Os Desqualificados escrita por S Q


Capítulo 2
Tormento do Passado




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Anos Atrás

O cenário era o vilarejo da Senhora Aparecida, 300 habitantes, em Goiás, a 8.500km do Distrito Federal. Ali viviam as primas Milena e Ana; a primeira,mais nova, com seus cabelos castanhos fartos; a segunda, um pouco mais velha, cortava sozinha seu próprio cabelo, sem a permissão dos pais. As duas se preparavam para a Festa Musical, tradição que ocorria todo ano no lugar. Festa típica do interior: quermesse com barraquinhas numa praça na frente da igreja que dava nome ao vilarejo. E um concurso de talentos organizado pela escola municipal local. Milena colocou no dia um vestido azul, com enfeites brilhantes. Era a primeira vez que ia se apresentar em público, mas tinha sido muito incentivada pela prima.

Ana sempre gostou de música, e quando pediu a ajuda da outra nos vocais de uma cantiga que estava aprendendo no violão, ficou super encantada com a voz dela. Apesar de ela mesma se arriscar cantando às vezes, achou na prima um talento ainda maior e sem igual. Milena não era tão apaixonada por música, preferia brincar correndo por aí, mas a insistência da sua parente foi tão grande que acabou se empolgando com a ideia de cantar. O resultado foi que, anunciado o concurso, as duas se inscreveram na hora. 

De Volta à Brasília

Chegando em casa após o fatídico reencontro, as músicas, as roupas e as cores daquele dia passavam como lembranças vivas na cabeça de Milena.“Seriam lembranças tão felizes se não tivesse dado tudo errado”, pensava com agonia. A vida não tinha sido justa com aquelas crianças sonhadoras do interior. Ou melhor, Eusfraudósia Barbosa não havia sido justa. Desde que chegara no vilarejo, a filha de latifundiários não foi com a cara de Milena. O motivo ninguém sabia, e aparentemente nem havia, mas Eusfraudósia pegou ranço e para ela isso era suficiente. Parece enredo bobo de seriado adolescente americano, mas foi exatamente o que aconteceu naquele pequeno pedaço de terra em Goiás. Uma pessoa assim, obviamente não estava gostaria nada de toda a atenção que Milena receberia se ganhasse o concurso de talentos. A própria Barbosa tinha se inscrito, e perguntou ao coordenador da escola municipal organizadora, grande amigo do seu pai, como seria a organização do palco. Sem desconfiar de nada, o coordenador explicou para a garota que só haveria um microfone com seu suporte e os fios que deixariam ele ligado nas caixas de som. Foi quando soube disso que a ideia de puxar o fio enquanto Milena se apresentava tomou forma.

 Essa audácia,  mesmo que algum adulto tivesse acreditado na nossa protagonista depois, seria levada como “brincadeira de criança”. Ninguém ali teria coragem de punir ou contestar a herdeira do latifúndio dos Barbosa. Tiveram, sim, foi a covardia de desclassificar uma menina pobre e insegura, que já sofria bullying de Eusfraudósia e perdeu a mãe com 4 anos de idade. Os professores de artes, que eram os jurados, disseram à Milena coisas como: “se você não ia conseguir cantar, nem precisava se inscrever”; “Voz fraca que não disfarça a falta de talento” e “hoje em dia qualquer um acha que pode aparecer”.  Milena não chorou, não se envergonhou, nem deixou de ir à escola no dia seguinte. Somente disse a si mesma para “não perder mais tempo com essas baboseiras”. Quando contou ao pai o que tinha acontecido, ele, viúvo com filhas para cuidar e trabalhando só com bicos de encanador não soube dizer à ela que sonhar não era uma “baboseira”.

 E assim foi forjada a mentalidade de Milena até a idade adulta.

 Por isso, tentou não perder muito tempo lembrando mais desses acontecimentos. No dia seguinte iria entregar mais currículos e continuar sua grande busca atrás de qualquer coisa que lhe desse um emprego fixo. Porém, as lembranças insistiram em flutuar na sua mente até o dia seguinte. 

 O café da manhã foi na casa de Ana. Ela bateu na porta do sobrado de Milena e Patrick bem cedo, convidando os dois para comentar sobre a apresentação na noite anterior e nem reparou a cara de quem não dormiu direito que a prima carregava.

Ontem a gente só recebeu um café e um tapinha nas costas, acreditam? Nossa apresentação mais lotada, e o dono do estabelecimento era um pão-duro!

Ninguém respondeu nada, cada um dos jovens adultos absorto em seus próprios problemas. 

— Prima?  Patrick? Tá tudo bem? - Ana perguntou, preocupada com o silêncio.

O rapaz não queria falar muito sobre suas próprias preocupações, mas ao observar as olheiras de sua colega de residência, achou que seria mais fácil para ele abrir a boca do que para ela. 

— Tive uma notícia meio desagradável ontem. Meu pai foi pego organizando uma rodada de jogo do bicho. Pela quarta vez.

As duas olharam para ele com as sobrancelhas erguidas.

— Ei, não fiquem tão perplexas! Ele sempre foi um bom pai. E sabe se cuidar. Só não tem uma maneira muito honesta de ganhar dinheiro… Ah, vamos lá é melhor do que se ele fosse um viciado! Meu pai só… Vicia as pessoas! Ok, não dá para defender...

Ana deu um sorriso amarelo e dois tapinhas nas costas de  Patrick.

— É, não dá.

Nesse ponto, Milena não estava mais prestando atenção na conversa. Se perguntava: quando a rival lançou aquele olhar de desprezo para ela, tinha lhe reconhecido? Aquela situação podia ser uma armação para que a vingança da Barbosa se  completasse? Nem percebeu que Ana e Patrick tinham lhe perguntado alguma coisa, pois os dois estavam encarando como se esperassem uma resposta. Milena deu uma pigarreada.

— Ana… O que mais você já ouviu falar da tal de Graziele Tesmon?

A prima franziu as sobrancelhas com a pergunta repentina, mas mesmo estranhando, respondeu:

— Bem... Ela é bem “modinha” ultimamente. Música chiclete, letras românticas padrãozinho… -  tombou a cabeça como se ponderasse - É, é razoável… Ah! Mas tem aquela voz carregada no auto tune que eu vou te contar!

Patrick interrompeu, curioso:

— Auto tune? Que é isso?

— É um editor eletrônico automático de voz. - Ana respondeu prontamente - Foi criado para distorcer e criar efeitos de som, mas a galera abusa.  Usam o tempo todo pra disfarçar voz desafinada. Essa Graziele ainda teve a cara de pau de dizer que é “conceitual” - falou fazendo aspas com os dedos e uma cara enojada- Conceitual uma ova! Ninguém usaria isso o tempo todo, em todas as músicas, se fosse só uma questão de conceito!

— Nossa, do jeito que você diz, parece até trapaça.- Comentou Patrick.

Milena apoiou o queixo nas mãos e fez apenas uma interjeição:

— Hm.

— Mas por que você perguntou dela? - Ana questionou.

— Nada não. - Milena falou, se levantando.- Você já viu alguma foto ou vídeo da Graziele?

— Já, e o que tem? Quer dizer, fora o cabelo pranchado, um quilo de maquiagem, as inúmeras plásticas…

— Não achou ela parecida com NINGUÉM?

Ana ficou tentando se recordar, mas nada vinha na memória. Patrick riu.

— Hoje em dia dá para reconhecer alguém por foto? Quer dizer, com tanto filtro e photoshop, as vezes eu olho meu instagram e dá até certa dificuldade de reconhecer algumas pessoas. Tenho a impressão de estar vendo um bando de gente igual!- Completou ainda rindo.

— Bem, Ana, e se eu disser que “Graziele Tesmon” é um nome artístico?- Milena comentava enquanto lavava o copo de geléia de Mocotó que tinha usado para beber água.

Nesse momento, a porta da casa abriu. Era Ricardo, o namorado de Ana, que acabava de chegar. Ele ouviu o que Milena disse.

— Sério? Eu vi uma entrevista no outro dia em que ela afirmava que esse era o nome verdadeiro dela… Quer dizer, ter um nome artístico é uma coisa comum no meio, por que ela esconderia isso?

— Porque o nome dela é Eusfraudósia.

Milena, então, desviou o olhar do dele, e olhou significativamente para a prima.


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