Sinais escrita por Sirena


Capítulo 32
Psicólogos e Mensagens


Notas iniciais do capítulo

Obrigada fran_silva, Isah Doll e heywtl pelos comentários ♥



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Ícaro

A primeira psicóloga... Não deu certo. Ela era legal, mas não consegui confiar nela, não me pergunte porque, não sei.

A segunda também não deu certo. Ela era homofóbica e eu basicamente sai da sessão xingando ela de tudo que era nome e mais tarde meu pai teve que vir falar comigo porque eu não conseguia parar de chorar de raiva. Então passamos um tempo de qualidade xingando preconceituosos no geral. Vivos ou mortos.

O terceiro, Tales... Bom, estava dando certo. Tivemos que pesquisar em outros sites para encontrar ele.

Ele tinha cabelos crespos e uma pele negra muito escura e muito bronzeada, tive vontade de perguntar se ele tinha uma casa na praia, mas não perguntei. Seus olhos eram castanhos bem redondos e o sorriso no rosto que não parecia sumir por completo nem quando fazia careta. Tales tinha sessenta e poucos anos, usava uma aliança de casamento, tinha uma tatuagem de Marie Curie no braço e uma barba com alguns fios brancos que o faziam parecer um Papai Noel negro. Ele era legal. E acho que ele gostava de química. Ninguém tatua Marie Curie no braço se não gosta de química, né?

A sala dele era super colorida, ele tinha Funkos de Divertidamente que explicou que usava para ajudar as crianças a dizerem como se sentiram em certas situações, mas eu acho que ele só gostava muito de Funko mesmo. De qualquer jeito, apesar de ele ter dito que era para ajudar as crianças, eu gostava de usar às vezes. Só quando era mais difícil falar. Atrás do Tales tinha um quadro bonito feito com linhas que mostrava o mar.

Era bonito.

“Oi.” – sorri, me sentando no meu lugar. – “Tudo bem?”

“Tudo sim." - ele sorriu. - "Você passou no psiquiatra essa semana?"

Fiz careta, Tales era direto. Semana passada, ele tinha entregado uma guia para que eu me consultasse com um psiquiatra, ele não pareceu muito feliz com isso, na verdade, porque duas sessões apenas com certeza não eram o bastante para decidir se eu precisava de remédios. Mas, eu insisti muito desde a nossa primeira sessão porque eu tava meio... Como posso dizer? Desesperado? Desesperadíssimo! Então... Eu insisti até ele acabar concordando.

"Passei. Ele não olhou nem na minha cara, só fez umas perguntas e passou um monte de coisa." - bufei. - "Eu nem consegui falar direito! Ele passou remédios para dormir e para a ansiedade, mas não disse que eram pra isso, eu tive que pesquisar na internet pra saber."

"Eu te disse." - ele deu risada, bufei de novo porque ele realmente tinha avisado que ir atrás de remédios agora provavelmente resultaria numa cena assim. - "Você tá tomando?"

"To. Mas, não é muito bom. Me sinto... Lento. Demoro mais pra entender as coisas que leio e acordo com dor de cabeça. Meu coração acelera e eu me sinto meio tonto."

"Tá conseguindo dormir pelo menos?"

"Sim. Mas, não me sinto descansado quando acordo." - suspirei.

Tales concordou com a cabeça e anotou isso na prancheta. Ele anotava várias coisas.

"E sua alimentação?"

"To comendo bem." - dei de ombros. - "Mas, enjoo rápido... Acho que não jantei duas vezes... Mas, fora isso to comendo sim. Me alimentando direito."

"Ok." - anotou de novo. Essas eram as perguntas básicas que abriam todas as sessões do Tales antes de irmos tratar dos assuntos sérios. - "Como passou a semana?”

Mordi os lábios. Tales era bom em Libras, eu sempre tive vontade de perguntar se ele tinha algum parente surdo, mas nunca tive coragem. Tinha medo de ser muito invasivo.

“Bem. Eu saí com meu namorado e com os amigos dele... Foi legal. Eu não queria sair, mas deu certo até. No fim não. Mas, de resto deu certo.”

“O fim não?” – ele arqueou a sobrancelha. – “Vocês brigaram?”

“Não. Eu só... Na despedida, quando ele me beijou, eu... Tipo...” – fiz careta e desci da poltrona, me ajoelhando em frente a mesinha baixa onde Tales deixava os Funkos, apontei para o do Medo e para o do Raiva.

“Raiva também?”

“Raiva de mim. Por ter ficado com medo.” – expliquei.

Tales franziu os lábios, como se pensasse com cuidado no que diria em seguida, fui mais rápido.

“Tales... É sério...” – mordi os lábios. – “Eu sei que terapia é uma coisa demorada e que a gente não vê os resultados do dia pra noite. Mas... Eu não tenho certeza de que isso está funcionando ou... O que exatamente a gente tá tentando. Eu só quero saber, tipo... Quando acabar... Daqui não sei quanto tempo... Eu não vou mais ter medo dessas coisas, não é?”

Tales franziu a testa e respirou fundo, colocando sua prancheta de lado.

“Ícaro, eu sei que o mundo pode ser muito assustador, acredite eu sei. Mas, você não precisa sentir raiva do seu medo. Seus sentimentos são naturais, você não pode julgá-los e às vezes você sempre vai senti-los. O medo é algo natural, Ícaro. Todo mundo sente.”

“Não é verdade.” – bufei. – “Tem gente que não tem medo dessas coisas que eu tenho. Tipo, de alguém fazer alguma coisa. Tem gente que quando alguém fala algo grita e xinga de volta.”

“E você acha que essas pessoas não sentem um pouco de medo em algum momento?”

“Acho.” – bufei. – “Elas só sentem raiva de quem fala idiotice, mas não tem medo.”

Tales suspirou, girando a aliança no dedo.

“Ícaro, todo mundo tem medo quando algo ameaça a sua segurança. Você pode discordar, mas o medo é útil. Uma pessoa que não sente medo, poderia pular de um penhasco sem nenhum equipamento de proteção e acabar morrendo, medo nos mantém atentos à situações de perigo." - ele deu de ombros. - "O medo é como uma campainha, Ícaro. Ele... Acende quando estamos em perigo. Pra algumas pessoas, como você, porém, o medo é uma campainha que pisca mesmo quando não tem perigo por perto, é como uma campainha quebrada, entende?"

Concordei com a cabeça, secretamente contente por ele ter dito acende invés de toca. Era legal que o Tales tivesse o cuidado de fazer uma metáfora que meu medo fosse uma campainha de luz.

"Você se sente seguro com seu namorado e vai sentir medo se alguém machucar vocês quando estão juntos porque você se sente seguro perto dele. Existe situações em que não sentimos medo porque já sabemos o que vai acontecer e existe situações em que nos sentimos seguros e, por isso, sentimos medo quando ameaçam nossa segurança. Medo é natural. O que você tem que fazer, é quando ver essa campainha na sua mente acendendo, é respirar fundo e tentar avaliar se tem uma razão pra ela estar piscando ou se é só a campainha quebrada."

“Ok, posso tentar isso. Mas, eu não gosto de sentir medo de alguém me ver sendo eu. É como se eu tivesse cometendo um crime quando eu só to ali.” – suspirei. – “Meu ex vivia me fazendo sentir culpado por ficar com medo de que alguém me machucasse.”

“Você ainda pensa muito nisso?”

Suspirei para o teto e fiz careta.

“Eu tenho o Mathias. Ele é fofo e bonzinho e paciente e não me culpa por ficar com medo. Não preciso pensar nisso.”

“Não foi o que eu perguntei, Ícaro.”

Suspirei.

“Acho que... Sei lá. É só que às vezes parece que eu to traindo a mim mesmo por sentir medo...” – revirei os olhos. – “Sei que é exagero meu e também não é como se eu sentisse medo o tempo inteiro... Mas, quando sinto, sinto muito!” – cobri os olhos um minuto antes de abaixar as mãos e dar de ombros.

“Vou fazer uma pergunta difícil agora, ok? Você se culpa pelo que aconteceu quando era criança?” – direto e cirúrgico.

Meus olhos fixaram na porta e me imaginei levantando e saindo daqui correndo porque eu não queria admitir isso. Mas... Mas...

Repassei tudo na minha cabeça um instante. Lembro de como com treze anos eu achava os olhos do Fabiano lindos e como ele sorria para mim enquanto me acompanhava até em casa... Lembro de que quando entramos na minha rua, ele perguntou se poderia entrar parecendo nervoso e eu entendi... Mas, não tive paciência para isso e assim que chegamos no portão da minha casa o beijei. E aí, nos afastamos e o vizinho estava gritando e os cachorros latindo e... Me obriguei a voltar a respirar.

Se pelo menos tivéssemos entrado...

“Eu fui burro.” – bufei, desviando os olhos. – “Eu sabia como o mundo era, sabia que não podia simplesmente sair por aí beijando em qualquer lugar. Mas, fui idiota o bastante para não tomar um cuidado simples tipo entrar em casa. Tivemos o cuidado de esconder as mãos dadas e andar longe um do outro, mas não pensei em entrar em casa pra beijar ele! Que criança idiota!”

“Isso é um sim?”

Dei de ombros.

Tales deu um suspiro e escreveu alguma coisa.

Organizei os Funkos numa ordem de cor mais agradável, das frias para as quentes, claro para escuro. Tales me observou arqueando a sobrancelha. Peguei a bonequinha da Tristeza e mostrei para ele. Ele soltou outro suspiro enquanto eu colocava a boneca azul no lugar.

“Eu só não quero ter medo.” - suspirei.

“Não posso fazer que não tenha medo.”

Fiz bico.

Poxa, Tales...

“Ícaro, você passou por uma situação muito forte antes de ter maturidade para lidar com isso, você não conseguiu formar uma armadura ao seu redor pra que esse medo não venha com tanta força. Então, agora, quando algo acontece, por mais leve que seja, sua mente não entende qual a reação apropriada e te leva a reação limite. É por isso que você sente o medo com tanta força e reage de forma tão forte a ele. O seu cérebro não conseguiu aprender. O que a gente vai fazer aqui é te fortalecer pra que quando você tiver uma razão pra ter medo de novo, você não se desespere e consiga enfrentar, ok? Pra sua mente conseguir entender a melhor reação... Pra conseguir respirar fundo e avaliar se essa campainha na sua mente realmente tem motivo para estar piscando. Mas, vai ser demorado e vai exigir muito de você. Você vai ter que se dedicar porque vai ser difícil e pode ser até doloroso... Mas, no fim, vai compensar.”

Suspirei abaixando os olhos.

Levantei os Funkos da Alegria e do Medo.

Tales deu um meio sorriso.

***

Eu sempre me sentia meio que uma criança nas sessões com o Tales. Acho que era porque eu fiquei meio obcecado demais com aqueles Funkos. Era uma pena que eles fossem tão caros.

Guardei o celular enquanto descia do ônibus e cruzei os braços, me encolhendo no moletom vermelho dos Power Rangers, refletindo sobre a sessão.

As pessoas dizem que traumas podem te tornar mais forte, mais resistente, que te tornam quem você precisa ser, mas na real, traumas só me deixaram mais desconfiado, medroso e fraco. Acho que no fim as pessoas só gostam de romantizar tudo, até traumas. Chutei uma pedrinha da rua enquanto virava a esquina e franzi a testa vendo minha casa.

A vizinha, Giovanna, estava sentada na calçada, as costas encostadas contra o meu portão. Pelo menos ela não tava com o cachorro, pensei.

“Oi.” – cumprimentei hesitante, parando na frente do portão e pegando minhas chaves.

A garota loira sorriu, dando um tapinha no chão ao seu lado como se pedisse para eu sentar com ela. Fiz careta, mas concordei.

Ela tirou o celular do bolso para poder escrever.

“Você tá melhor? Eu tentei vir nos últimos meses pra ver como vc tava, mas a Alexia dizia q vc tava mal.”

Franzi a testa e peguei meu próprio celular para poder responder.

“To melhorando. Difícil ainda.”

“Desculpa por aquele dia. O Bibble se empolgou, eu devia ter tido mais cuidado. Ele é muito brincalhão e se empolga fácil, eu devia ter pensado q isso podia acontecer. Desculpe. Ele é tão bobão q as vezes esqueço q tenho de tomar cuidado”

Mordi os lábios.

“Bibble parece bravo.”

Giovanna deu risada. – “Ele é um amorzinho. É muito protetor, especialmente comigo por isso sempre quer sair cmg quando eu to indo comprar alguma coisa. Dobermanns costumam ser bem protetores e brincalhões, ele é fofo. Mas eu entendo q dê medo, ele é grande.”

“Muito medo.”

Giovanna riu.

“Muito medo mesmo. De verdade sinto muito n ter sido mais cuidadosa naquele dia.”

Suspirei e forcei um meio sorriso porque não sabia mais o que dizer. Giovanna também sorriu, me deu um beijo na bochecha e se levantou, indo pra casa.

Ergui os olhos para o céu, encostando a cabeça contra as grades do portão e pensando, tentando juntar coragem para me levantar e entrar, ao passo que buscava refletir sobre o que tinha acabado de acontecer e sobre a sessão de hoje.

Alexia estava sentada no sofá da sala quando entrei, ela tinha um papel na mão, os olhos inchados. Não precisei perguntar para entender.

Inferno.

Peguei um copo de água na cozinha antes de ir sentar ao lado dela.

"Bebe."

Minha irmã balançou a cabeça, negando. Ela apertou a folha de exame entre as mãos, seus lábios tremiam.

"Alexia?"

"Ele disse que não sabia. A médica disse que era bom avisar, então eu falei com ele e ele disse que não sabia."

"Entendi."

Ela soluçou, fechando os olhos, as lágrimas começando a descer. Coloquei o copo no chão e puxei-a para um abraço forte, não sabia o que dizer e nem o que fazer. As unhas de Alexia afundavam no meu braço e seu corpo tremia enquanto ela chorava e soluçava, podia sentir o modo desesperado que ela puxava o ar em meio ao choro. Suas lágrimas eram quentes e caiam na minha mão e no meu antebraço.

Isso não era justo, pensei. Não era nada justo. Uma coisa casual de uma noite e agora minha irmã ia ter que tomar remédios para o resto da vida? E não é como se ela tivesse sido descuidada, não foi culpa dela o preservativo estourar! Não foi culpa dela! Não era justo! Apertei o abraço, meus olhos ardendo de raiva enquanto pensava isso. Alexia não merecia... Não merecia nem um pouco. Aquilo não devia acontecer com ela!

Suspirei tentando pensar e mordi os lábios buscando formular uma ideia do que fazer, do que dizer, organizar as prioridades na minha cabeça enquanto seu choro se acalmava. Me afastei um pouco, desmanchando o abraço.

"O que a médica disse?"

Alexia respirou fundo e esfregou os olhos, suas mãos tremiam enquanto começava a sinalizar

"Tenho uma consulta com I-N-F-E-C-T-O-L-O-G-I-S-T-A, ele vai passar vários exames que eu tenho que fazer antes de começar o tratamento." - ela respirou fundo outra vez. - "A médica disse que eles não têm porque contar pro papai e pra mamãe desde que eu faça o tratamento."

"Você quer esconder?" - uni as sobrancelhas, confuso. - "Porquê?"

"Eu... Não sei. Eu não sei nada agora ok? Não decidi nada, eu... Eu só..." - ela umedeceu os lábios e balançou a cabeça, os olhos enchendo de novo. - "Preciso de tempo pra decidir."

Ok, pensei. A relação de Alexia com minha mãe já não era muito fácil e meus pais sempre foram meio... Não é que eles fossem conservadores no que se diz respeito a sexo, mas, eles com certeza foram muito claros todas às vezes que falaram disso com a gente: ou vocês se cuidam ou matamos vocês. Ok, eu to exagerando... Mas, deu pra entender? Havia toda uma pressão sobre ser cuidadoso sempre, nenhum deslize, definitivamente não transar com desconhecidos mesmo com proteção porque acidentes acontecem e se acontecessem é porque você tomou a decisão errada.

Meus pais eram vivos na época da epidemia de AIDS, tio Flávio lembrava de amigos que morreram para a doença, mamãe tinha perdido uma prima por isso, eles sempre pressionaram um pouco sobre saúde por isso. Se eles soubessem, bom... Acho que a reação não seria das melhores, sinceramente. E eu não sei se no lugar da Alexia eu contaria, não sei se teria coragem para isso... Foco. Uma coisa de cada vez.

"Ok. Me dá um instante."

Peguei meu celular ciente de que eu definitivamente não sabia como ajudar, nem o que dizer, nem nada e sinceramente, no momento, minha irmã precisava de alguém que entendesse e soubesse o que fazer. Alguém que ela pudesse confiar que apontaria a direção certa e que acolhesse e... E eu tava quase tão perdido quanto ela.

[Ícaro]
Amor?

O exame da Lexi deu positivo
Pode me mandar o número do Eric por favor?
Acho q ele vai saber melhor q eu o que falar agr

 

Alexia se encostou em mim e fez careta lendo as mensagens que mandei para o Mathias, mas não disse nada, passando as mãos pelo rosto.

[Mathias]
Eita
Aqui
Vai ficar tudo bem

Ele enviou o contato do Eric em seguida.

"Não." - Alexia segurou minha mão, me olhando como se implorasse. - "Por favor."

"Alexia..." - franzi a testa e ela suspirou me soltando.

[Ícaro]
Oi Eric

É o Ícaro
Mat me mandou seu numero
Vc pode vir aq em cs falar com minha irmã? Ela testou positivo pra hiv e tá nervosa :c

[Eric]
Alexia oq????
PQP
Manda o endereço
To indo

Alexia suspirou no meu braço e escondeu o rosto no meu peito enquanto eu respondia.

***

Eric chegou menos de quinze minutos depois e lembrei que o Mathias disse certa vez que ele morava perto daqui. Abri o portão enquanto minha irmã continuava no sofá.

"Obrigado por vir" - digitei no celular e mostrei para ele.

Ele deu de ombros olhando ao redor e coçando o nariz parecendo meio desconfortável enquanto entrava. Puxei Eric pelo braço, nervoso. Ele me olhou confuso, digitei novamente.

"Ela tá muito mal. Por favor n seja grosseiro com ela."

Eric revirou os olhos e pegou o celular da minha mão. - "Ícaro, n se preocupa, n tenho pq ser grosso com Alexia. Ja tive essa conversa com algumas pessoas antes, n posso dizer q entendo completamente pq minha transmissão foi vertical, mas eu entendo o bastante"

"Ok."

Observei.

Minha irmã cruzou os braços enquanto Eric sentava ao seu lado, ela não olhou para ele. Eric tamborilou os dedos no braço dela, como se fizesse cócegas e ela meio riu e meio chorou antes de finalmente olhá-lo.

Claramente aquela conversa iria ser oral então decidi ir pro meu quarto e deixá-los conversar, mas, antes peguei a Baunilha e coloquei-a no colo da Alexia.

"Cuida dela, Baunilha." - mandei e Alexia riu.

Dei as costas e fui para o quarto, esfregando os olhos.

***

[Mathias]
Eric disse q conversou com a Lexi
Ela pediu pra ele ir com ela no infectologista
Ele vai tentar convencer ela a participar do grupo de apoio q ele participa, ajudou muito ele isso anos atras ent pode ajudar ela tbm

 

[Ícaro]
Ela me disse q vai esperar começar o tratamento para falar com nossos pais
Tipo, n esperar começar
Ela quer falar quando tio Flávio e tia Vivi tiverem aq pq eles sao med e tal ne ent se meus pais surtarem talvez eles consigam acalma-los
E o proximo almoço de familia e no mês q vem
Até lá ela ja deve ter começado o tratamento

[Mathias]
Entendi
Ela vai ficar bem tá? N se preocupa com ela
As pessoas n morrem mais disso hj
É so ela fazer o tratamento e vai dar tudo certo


[Ícaro]
Ok
Ainda n falei com meus pais sobre ir ai alias


[Mathias]
Se achar melhor ficar esses dias com Lexi

 


[Ícaro]
N, eu quero ir, preciso de uma mudança de ar
Assim que meu pai chegar vou pedir pra ir
Mas Baunilha vai ficar com saudade de eu

[Mathias]
Pai de pet

 

Dei risada e estava para responder quando Baunilha encostou a patinha no meu joelho, se erguendo nas patas traseiras.

Coloquei o celular de lado e me ajeitei no sofá olhando para ela. Baunilha se virou, olhando para trás para ver se eu acompanhava. Suspirei levantando e indo atrás dela.

Baunilha parou na cozinha, colocando uma patinha na borda do seu potinho de ração vazio. Sorri entendendo e indo colocar mais um pouco. Ela estava começando a aprender que miar só funcionava com a Alexia e que para chamar minha atenção tinha que estar na minha frente e que eu tinha de estar olhando para ela, então sempre procurava um jeito de me fazer olhar. O mesmo valia quando queria chamar atenção dos meus pais.

Minha gata era muito inteligente.

Achei bom trocar a água dela também. Tinha várias vasilhas de água pela casa, porque eu li que gatos eram muito preguiçosos para tomar água então tinha que ter uma vasilha em cada cômodo para chamar a atenção deles. Sinceramente, sempre que eu ia cuidar da água da Baunilha, eu só conseguia pensar na dengue.

Voltei pro quarto quando terminei e deixei Baunilha comendo.

Peguei meu celular.

[Ícaro]
A Baunilha tá aprendendo a me chamar ♥
Ela tá parando de mia pra mim

 

[Mathias]
Que fofo
Ela é tão lindinha

 

Estava para falar que sim, ela era muito lindinha e eu amava ela mais que tudo, quando outra mensagem apareceu no alto da tela.

[Davi]
Duas coisas

 

[Ícaro]
Pq eu?

 

[Davi]
Pq supostamente tu é meu amigo

 

[Ícaro]
Supostamente???

 

[Davi]
Eu consegui um corre fotografando uma festa de 15
Mas preciso de ajuda
Quer ser auxiliar?
A gnt racha a grana

 

[Ícaro]
Quero
Data, hora e endereço

[Davi]
Dps te mando
Segundo
Vc e o Mat podem participar de um dos vídeos de setembro?
Queria gravar sobre relação surdo com ouvinte

 

[Ícaro]
Gosteeeei
Vou ver se ele topa
Já conseguiu pensar . temas todos 26 dias?

 

[Davi]
Já sim, vou começar a gravar no fim do mês
Vanessa mandou um beijo

 

[Ícaro]
Manda beijo meu pra ela
E diz que to com saudade

 

[Davi]
Vou dizer
Vlw Ícaro
Ah
Adivinha?

 

[Ícaro]
Odeio adivinhas

 

[Davi]
To mais surdo
Perda auditiva leve no ouvido esquerdo

 

Fiz careta.

[Ícaro]
Ai
:c
Vai usar aasi no outro ouvido tbm?

 

[Davi]
Vou
Assim q der pra pegar
PEGAR DOIS
Pq o cachorro da Vanessa fez o meu de brinquedo e quebrou

 

[Ícaro]
Eita

 

[Davi]
Ta foda Ícaro
A fila pra conseguir aparelho pelo SUS é enorme
TA FODA
Quem inventou q dinheiro n traz felicidade era rico
Dinheiro resolve muita coisa e resolver coisas me deixa muito feliz

Mordi os lábios.

Sabia que era bem diferente nascer com surdez e adquirir surdez em algum momento da vida. Não importava o quão bem o Davi lidasse com isso, para ele não era natural, para ele era triste. Ele sabia que não era o fim do mundo, mas isso não tornava mais fácil.

Era difícil.

[Ícaro]
Q tal a gnt ir fazer passeio pelos mirantes da cidade?
Podemos tirar fotos
Se a gnt chamar a Sabrina e a Paula podemos fazer elas de modelo
Podemos ir dps de amanhã

 

Apoiei o queixo na mão esperando a resposta. Davi gostava de fotografar tanto quanto eu, embora não tivesse muito que eu pudesse dizer sobre o avanço do Meniérè dele, podia buscar levá-lo para fazer algo que o distraísse e divertisse.

[Davi]
Vou ver se as meninas podem
Chama o Mat tbm
A gnt nunca usa modelo masc
Vai ser um inferno pra gnt pensar em pose pra homem quando começar a trabalhar com fotografia

 

[Ícaro]
Vou chamar
Mas assim
N é lá muito comum homem pedindo álbum sozinho

 

[Davi]
Dançarinos existem Ícaro e.e

 

[Ícaro]
Vdd
Bom ponto

Voltei ao chat com o Mathias esfregando meus olhos, sentindo o sono bater.

[Ícaro]
Ei
Davi e eu tamo combinando de sair pra tirar fotos pela cidade dps de amanhã
Quer vir? Vc pode ser modelo nosso
E assim q a gnt acabar, podemos ir direto pra sua casa
Tipo, se meus pais deixarem eu ir pra aí e tal
Q acha? Vai só a gnt a Sabrina e a Paula
Só gnt q vc conhece ♥

 

Coloquei o celular de lado e fui para sala, porque de repente senti a ansiedade de novo e considerei que seria melhor não estar trancado no quarto caso ela viesse com muita força. Tales dizia ser bom deixar outras pessoas chegarem perto e te ajudarem durante esses momentos.

Como exatamente ele esperava que isso ajudasse, eu não fazia ideia. E sinceramente, fiquei com vergonha de perguntar e parecer idiota. É. As sessões com o Tales ainda eram tão cheias de barreiras. Ele diz que eu minto muito.

Isso é outra coisa que eu não sei: como ele sabe que eu to mentindo. Eu me considero um mentiroso muito bom.  Talvez Tales saiba ler mentes em segredo e por isso seja um psicólogo tão bom. Tenho certeza que isso é o tipo de superpoder que ajuda nessa profissão. Se bem que se eu lesse mentes, usaria meu poder para descobrir senhas de banco e vazar os cartões de crédito de políticos. Eu não usaria, mas com certeza vazaria.

Me surpreendi ao ver que já estava de noite. Pressionei as mãos contra os olhos, respirando fundo. Minha noção de tempo estava completamente bagunçada ainda. Precisava dar um jeito nisso de alguma maneira. Na maior parte do tempo, tudo acontecia tão devagar... Ainda mais depois de começar com o remédio. Mas, às vezes, era o contrário e tudo acontecia rápido demais.

Fui para cozinha, sabendo que era onde meus pais estariam e tive que resistir a vontade de voltar para o quarto e pegar minha câmera para tirar uma foto.

Minha mãe estava encostada contra o balcão da pia, na ponta dos pés, inclinando-se para trás, os braços na quarta posição: um acima da cabeça e o outro em volta do pescoço do meu pai. Ele ria enquanto a beijava.

Pelo que eu sei, a primeira vez que eles se beijaram, minha mãe estava ensaiando uma coreografia que teria de apresentar e se aproveitou de um momento para pedir que meu pai a ajudasse a se apoiar para que ela fizesse certo passo em que se levantava a perna e a apoiava no ombro do parceiro. E ela se aproveitou do momento.

Minha mãe sempre teve mais iniciativa.

“Por isso o jantar sempre demora?” – arqueei a sobrancelha quando eles se afastaram.

Minha mãe franziu o nariz para mim, dando risada e meu pai pareceu constrangido. Ele sempre ficava constrangido quando eu ou Lexi víamos ele e mamãe se beijando. Chegava a ser engraçado.

“O que foi, querido?” – minha mãe arqueou a sobrancelha. – “Já com fome?”

“Pouca.” – admiti. – “Posso passar a semana na casa do Mathias?”

Meu pai franziu a testa, me olhando como eu olhava para Baunilha quando ia ensinar os sinais de “sim” e “não.”

“A mãe dele está de férias?”

“Não.” – mordi os lábios e respirei fundo antes de sorrir, tentando parecer relaxado enquanto ia me encostar na mesa. – “É só que... Sabe? Como eu passei os últimos meses, trancado, a gente não pôde ficar muito tempo, relaxado, juntos e queríamos compensar. E ele achou que seria uma boa pra mim essa mudança de ares, que podia me dar mais vontade de sair e me fazer sentir melhor. Não é nada demais, é só pra gente aproveitar um pouco as férias juntos.”

Meus pais trocaram um longo olhar.

Respirei fundo tentando manter o sorriso despretensioso no rosto e bufei quando eles começaram a oralizar e ler os lábios um do outro. Porque a técnica dos meus pais para discutir na minha frente era discutir numa língua que eu não entendesse. Pelo que eu sei, na frente da Alexia eles discutem em Gestouno.

Cruzei os braços, esperando.

“Uma semana? A mãe dele deixa?” – meu pai perguntou, ainda com a testa franzida.

“Deixa.” – afirmei com confiança porque não acho que o Mathias teria feito essa oferta se ela não deixasse.

“Uma semana inteira?” – minha mãe fez careta. – “E a sessão com o Tales?”

Mordi os lábios. – “Eu volto pra casa a tempo da sessão.”

“Tá.” – meu pai suspirou. – “Mas presta atenção no caminho.”

“Ok.”

“E avisa quando chegar lá.”

“Ok.”

“E não esquece de levar camisinha.”

“Eu vou pro meu quarto!” – revirei os olhos com a plena certeza que de preto eu tinha ficado vermelho.

Fechei a porta do meu quarto e me joguei na cama pegando meu celular de novo.

[Mathias]
Eu nunca fui modelo :v
Como é isso?

 

[Ícaro]
É fácil
É só fazer o que eu mandar

 

[Mathias]
Ah
Então é só mais um dia normal

 

Dei risada.

[Ícaro]
Meus pais me deixaram passar a semana ai :)

 

[Mathias]
Ahhhhh ♥ ♥
Nem vai sonhando em dormir na minha cama dessa vez hein?

 

                                                                                               [Ícaro]
Eu vou dormir na sua cama sim

 

[Mathias]
N vai nada
Eu n vou dormir no chão de novo

[Ícaro]
N vai msm
Eu vou dormir agarradinho com vc na cama ♥

 

[Mathias]
Ah
Ahhhhhh
Ai ta bom
Eu vou gostar disso ;)

 

[Ícaro]
Tenho ctz que vai
Vou gostar tbm

 

Coloquei o celular de lado vendo a porta do quarto abrir e suspirei me amaldiçoando por não tê-la trancado, mas deixei isso pra lá porque era Alexia entrando e não meu pai ou minha mãe.

Ela veio sentar ao meu lado na cama, os cabelos presos em duas tranças, usando um pijama dos X-Men.

"Tudo bem?" - perguntei.

"Tudo." — ela respirou fundo. - "Mamãe disse que você vai passar a semana fora."

"Se você tiver com medo de ficar sozinha..."

"Não, tudo bem. Você precisa sair. Baunilha me faz companhia."

Concordei.

"Posso esconder os exames no seu quarto?"

"Pode sim." - sorri. - "Você vai ficar bem?"

"Vou sim." - garantiu, mas seu sorriso não poderia ser mais forçado.

Silêncio.

"Ícaro, posso dormir com você hoje?"

"Claro." — sorri. - "Vem cá!"

Puxei-a para um abraço. Lexi escondeu o rosto no meu peito, passando os braços em volta do meu pescoço. Deixei um beijo no alto de sua cabeça e fiz carinho em seu cabelo.

A vida é uma bagunça.


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