Uma Hora a Mais escrita por André Tornado


Capítulo 5
Não se pode ficar com o que nunca se teve




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Mike passou a desejar fervorosamente que o Chester voltasse a aparecer. Desenvolveu o que se podia chamar de adição. Um vício que o deixava irrequieto e expectante, que lhe condicionava a organização do seu dia a dia, que o manietava ao ponto de ele tomar decisões em função daqueles escassos minutos em que tinha consigo a presença do seu companheiro musical e amigo.

Precisavam de conversar a sério. Esse era o grande motivo por que Mike desejava a presença de Chester, para esclarecer de uma vez por todas o que eles tinham, e essa conversa nunca se proporcionava. O amigo andava feliz e elétrico, como nos seus melhores dias, rindo-se, inspirado e imparável, com uma energia inesgotável que deixava Mike agradavelmente zonzo, e esquivava-se maravilhosamente a essa conversa definitiva que haveria de destruir, ou de reconstruir, o que existia ali.

Mike resolveu não insistir. Com o Chester, aquele novo Chester, que vinha sabia-se lá de onde e que se aninhava na sua casa, que surgia no estúdio como se tivesse ali chegado havia horas e que considerava mais do que normal estar naquele lugar, estava tudo bem e Mike esforçou-se por corresponder à atitude dele.

Estava tudo bem. Era um ponto de partida, ou mesmo de chegada. Ou nem sequer seria um início ou um fim, apenas um estado das coisas. Eles estavam juntos e era o que bastava.

Naquele negócio, porque era um sistema de troca de alguma coisa, Mike já tinha percebido que devia deixar andar e que era pior se ele tentasse atirar lógica, prudência e racionalidade para aquele caldeirão. No fundo, quem ordenava, punha e dispunha, era o Chester. Ele funcionava apenas como um recetáculo, recipiente moldado para acolher a dádiva. De mãos postas, aguardava. O momento passava e ele devia sentir-se agradecido, porque se ele se pusesse a pensar naquilo de uma maneira isenta, os encontros não deviam existir.

Mike continuava a esconder de toda a gente o facto de estar periodicamente com o Chester. Até da amiga da Anna que era psicóloga e com a qual teve algumas sessões, via plataforma digital, por insistência da mulher que estava preocupada com a sua saúde mental depois daquele colapso que implicou loiça partida, corridas e até desmaios – nessa tarde, a Anna foi encontrá-lo a dormir no sofá do estúdio, depois de ceder à exaustão do tumulto provocado pela aparição do Chester que o Otis testemunhara inadvertidamente. Ele explicou que talvez perdera os sentidos, estava a sentir-se enjoado e tinha dormido mal nas noites anteriores. A Anna sentenciou que ou ele aceitava ser consultado, ou proibia-o de entrar nas lives de manhã. Como ele não queria ficar sem a boia de salvação que era o Twitch, mais a comunidade dos wombats, aceitou de boa vontade, sem colocar qualquer obstáculo.

Então, no dia da primeira consulta com a psicóloga, Mike não contou a verdade. À partida não queria revelar nada e manteve o segredo. Ele considerava que o Chester não estava relacionado com o seu cansaço crónico, tudo derivava em grande parte da pandemia e da incerteza dos tempos. Era uma explicação tão razoável e plausível que ele saiu-se muito bem na fotografia. A psicóloga ficou agradada com a sua sinceridade, a Anna ficou aliviada por saber que estava tudo bem com ele, dentro do quadro geral de alguém que passara a viver a maioria dos seus dias fechado em casa, a paz regressou ao seu lar e ele acalmou-se, aceitando o seu fantasma particular.

E de manhã, como em todas as manhãs, o Mike distraía-se no seu canal do Twitch. Tinha havido uma alteração, porém. A psicóloga recomendara-lhe que diminuísse o tempo de streaming e ele concordou em retirar uma hora à transmissão. Em vez de fazer três horas seguidas, passou a fazer somente duas. Essa alteração prendia-se primeiro com as comemorações dos vinte anos do Hybrid Theory, que tinham arrancado no início de outubro. Mike estava a ser muito requisitado para entrevistas e encontros virtuais com os outros membros da banda, todos juntos faziam a promoção da edição comemorativa do álbum de estreia dos Linkin Park, que continuava a ser, malgrado a sua opinião pessoal e a sua posição enquanto criador e artista, um marco incontornável na sua carreira.

Depois de esgotada a novidade das comemorações, Mike confortou-se em fazer só as duas horas de live, porque era menos exigente e ele ficava menos tenso. Conseguia mais tempo para si e pera a família, entrou noutros projetos que não lhe pediam tanto. Mostrar-se aos seus fãs, entabular uma conversa amigável, explicando tudo o que ia fazendo, improvisando pequenos tutoriais de como criar sons que podiam resultar em música, ou como usar truques simples no desenho, acabava por ser tão cansativo como um trabalho aborrecido e ele detestava a obrigação de uma rotina vazia.

Se lhe tivessem dito, em março, quando tinha iniciado aquele percurso de streamer, que em dezembro ainda iria apresentar-se perante a sua assistência em diversas atividades que tanto o entretinham a ele, como a um exército mais ou menos fiel de seguidores, após algumas pausas para férias e festividades, ele ter-se-ia rido alto. Agora, aproveitava esses momentos e tornava-os, o mais possível, condizentes com a sua personalidade pública. No exterior a segunda vaga da pandemia alastrava-se, furiosa e aparentemente imparável, com números assustadores de mortos e de infetados, o cansaço era avassalador e continuava a ser necessário uma distração inócua que deixasse as pessoas menos zangadas e deprimidas.

Outros desses momentos, que passaram a fazer parte do seu quotidiano, eram as aparições do Chester. Por vezes dava consigo a pensar se não estaria tudo interligado e relacionado. A pandemia, as apresentações ao vivo na internet, a presença do Chester. Um ano antes tudo isso podia ser classificado facilmente de loucura – ter uma carreira virtual, ser acompanhado por um fantasma. Em 2020, todavia, nada era considerado demasiado louco. O mundo em si estava louco e tudo o que não se encaixasse num conceito estável ajudava a sacudir a demência daqueles tempos estranhos, numa contradição ainda mais estranha.

Curiosamente, as visitas do Chester eram sempre no seu estúdio, ou tinham como início o estúdio. Assim, Mike conseguia gerir a situação com alguma margem de manobra e razoabilidade, se não se introduzissem variáveis mirabolantes, pois a sua família sabia que aquele sítio era sagrado e que só o podiam interromper por motivo de força maior.

Houvera alguns episódios mais complicados, admitia-o, como aquele em que o Chester fora até à cozinha sozinho, mas fazendo uma análise bastante genérica, Mike tinha tudo sob controlo. Isto, claro está, se ele não contasse com os instantes do começo e do término da visita. Esses eram sempre mais problemáticos, porque a surpresa acontecia sem considerar qualquer preparativo que ele fizesse. Era o Chester que escolhia quando aparecer e desaparecer e deixava-o constantemente aborrecido, ora por não manter a presença do amigo, ora por o momento não se enquadrar nas expetativas que tinha para aquele exato minuto. Depois Mike aceitava o ocorrido e ele escutava com toda a sua atenção o que Chester lhe vinha dizer.

Acabava por ser tudo muito rápido, na maior parte das ocasiões. Um olá trocado, o que fazes, quando Mike terminava de dar a sua explicação, como resposta, já o outro não estava ali a ouvi-lo.

Era sempre demasiado banal e nunca fora profundo. Mike queria, talvez, que o Chester viesse com uma mensagem qualquer que o deixasse apaziguado ou que contribuísse para o seu conhecimento sobre os mistérios da vida. Uma declaração ponderada e absoluta que lhe abriria as portas para outras dimensões do universo.

Recentemente tinha perdido uma fã assídua do canal por quem ele sentia uma imensa ternura, a Barb. Tinha falecido repentinamente após complicações derivadas de uma intervenção cirúrgica em finais de novembro. Por intermédio da Ana, a sua secretária, ele tinha entrado em contacto com a família da Barb, apresentara as suas condolências, fizera uma generosa contribuição monetária para a família da mulher. E nesses dias em que geria o choque de perder alguém que, a bem dizer, ele nunca tinha conhecido, novamente a enfrentar a injustiça da morte e a fragilidade da vida, enchia o cérebro de perguntas e esperava que o Chester, já que o Chester estava do outro lado, lhe respondesse a todas as suas dúvidas, receios e inquietações.

Não era isso que acontecia. O Chester era o mesmo Chester de sempre, com as suas atitudes infantis e deliciosas que o deixavam encantado e surpreendido, naquela dose certa que lhe enchia o coração e Mike limitava-se a aceitar a sua condição de privilegiado por conhecer um ser humano tão único e maravilhoso, sem qualquer esclarecimento ou revelação que servisse a humanidade.

Tinha até acontecido, uma vez, em que o Chester, num qualquer modo de invisibilidade que ele não se incomodou em tentar decifrar, interferiu com o equipamento da live. Desligava-lhe o som e os seus seguidores no canal deixavam de o ouvir. O Chester fazia de maneira a que acontecesse quando eram escolhidos GIFs animados, que ilustravam o canto superior direito do ecrã e os wombats convenceram-se que eram eles que provocavam a anomalia técnica. Um GIF surgia e o som era cortado. Mike descobrira, mais tarde, que fora o Chester, pelos risinhos que escutava ao fundo, atrás de si e tentou colocar calma no canal, dizendo que não podiam ser os GIFs, que não fazia sentido, divergindo, ao mesmo tempo, as atenções para que não desconfiassem de que tinha um fantasma a carregar nos botões e que vigiava o que ia acontecendo na live com uma propensão manhosa para a sabotagem inocente e divertida.

Então, convenceu-se que provavelmente era só isso – uma imensa brincadeira. Mike tinha o que sempre tivera e não estava no seu direito de exigir mais. Recuperara o convívio, ainda que breve, com o seu grande amigo e irmão, e só tinha de estar grato por aquela segunda, terceira, décima oportunidade.

Uma vez quis convencê-lo a cantar para si – estava com saudades de escutar, ao vivo, a voz do Chester. Falou-lhe novamente de ‘Open Door’, queria que ele lhe mostrasse as suas ideias e fora como um balde de água fria, que o deixara ensopado até aos ossos, quando Chester pestanejou, fez uma cara confusa e disse que não sabia do que Mike estava a falar. Voltou a queixar-se da falta do telemóvel e saiu disparado, escadas acima, a dizer que ia buscar o aparelho e que já vinha. Depois desse episódio ficou três dias sem aparecer.

Muito provavelmente, Mike não teria o privilégio de voltar a ouvir a voz angelical do Chester, a murmurar versos e refrões numa sala, em jeito de ensaio e de preparação para mais uma sessão de trabalho conjunta. Estava-lhe vedado esse desejo e porque ele não podia desejar nada, naquele esquema. Ele só tinha de receber o que lhe calhava e depois ir tentando aproveitar as migalhas, saboreando-as devagar para que não terminassem demasiado depressa.

Só que houve um dia, que foi o último dia, em que Mike, num desespero amargo, resolveu quebrar a convenção estabelecida e foi ousado, porque era, precisamente, o último dia. Despiu-se da sua proteção que o fazia suportar qualquer amargura ou tristeza, exibiu-se de coração e alma despidos e teve a sua recompensa. Fez o pedido e obteve-o.

Compunha mais uma faixa de música no programa ProTools, utilizando sons resgatados por alguns wombats assíduos que andaram a poupar os seus pontos para lhe fazerem o pedido. Pensava que já havia alguns dias que o Chester não aparecia e começava a acusar uma certa ressaca. Distraíra-se ao ponto de não ter falado nada na live, pois ele costumava falar bastante, pensando alto, enquanto trabalhava, para que a transmissão não fosse tão aborrecida e houvesse mais interação com os seus seguidores, agora também subscritores, uma multidão considerável, embora ele não conseguisse conferir o chat como deveria para aumentar essa interação.

Recebeu uma notificação no telemóvel. Pediu desculpa para a câmara, deixou a música inacabada a tocar em loop e foi verificar a mensagem. Tinha de fazer um breve telefonema. Saiu da cadeira e afastou-se das câmaras, não alterando o ângulo de captação, para ter alguma privacidade. Como habitualmente e sempre que ele saía da cadeira, o chat encheu-se de referências jocosas ao facto de ele ter levantado o cu, com o habitual ‘booty up’. Ele alinhara na brincadeira e até criara ícones, emotes desenhados por ele, para que fossem usados nas linhas de conversação durante esse momento. E aquele era um desses momentos.

Voltou costas à sua estação de trabalho, levou o telemóvel ao ouvido após digitar o número. Comunicou com a pessoa que lhe queria falar, combinaram as horas para a entrevista, ele desculpou-se por ser breve pois estava no meio da live. Desligou o telemóvel e voltou-se.

Engasgou-se com o próprio cuspo e as suas pernas tremeram. Chester estava de pé, de frente para o monitor e de costas para ele, de mãos nos bolsos das calças, imóvel e bastante interessado na caixa do chat que parecia um comboio desgovernado, tal era a velocidade das mensagens que eram digitadas. Pela posição do amigo ele estava a ser captado pelas câmaras. Não totalmente, mas metade do torso, um braço, talvez uma mão e parte do queixo estariam a aparecer na imagem que o seu querido bando de wombats estaria a visualizar.

— Ch-Chester? – gaguejou. A boca estava tão seca que a língua parecia um pedaço de trapo a bater contra os dentes e o interior das bochechas.

O amigo olhou-o por cima do ombro. Sorriu-lhe e tinha todo o aspeto de um menino travesso que acabava de fazer uma asneira.

Mike aproximou-se devagar.

— Chester? – insistiu.

Ao ver o chat intuiu o que se estava a passar. Era quase impossível ler o que quer que fosse, mas as palavras em letras maiúsculas destacavam-se, evidentemente, no meio de faixas lilases e uma profusão de ícones e gritos vários. O que ele mais lia era o nome “Chester” berrado em modo de histerismo mudo. E havia ainda aqueles que, baralhados, perguntavam se os cofres, os famosos chests do início das lives, tinham voltado, tomando os vários “Chester” digitados em franco tumulto como uma indicação de que houvera uma distribuição massiva e generosa de pontos no canal.

— Chester! – chamou, assertivo.

— Sim, Mike?

Chester encarou-o. Estava feliz e bem-humorado.

— O que foi que tu fizeste? – perguntou, embora já soubesse a resposta e temia-a, estando no limite de um ataque de nervos particularmente intenso.

— Disse olá aos teus amigos. Tens muitos amigos, mas eles também são meus amigos, pelos vistos… O teu canal gostou de me ver. Aliás, adorou ver-me. Acho que provoquei um orgasmo que ainda continua. Há gritos, desmaios… parece a Beatlemania!

— De te… ver? Tu mostraste-te… para as câmaras? – Essa era a verdade e Mike conhecia-a, mas gostava de se martirizar ao escarafunchar na ferida.

— Sim.

O sangue voltou a sumir-se das suas veias. Mike teve de se segurar à mesa lateral para não cair.

— E eles… viram-te? Não foi…

Chester apontou para a janela do chat que continuava na mesma rapidez furiosa de manifestação fanática. Essa era a resposta e a contrarresposta. Tinham-no visto, pois. E a revelação, era inegável que ver o rosto sorridente de Chester Bennington numa transmissão ao vivo, que acontecia naquele dia, naquele ano, tinha contornos de milagre, estava a conduzir a uma manifestação exagerada de euforia, num registo quase religioso.

Mike precisava de gerir aquilo da melhor maneira.

Carregou na opção que fechava a transmissão ao vivo, ocupando o ecrã com um desenho que ele tinha recentemente feito para servir de imagem de capa do seu canal, decorado com figuras a preto e branco.

— Chester, tu mostraste-te… no meu canal?

— Já te disse que sim. Espreitei para uma câmara e fiz adeus. Não disse nada, só fiz adeus e sorri e depois é o que estavas a ver. Uma explosão de adoração abnegada. Estão com saudades minhas, pelo que percebi. Temos de voltar a fazer alguma coisa. Se sentem saudades minhas, estão com saudades dos Linkin Park. Então, estou a concluir que os Linkin Park andam ociosos há demasiado tempo. Como é que deixámos isso acontecer? Há quanto tempo não lançamos nada novo?

— Deves estar a brincar comigo.

— Não, não estou. Tenho-te visto a trabalhar que nem um louco. Eu sei que vai sair um novo trabalho da banda. São as bases para que voltes a reunir as tropas.

— Talvez um dia…

— Gosto dos teus amigos.

— Tu és… ou eras um dos meus amigos – suspirou Mike, tomado por um ataque de fadiga debilitante. – Tu também estiveste daquele lado… Acho eu. Não sei como o fizeste, mas eras um dos meus amigos.

— Como? – Chester estranhou. – Ainda sou o teu amigo….

— No Twitch! – gritou Mike, animando-se com uma ira repentina. – Tu já me seguiste no Twitch e ganhaste shinodabucks e pagaste uma visita à tua ilha… Oh! Esquece! Nem sei por que motivo estou a discutir isso! Desliguei a live para poder conversar contigo, mas não há nada para conversar, no fundo. Nunca houve, porque é impossível conversar contigo. Tu já não… Tu não és… Oh, ajuda-me aqui. Diz-me a razão de estares a fazer o que me tens feito nestes últimos meses – pediu com a voz trémula. – Diz-me… o que és agora.

Chester tinha ficado sério e naquela posição que o encurralava dentro das suas próprias armadilhas, enredado na malha que ele tecera para si e que depois não conseguia desembaraçar sozinho. Apanhado na transgressão que ele provocara e que não sabia reconhecer à primeira. E quando era assim, ele escapava-se pela nesga improvável. Mike conhecia-o demasiado bem. O Chester nunca assumia nada, era dele essa incumbência. Por cada minuto que passava com a transmissão ao vivo cortada, sabia-o, alimentava mais a especulação.

— Lixei-te o canal? – disse Chester arrependido.

E talvez, cogitou no limite da provocação, devesse abrir a transmissão ao vivo e mostrar-se com o amigo, confessar finalmente o segredo que ele guardava ciosamente, desde finais de março.

— Não – respondeu Mike, mais calmo. – Não me lixaste o canal. Vou ter de arranjar uma explicação qualquer para aquilo que viram…

— Eu posso pedir desculpa. Não devia ter interferido, o canal nem é meu. Não tinha qualquer direito de aparecer. Eu percebo que fiz merda.

— A culpa não é tua. E não… não peças desculpa. De que adianta pedires desculpa? Eu é que preciso de justificar alguma coisa pois, como muito bem disseste, o canal é meu e eu sou o responsável máximo pelos seus conteúdos. E fui eu que deixei que esta situação se arrastasse. Fui eu que alimentei toda esta mentira.

— Andaste a mentir? Isso não se faz… eles gostam de ti, os teus hamsters.

— São wombats, Chester! E não andei a mentir no canal, andei a mentir… a mim mesmo ao ter mantido… isto que nós temos – agitou um braço para ilustrar o que falava.

— Eu sou cúmplice?

— Podes crer que és cúmplice! E és o principal instigador. Se não fosses tu, não existiria esta confusão. O que acabou de acontecer já deve ser notícia de última hora em tudo o que é sítio duvidoso de informação e difusão de notícias relacionadas com música na internet e fora dela. Percebes?

— O teu canal é assim tão famoso?

— Tu és famoso!

— E tu também, Mike. Somos os dois, produto da mesma origem.

— Oh, sim! Claro… eu não me comparo a Chester Bennington.

— Nem eu me comparo a Mike Shinoda.

De repente, Mike explodiu numa autocensura:

— Porra! Como é que eu fui deixar-me enganar por tanto tempo? Como é que eu pude resvalar para um terreno tão perigoso? Estaria assim tão carente e estúpido e sozinho?

Dobrou o pescoço, mãos na cintura, e pôs-se a abanar a cabeça como se estivesse a escutar a mais dura das reprimendas e concordasse com cada palavra que o chamava à razão de uma forma violenta e feia.

Resolveu não procurar explicação nenhuma.

Ao endireitar-se Chester continuava ali, arrependido e encolhido. Olhava-o e desviava o olhar. Mike não quis ser cruel, porque não valia a pena e nem sequer seria justo. A brincadeira envolvera-os aos dois e as duas partes acabaram por beneficiar daquele estado nublado das coisas, em que havia um mistério e um segredo a preservar.

Teria de ser sincero, teria de optar pelo caminho mais tortuoso, a descer e a subir, cheio de curvas e de lombas. Aquela estrada nunca fora fácil. E agora terminava. Fechava-se a comédia.

Mike disse, sério e genuíno:

— Amigo, quero dizer-te que senti a tua falta. E tu vieste, quando eu achava que não sentia a tua falta.

Chester também estava sério.

— Mike, só preciso que me ajudes.

— Eu sei. Eu sei, Chester.

— Perdi-me… estava escuro e eu perdi-me. Está tudo bem, não precisas de te preocupar. Eu estou quase a terminar.

— Não estou preocupado. Sei que estás bem.

— Estou bem – repetiu Chester.

— Se te perguntar por que vieste… vais responder-me? Porque eu não te chamei.

— Não te vou responder, porque não sei a resposta. Estou aqui. É tudo o que sei. Sem nada antes disto.

— Nada? Nem… uma memória?

— Nada. Há música e há a tua voz. Existem outras vozes, todas misturadas. Sorrisos e alegria, mas também pranto e lágrimas. Não gosto quando choram. Vem uma espécie de arrependimento, de mágoa… mas nunca demora demasiado, é um sopro e os sopros são breves e esquecem-se depressa. Os dias são bonitos e cheios de Sol, está sempre quente e brilhante. Depois, estava na tua casa e tu gostavas de estar comigo. E eu quis ficar assim para sempre.

— Mas não pode ser.

— Não. Não pode ser. Tenho de regressar.

E o tempo, de repente, esgotara-se. Todos os relógios do mundo pararam para que eles pudessem prolongar aquele derradeiro minuto até rasar as fronteiras do eterno. O tempo iria esperar por eles. Mike sabia-o. Estava-lhe a ser concedida a improbabilidade de reinar sobre as leis universais que geriam todos os mundos e ele não iria desperdiçar a oferenda.

Mike olhava para Chester e lembrou-se que faltava um gesto fundamental. Estivera tão ocupado com definições, explicações, desvios, jogos, medos e mentiras, conversas sérias e frases dispersas, que não se tinha apercebido que, mesmo partilhando o mesmo espaço, continuava distante do amigo, conformado com a sua ausência e a falta de coexistência no mesmo plano físico. Desabituara-se, pura e simplesmente, de estar com o Chester. E isso não podia ser, em nenhuma circunstância, por mais extraordinária que se apresentasse. Eram irmãos e continuariam a ser irmãos, um conceito firmado nas estrelas, ou algo semelhante, definitivo e imortal.

Apagou o espaço que existia, frio e proibido, entre eles. Mike puxou Chester a si e envolveu-o com os seus braços.

Era o que faltava para selar todos aqueles encontros impossíveis. Um abraço.

Mike abraçou Chester num desespero condoído. Não o queria largar nunca mais.

Era o tal medo de perdê-lo definitivamente. Já se tinha acostumado a uma vida sem ele, conseguira recuperá-lo e agora era como se tivesse tido acesso a uma máquina do tempo que lhe proporcionara uma hora a mais com o amigo perdido, definitivamente perdido, reencontrado milagrosamente – e ele queria prolongar o momento até ao infinito.

Uma hora a mais…

E podia fazê-lo, lembrou-se. O tempo estava congelado naquela bolha onde só eles se moviam. Para além da fina película que delimitava a esfera transparente, o mundo também estava em pausa – igual à sua transmissão ao vivo.

Os seus ombros sacudiram-se com um espasmo, ao incluir na aflição daquela despedida um outro pedaço que lhe faltava, que se lembrou de querer e de exigir. Não queria deixá-lo sem ter o que sempre amou nele. Iria ajudá-lo a regressar, nem sabia bem como, não se importava, naquele estágio, de o largar e encaminhá-lo para o tal lugar quente e soalheiro, mas antes queria satisfazer o seu egoísmo. E Mike pediu:

— Canta para mim.

Chester sussurrou-lhe:

— O que queres que eu cante… Mike?

O hálito que carregou aquelas palavras era cálido e vivo ao chocar com a sua orelha. Mike estreitou o abraço. Estava arrepiado, fremente, vulnerável. Doía-lhe o corpo todo, o espírito, os pensamentos e as ideias.

— Canta-me… qualquer coisa. Não te vás embora sem cantares para mim. Por favor – implorou num gemido baixo.

— Eu… eu tenho de me ir embora, não tenho? Regressar e… e ficar.

— Sim, Chazy. Acho que o tempo que te concederam terminou. Uma hora? Se eu contar todos os minutos que estivemos juntos, desde março até agora… acho que foi uma hora. Uma hora que tivemos a mais…

— Não sei, Mike. Não consigo lembrar-me. Vou regressar. E se regressar significa ir-me embora… então partirei. Outra vez. Vou confiar em ti.

— Por favor. Canta. Prometo que não vou mais chorar, depois desta…

— Tu nunca choras, Mike.

— Não, pois não – disse ele a sentir as lágrimas grossas a deslizarem pelas faces e a lhe molharem a barba. – Nunca chorei na minha vida… a não ser, quando soube… que tu já não querias continuar connosco. Comigo. E hoje. E agora. Quando te peço que preciso dessa recordação, de ti, a cantares uma última vez. Para mim.

— Que dia é hoje?

— Não interessa, Chazy. É mais um dia de 2020. Um dia que não é teu. E nem este dia, em que estou contigo, será meu. O dia em que estiveste numa live do Twitch a fazer adeus. O dia em que eu vou desistir de te ter… porque não posso ter-te. Nunca mais.

— Está bem. Eu canto para ti… porque é dezembro, não é? No mundo lá fora… estamos em dezembro. No mundo que não posso visitar. Ainda te lembras da canção?

— Vou tentar lembrar-me.

Continuavam abraçados, a murmurar ao ouvido um do outro. Embalavam-se e consolavam-se, aproveitando-se do calor que irradiavam, já que por dentro estavam os dois gelados como uma planície invernal.

Chester cantou:

This is my December; this is my time of the year. This is my December; this is all so clear. This is my December; this is my snow-covered home. This is my December; this is me alone. Este é o meu dezembro; este é a minha altura do ano. Este é o meu dezembro; isto é tão óbvio. Este é o meu dezembro; esta é a minha casa coberta de neve. Este é o meu dezembro; isto sou eu, sozinho.

E quando Chester cantava, numa languidez frágil:

And I

Mike acrescentava, em murmúrios lamentosos, a voz entrecortada:

I just wish that I didn’t feel there was something I missed. I take back all the things I said to make you feel like that. E quem me dera não sentir que houve qualquer coisa que falhou. E retiro todas as coisas que disse que te fez sentir assim.

Chester continuou a cantar:

And I’d give it all away, just to have somewhere to go to. Give it all away, to have someone to come home to. E desistia de tudo, apenas para ter algum lugar para ir. Desistia de tudo, para ter alguém para voltar.

Mike reteve a respiração.

Ao expirar… encontrou os braços vazios. Abraçava o nada, um fiapo de memória, uma ilusão. O mundo voltava a girar e ele sentia a Terra a mover-se debaixo dos seus pés, em solavancos ténues e impercetíveis. O tempo também retomou o seu curso.

Sentou-se no chão do estúdio, sobre os calcanhares, para não ser derrubado pelo movimento terrestre ou pelo desenrolar inexorável dos segundos. Tinha as mãos nas coxas, cotovelos espetados para fora. As costas desenhavam um arco, o queixo a tocar-lhe o peito, de olhos firmemente fechados, a recuperar o tempo, o que lhe pertencia, a sua alma que deixava de estar dividida em duas, a expurgar do seu organismo a dependência, a recolocar-se onde começara no início do ano, numa consciência plena de quem era e do que queria.

A dor que existira fora aplacada, regressara por um breve instante e voltava a desaparecer, sem deixar cicatriz.

Abriria a transmissão ao vivo e daria uma explicação qualquer que serviria para acalmar os sonhadores e devolver a realidade ao seu devido lugar, dando razão, infelizmente, aos mais céticos. Não tinha acontecido, pura e simplesmente. Fora um erro de programação, uma imagem antiga e pré-gravada, uma interferência estranha. Talvez fosse bombardeado com perguntas que ele haveria de contornar e de torcer para servirem os seus objetivos. Sempre fora assim… e continuaria a ser assim.

Mas ele conhecia a verdade. O último abraço ainda lhe palpitava na pele, nos sentidos, a contaminar-lhe a alma com uma indesmentível impressão de felicidade.

Para concluir, porque tinha mesmo de reabrir a transmissão ao vivo, não devia atrasar-se mais ou perdia a oportunidade de se redimir, Mike murmurou, grato e sereno:

— Obrigado, Chester. Até um dia.


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Notas finais do capítulo

Esta história foi inspirada em 2020, nas lives que Mike Shinoda começou a fazer desde março e que continuaram até dezembro - e que vão continuar em 2021.

Esta história é dedicada à Barb. We miss you, Barb!

As canções desta história:

Open Door
https://www.youtube.com/watch?v=_rT-dp109OM

A Thousand Jams
https://www.youtube.com/watch?v=HjmAYYSQWno

Sidechain Gang
https://www.youtube.com/watch?v=EWLF4Zaaz2w

My December
https://www.youtube.com/watch?v=bV3ZMFqlkN8

Muito obrigado pela leitura!
Um bom ano novo!