Então um dia ela foi acordada por Severus e tomou um grande susto, que resultou em um gritinho.

— Ah, é o senhor — ela respirou aliviada ao reconhecê-lo, e depois surpresa de que já era dia claro.

Severus usava largas calças de corrida, um par de tênis brancos e uma camiseta que deixava de fora os seus braços muito pálidos. O cabelo que ele vinha cultivando longo fora preso para trás, em um elástico. Nunca, nem em seus sonhos adolescente mais psicodélicos e inconfessáveis, Hermione imaginara ver o seu professor de poções em vestes tão blatantemente trouxas.

— Está passando mal? Perdeu a consicência, ou…?

— Oh, não senhor– ela se apressou a cobrir a camisola curta com o robe que deixara largado ao seu lado. Aquela havia sido uma noite particularmente abafada. — Eu peguei no sono lendo, ao que parece.

Ele olhou com suspeita para o livro que ela apontava, caído aos séus pés no segundo degrau da escadinha da entrada.

— Bem, se está certa certeza disso…

— Eu estou — Hermione garantiu, se levantando, o rosto queimando de vergonha. Tinha babado enquanto dormia? Qual era o estado do seu cabelo? — Então, acho que eu vou entrar– ela se apressou, ao mesmo tempo em que ele disse:

— Quer me acompanhar em uma caminhada? 

Hermione achou que tinha ouvido errado.

— Eu estava indo caminhar na praia. Se quiser se juntar a mim, posso esperar que se ponha em trajes mais adequados. — Severus esclareceu, diante da expressão confusa dela.

Ela supunha que podia… agora que estava acordada.


Don't wanna lie here
But you can learn to
If I could change
The way that you see yourself
You wouldn't wonder why you hear
They don't deserve you"

 

Acompanhá-lo em suas caminhadas de manhã bem cedo rapidamente se tornou um hábito. Severus passava pela sua varanda a caminho da praia e nunca batia, mas era pontual como um relógio atômico. Hermione achava hilário ver o seu antigo professor em roupas de exercício, e começou a se pegar admirando o jeito com que os membros longos e compridos de Severus se moviam nas caminhadas aceleradas.

Logo eles passaram a tomar o café da manhã juntos na cozinha dela, depois de cada caminhada. Encontraram assuntos em comum. Severus tinha lido muitos dos livros que ela trouxera consigo, e mostrou interesse em muitos dos que ainda não tinha. Ela passou a emprestar um de seus volumes à medida que o terminava, assim podiam discutir a história durante as caminhadas.

Um dia do fim de setembro, ele mencionou um chá novo que havia adquirido, e que era ainda mais eficiente do que camomila para facilitar o sono. Se ela estivesse interessada em fazer uma visita mais tarde, ele lhe preparia uma xícara. 

Hermione aceitou o convite e acabou ficando mais tempo do que pretendia. Havia muito a se falar sobre Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, o livro que ela o emprestara no dia anterior. Ficou satisfeita em saber que ele já estava começando a ler o terceiro ato. Será que ele não achava interessante como Orwell retratara o controle sobre o tempo como–

Severus se inclinou em sua direção devagar e Hermione se calou. A mão fria dele espalmou a lateral do seu rosto e ela fechou os olhos, como se respondendo a um comando implícito da mente dele para a sua. 

Os lábios de Severus tomaram os seus com gentileza. Hermione pensou que ia achar estranho, profano até, mas não achou. Foi como o conforto do chá morno de valeriana que ele tinha lhe oferecido mais cedo. Um convite para uma noite sem espaço para pesadelos.

If I knew it all then would I do it again?
Would I do it again?
If they knew what they said would go straight to my head
What would they say instead?

Eu aprecio que retornou o seu cabelo ao tom original — Severus lhe disse em tom de conspiração, num dia qualquer do fim do outono. Já fazia um tempo que Hermione parara de checar o calendário.

— Não acho que o ruivo combinava muito comigo — ela admitiu, se aconchegando a ele. Para alguém que era feito de ossos protuberantes e concavidades profundas, Severus era inexplicavelmente confortável. — Mas sempre achei que odiava o meu cabelo.

— Eu nunca odiei nada em você — ele disse muito sério, mas a nota de ironia a informou que havia mais por vir. — Apenas a sua péssima escolha de amizades e a sua mania de saber tanto sobre o conteúdo das minhas aulas quanto eu mesmo.

Ela riu sonoramente.

— Então, só uns oitenta por cento do que eu era na escola. Sendo que os vinte por cento restantes eram o meu cabelo volumoso.

— Há muito mais em você do que isso, Hermione — ele disse, agora sem sarcasmo, olhando-a fundo nos olhos. Mesmo agora, depois de ter se encontrado por tantas vezes nos braços daquele homem, Hermione achava desoncertante ser o alvo exclusivo da sua atenção. — Eu vejo isso e um dia, você também verá. Farei desta minha nova obsessão, se for preciso.

Hermione sorriu, algo se acalmando dentro dela. Se tinha uma coisa que aprendera sobre Severus, é que ele era fiel às suas obsessões.

Sempre.

If I knew it all then would I do it again?
Would I do it again?

If they knew what they said would go straight to my head
What would they say instead?

 

 


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