Os Desqualificados escrita por S Q


Capítulo 7
Filha Ingrata




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/796659/chapter/7

Todo mundo sabe que a vida real não é igual a um desenho da Ladybug. Por mais que uma pessoa se disfarce, sempre há chances de reconhecerem ela. Foi exatamente isso que  aconteceu na lanchonete de seu Xisto naquela manhã. Mal Graziele chegou no caixa, já havia alguns celulares apontados para a cantora, apesar do disfarce improvisado. 

Tanto a balconista quanto a famosa ficaram se encarando surpresas pela coincidência desagradável. Mas Milena saiu do torpor primeiro, vendo um flash de telefone de um dos clientes fãs da outra, vindo bem na sua direção. Percebeu uma oportunidade. Deu um sorriso de canto, e fez questão de dizer bem alto:

— Bom dia, Eusfraudósia!

Na mesma hora a cantora assumiu um olhar feroz e hostil, e ameaçou, batendo com as mãos no tampo do balcão:

— O quê que você tá falando?!

Milena não se deixou intimidar, e sorriu ainda mais por tê-la atingido em seu ponto fraco. Falou mais alto ainda:

— DESCULPA, NÃO SABIA QUE VOCÊ NÃO OUVIA DIREITO! QUAL REFEIÇÃO VAI QUERER, EUSFRAUDÓSIA?!

Graziele estremeceu de raiva ao ouvir seu nome verdadeiro sendo gritado em voz alta.

— CADÊ O GERENTE DESSA ESPELUNCA?! ONDE JÁ SE VIU UMA FUNCIONARIAZINHA ACHAR QUE PODE FALAR COMIGO ASSIM? EU SOU G R A Z I E L E  T E S M O N!

Milena gelou ao ver seu Xisto caminhando na sua direção, carrancudo. 

— O que está acontecendo aqui? - perguntou o chefe, bem bravo pelo furdunço que se formava em sua loja. A funcionária explicou que só tinha chamado a cliente pelo nome.

O pior é que pegou. Graziele, que já tinha desistido de comer ali, agora não conseguia sair pela porta, pois os fãs não lhe deixavam passar, gritando:

— Eusfraudósia, como assim?!

— Dodósia, meu amor!

Para melhorar, vídeos com o barraco da cantora na lanchonete, já estavam sendo enviados para o YouTube, enquanto outro já lançava a hastag #somostodosEusfraudetes. Quando enfim a beldade conseguiu sair de lá, esfumando de raiva, carregando sua equipe, o outro atendente do turno, que se chamava Inácio, chegou perto de Milena e comentou:

— Parabéns, agora, quando for fazer show, ela vai ter que colocar um letreiro assim: “Graziele Tesmon, a Eustrambólica”

Seu Xisto precisou passar botando moral:

— Já me deram confusão demais por hoje, sem fofocas e voltem ao trabalho!

Porém, ainda demorou para os clientes se acalmarem, de modo que a loja só voltou ao normal quando Patrick já estava chegando. Ele fez um sinal para que a amiga fosse falar com ele antes de sair. Assim que tirou o avental do uniforme, qual não foi sua surpresa ao ver um vídeo no celular de seu vizinho de baixo e colega de trabalho, com a gravação do bate-boca entre ela e Graziele. Era um dos mais comentados do dia. Em algumas horas, já tinha atingido 300 mil acessos, o que era uma proeza devido à qualidade da gravação. Ela agradeceu pelo amigo ter lhe mostrado o que tinham postado. Assim que saiu da lanchonete, teve a impressão de que algumas pessoas na rua a reparavam. 

“Famosinha por conta de um barraco, por essa eu não esperava” pensou Milena. Entre os que olhavam para ela na rua, encontrou um rosto conhecido. Era a mesma moradora de rua de alguns dias atrás, que acenava para ela. Parecia bem abatida. Milena ficou bastante preocupada e perguntou logo a ela se tinha acontecido alguma coisa, ignorando a história do vídeo e uns olhares curiosos que ainda lhe lançavam. A senhora, porém, não lhe respondeu. Ficou apenas olhando para frente, com um olhar febril e lentamente ergueu um pedaço de papel velho e rasgado. Milena ainda perguntou gentilmente:

— O que é isso?

A senhora finalmente lhe olhou, como se tivesse saído de um transe. Falou um pouco baixo:

— Fiz uma música para você.

A funcionária da lanchonete ficou surpresa.

— Você sabe compor?!

— Já fui artista, hoje só passatempo. Eu precisava falar! Tudo fica muito errado! - sacudiu a folha na sua frente mais uma vez - Anda, pega!

Milena pegou o papel, um pouco insegura. Deu uma pequena lida. 

— Por que isso é pra mim?

— Ela é filha ingrata. Não quer que eu cante. Vai ficar melhor na sua voz.

Pacientemente a moça tentou explicar à senhora que ela devia estar passando por um quadro de confusão mental. E tentou dizer que não era uma cantora nem nada do tipo, mas foi interrompida.

— Pare de falar bobagens! Sua voz é linda, eu lembro de quando cantamos aqui! O que é bonito é para se mostrar!

— Ei, eu só tava te acompanhando! Minha voz é uma droga. E como você lembra disso?

— Pare de seguir o caminho mais fácil e faça logo o que sabe que deve! 

A mais jovem falou gentil:

— Você precisa de cuidados mentais.

A outra retrucou depressa:

— Me leva para um hospício, um abrigo, eu não ligo! Mas leva isso aqui também. - Falou a idosa, pondo teimosamente o papel com a letra e as cifras da música no bolso da bermuda da outra.

A empregada de seu Xisto suspirou aceitando, mas logo ajudou a senhora a pôr-se de pé. Não podia deixar ela continuar largada na calçada naquele estado. Não lhe levaria para um abrigo público, mas para uma casa de reabilitação que tinha passado em frente quando caminhava buscando emprego a algumas casas dali. O letreiro dizia “ONG” então ela esperava que fosse gratuita. As duas andaram lentamente até lá; a senhora não disse mais nada, e em silêncio parecia até mil vezes mais frágil.

Assim que chegaram na ONG, uma enfermeira abriu a porta perguntando qual era o nome da senhora. Milena percebeu que nunca tinha perguntado, mas a idosa respondeu:

— É Marizete.

Ela foi muito bem acolhida. Só de ver arrumarem uma cama para a senhorinha, Milena se sentiu imensamente feliz. Ia se despedir, sentindo o peito leve pela boa ação que fizera quando Marizete lhe olhou pelo canto de olho e falou:

— Não pense que eu esqueci da música que te dei, hein?  Passei por muita coisa hoje para ser engambelada.

Milena ficou preocupada, se perguntando pelo quê mais ela teria passado naquele dia. Mas vendo que a senhora precisava descansar, suspirou e disse que ia ver o que podia fazer pela canção. Ela disse aquilo muito mais como uma maneira de deixar a outra feliz do que por achar que haveria ali uma oportunidade real para uma carreira. Mas foi o suficiente para deixar Marizete satisfeita.

— Sabe, você é totalmente diferente daquela famosinha que entrou no restaurante de manhã. Sim, eu sei o que houve, fico na rua, esqueceu? Não acha que alguém é menor que você e ainda vai ser como uma princesa.

Milena achou melhor sair naquele momento, pois concluiu que a idosa voltava a delirar. Enquanto caminhava de volta para sua casa e encontrava algumas pessoas apontando na sua direção e rindo por conta do vídeo de mais cedo, duvidava ainda mais das palavras da senhora.

 




Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!