Os Desqualificados escrita por S Q


Capítulo 30
Tinha uma Espreguiçadeira no Meio do Caminho




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/796659/chapter/30

 Seu Xisto tinha uma expressão contraída no rosto. Abaixou a cabeça pondo as mãos peludas no queixo e começou a bater o pé no chão. Sua sala ficou em silêncio após a revelação de Milena, de modo que a funcionária conseguia ouvir o som do motor do ar condicionado. Ela foi ficando ansiosa com aquele silêncio. Porém, quando ergueu o rosto, o chefe já tinha um semblante mais calmo. A primeira coisa que falou foi:

— Então quer dizer que você é artista?

— Sim, senhor.

— E há quanto tempo trabalha fazendo isso?

— Eu comecei… um pouco depois de ter começado a trabalhar aqui. - Milena respondeu com sinceridade. - Alguns amigos músicos me convenceram. Eles queriam formar uma banda para tentar ganhar um pouco mais de dinheiro com música. Começou como algo pequeno, mas as coisas tomaram proporções muito maiores do que eu achava que tomariam. 

O patrão pôs as mãos nas cadeiras, ajeitou seu cinto e pigarreou: 

— Bem, funcionários com dois empregos não costumam render tão bem...

Milena, nervosa, saiu falando:

— Eu sei, mas você não imagina o quanto eu tenho me esforçado..

— Não terminei o que eu estava falando — disse seu Xisto — Espero que a falta de rendimento seja compensada por alguma outra coisa. Vocês têm fãs? - perguntou o chefe cinquentão.

A funcionária foi pega de surpresa, mas falou:

— Sim, er, mais do que você imagina…

— Ótimo. — falou Seu Xisto se levantando. — Façam propaganda para eles da minha lanchonete que está tudo resolvido. Pode continuar trabalhando aqui. Se ainda quiser, é claro.

  Ela, surpresa, concordou aliviada. Não tinha certeza de por quanto tempo mais conseguiria manter a vida dupla, nem o que aconteceria com a banda naquele momento, mas não ser mandada embora já era uma ótima coisa. Enquanto se levantava, apertou a mão de seu Xisto, agradecendo pela compreensão.

— Só uma pergunta? De quem era essa música que tocou no seu celular? Ela é muito boa e nunca ouvi.

— Ah, não sei exatamente, minha filha que ouviu no outro dia e eu gostei e pedi para ela baixar. Acho que é um tal de Jaques Vieira...

Milena não tinha certeza, mas achava que era o nome do namorado da Graziele. Sacudiu a cabeça e saiu da sala do chefe. Podia ser uma coincidência. Tentou trabalhar com um pouco mais de ânimo durante o resto do expediente. Depois, ao voltar para a vila, antes de entrar na sua casa, esbarrou com uma espreguiçadeira estendida no meio do caminho entre as casas, onde Patrick estava deitado. Vestindo um boné que cobria um coque formado por seus dreads, camisa meia-manga e calças cargo, ao ouvir os passos da vizinha se aproximando, se apoiou nos cotovelos magros para olhar para ela. 

— E aí? — perguntou, meio desanimado.

— Oi. — ela respondeu sem-graça também, pela última conversa que tiveram. 

Não correr e abraçar Patrick para contar que estava tudo bem na lanchonete foi bastante estranho, e ela percebeu que o amigo igualmente não se sentia confortável com aquele gelo, mas os dois ficaram só ali, parados, um olhando para a cara do outro. Por um pouco de tempo demais. 

— Alguma novidade? — perguntou Patrick, por fim, sem empolgação, com a voz inexpressiva.

— Nada ainda sobre o Ricardo. — foi o que ela decidiu dizer. De fato, após fazerem a denúncia na polícia na última madrugada, não tinham recebido ainda  nenhuma informação a respeito de onde ele estava.

Patrick fechou o semblante com a resposta, e com isso, veio mais um momento de estranho silêncio entre os dois. 

— Sinceramente, não sei o que dizer mais. — falou ele, de repente.

— Você pode tentar dizer o que está pensando. — Milena sugeriu. — É uma coisa que eu mesma nunca faço. — ela admitiu. 

Finalmente ele sorriu e deu de ombros.

— Tá bem. Estou pensando: “ tomara que ela não esteja tentando falar comigo só porque eu estendi a espreguiçadeira no meio do caminho”.

— Bom, também — ela respondeu sinceramente, rindo.

Patrick então, se sentou na espreguiçadeira, se inclinando para frente, os cotovelos magros apoiados nos joelhos. Fez um sinal para que Milena se sentasse ali do lado dele. 

— Fiquei pensando no que eu falei pra você. — comentou Patrick — Quer dizer, isso é tão secundário agora… nosso amigo está desaparecido, deveríamos estar focados nisso, somente nisso.

— Mas mesmo assim você quis deixar claro que os dois gostam de mim — ela respondeu timidamente, ruborizada, juntando os braços e olhando pra baixo.

— Pois é, sei lá… Eu tava com isso guardado há muito tempo… Tento ser um cara de boas com a vida, apesar de todos os problemas, mas não sou melhor do que ninguém. Com a pressão, acabei explodindo, deixei sua prima com raiva de você, te botei um turbilhão na cabeça e provavelmente estraguei nossa amizade… Não faço nada direito mesmo.

— É verdade, foi um dia tenso. — Foi só um dia, mas na cabeça de Milena foi tão estressante que parecia um milênio. Era estranho com alguns dias pareciam durar segundos, e outros, longos séculos. As vezes achava que era a sina de alguém com um nome “milenar” mas ver que não era única se sentido assim lhe dava conforto. Seus pensamentos foram interrompidos por mais uma fala de Patrick.

— E bom, ainda teve o meu pai. Recebi um telefonema inesperado dele ontem mais cedo. Fiquei feliz de primeira mas ele só ligou porque está desesperado. Descobriu que o câncer se espalhou.

— Ah… caramba. Mas ei, você não pode encarar isso como uma sentença de morte. Seu pai ainda está vivo. Enquanto há vida, há esperança!

O amigo, fechou a cara então de uma maneira que cortou seu coração:

— Ele não está morto, mas encaremos a realidade: em breve estará. Não posso fingir que está tudo bem.

— É, imagino que não...

— Não estou pronto pra perder meu pai. Mesmo que ele nunca tenha agido como um…

— Sinto muito.

Os olhos lacrimejantes de Patrick fitaram os de Milena. 

— Por favor, não continue do meu lado me olhando com cara de pena. Pode aproveitar sua noite. Não… queria te ver triste por minha causa.

— Patrick, eu me importo com você. Muito. De verdade. Quer dizer, a verdade é que… — Milena parou subitamente, tremendo. Seu coração saltava demais pela boca. Não conseguiu terminar a frase.

— A verdade é que…? — perguntou Patrick.

— Hã… Não acho que, assim, eu te ame, ame, mas — a cada palavra, Milena só se enrolava mais. Acabou dando uma volta e não disse nada do que queria — Cara, você é meu melhor amigo. 

Patrick deu um suspiro com a resposta. 

— Talvez seja melhor continuar assim mesmo. — disse ele, conformado.

— Tem certeza?

— Sei lá, eu posso sobreviver sem te olhar por tempo demais pra reparar… deixa pra lá.

— Reparar o quê?

— O jeito com que o seu cabelo cai no seu rosto. O seu olhar brilhante, alegre, esperançoso. O seu sorriso doce. A maneira sensível com que você canta. Os seus lábios. O jeito leve com que você age e se move. O seu corpo… Okay, eu não posso.

Nisso, ele rapidamente colocou a mão direita por trás do pescoço de Milena, enroscando os dedos em seus cabelos cacheados, e cortou pequeno espaço entre eles, encostando os seus lábios contra os dela. Com a mão esquerda, ele foi delicadamente fazendo um caminho da sua clavícula, descendo pelo seu braço, pegando em sua cintura e parando no quadril. 

— Ah, Milena… — disse tentando se afastar, relutantemente antes que aquele beijo se aprofundasse demais, em um caminho sem volta, mas para sua surpresa, Milena, não deixou que se afastasse, apoiando as mãos no seu peito e o beijando de volta. 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Os Desqualificados" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.