Heaven & Hell escrita por Nightmare


Capítulo 14
Chapter 13. Motivation




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/796516/chapter/14

À medida que o sol nascia no horizonte, as cortinas finas de cor clara do quarto de hotel tornavam-se ineficazes para bloquear os intensos raios solares da manhã. Incomodada pela claridade, a garota de cabelos negros permitiu que seus olhos azul-marinho se abrissem para receber o novo dia. A jovem sentia-se revigorada; aquela havia sido a primeira noite desde o tiroteio em que seu sono não fora perturbado pelas imagens sangrentas e sons agonizantes.

Sem mover sua cabeça, Caroline percorreu o quarto com os olhos, encontrando Firestarter ainda adormecido sobre o carpete listrado. Deslizou uma de suas mãos pelo lençol, tocando os pelos macios do Meowth que se deitava ao seu lado, o qual também estava em sono profundo. O último a enxergar foi Leroy, que dormia ainda próximo à beira da cama. Entretanto, havia algo de tonalidade verde em sua frente. A princípio, a jovem acreditou tratar-se apenas da coberta mas, após piscar algumas vezes e esfregar as mãos contra seus olhos, para tentar livrar-se da visão embaçada, percebeu ser algo diferente.

— Ah meu deus! — a garota gritou, movendo-se rapidamente e desequilibrando-se, de algum modo rolando sobre a cama e caindo de costas no chão.

O barulho do tombo e do berro da menina acordou de imediato os três pokémons, que se assustaram. A lontrinha caramelo acabou por cair da cama também, uma vez que estava na beira, e Augustus escondeu-se entre as cobertas, trêmulo. O Ponyta shiny colocou-se em posição de ataque, movendo sua cabeça de um lado para o outro procurando identificar a situação de perigo. Porém, ao não encontrar nada, acabou focando seus olhos em algo peculiar. O cavalo arqueou uma das sobrancelhas ao deparar-se com as diversas notas verdes dispostas sobre a cama e, agora, espalhadas também pelo chão.

— Ficamos ricos! — comemorou o Buizel ao identificar todo o dinheiro jogado pelo quarto, utilizando suas patas para lançar as notas ao ar.

— De onde veio esse dinheiro?! — a garota pronunciou-se após longos segundos tentando compreender o que ocorria. Estava atônita e imóvel, ainda no chão, com os olhos arregalados.

— Eu peguei. — afirmou o gatinho de pelos claros, aproximando-se da treinadora com um sorriso orgulhoso em seu rosto.

— Você roubou?! — indagou a jovem de cabeços negros em um tom de descrença e desaprovação, observando a felicidade do Meowth se esvair enquanto ele se encolhia. — Como você fez isso? Como conseguiu sair do quarto? Augustus, isso foi muito arriscado! E eu já não lhe disse que roubar é errado?

— Eu saí pelo duto de ar. — começou o felino, acanhado. — E-eu procurei nas ruas por pessoas distraídas e carteiras caídas. Às vezes, usava Hypnosis para fazê-las dormir. Juntei tudo em uma sacola e, sempre que ela ficava cheia, voltava para cá. — explicou, sem ter a coragem de fitar a treinadora nos olhos enquanto confessava seus crimes. — Eu… Só queria ajudar. Eu sei que é errado, mas você precisava de dinheiro e eu achei que podia ser útil…

— Ah, Augustus. — Caroline suspirou, sem saber direito o que fazer.

A garota de cabelos negros fitou os olhos verdes do gatinho, agora aninhado em seu colo, percebendo sua culpa e arrependimento. Ela não queria que seus pokémons se preocupassem com sua situação financeira; afinal, já enfrentavam problemas demais. No entanto, a reação e determinação do Meowth a haviam surpreendido.

Devido ao pouco tempo que havia passado com Augustus, sua dedicação e confiança, bem como a vontade de ajudar sua treinadora, eram completamente inesperadas. Entendia o instinto protetor de Fire, uma vez que havia crescido ao lado do cavalo. Também era fácil compreender as atitudes de Leroy, o primeiro pokémon a se juntar ao time, que a acompanhava por mais de um mês. Naquele momento, Caroline percebeu que, mesmo tendo vivenciado poucas coisas juntos, o gatinho estava disposts a arriscar sua vida para salvar a dela.

No entanto, reconhecia que roubar não era a melhor maneira de sobreviver naquele mundo caótico; a maioria podia ter perdido seus valores e ideais, mas não ela. Sabia que, para ela conseguir aquele dinheiro, do qual o Meowth havia se apropriado na noite anterior, outras pessoas tiveram de perdê-lo.

— Você está brava? — perguntou o felino, receoso diante do longo silêncio da treinadora.

A garota suspirou mais uma vez, pensando na pergunta feita pelo Meowth. Após tudo o que ele havia feito apenas para ajudá-la, sem que ela nem ao menos houvesse pedido, como poderia estar brava? Como poderia culpá-lo por estar preocupado? Afinal, ela mesma estava.

— Não, Augustus. Não estou brava. — ela afirmou por fim, acariciando as costas do gatinho que ronronou com o toque gentil. — Só não faça isso de novo, tudo bem? Não é certo roubar. Além disso, foi muito arriscado. — e a garota não queria nem pensar no que poderia ter ocorrido caso o Meowth houvesse sido flagrado em um de seus furtos.

— E o que exatamente vamos fazer com todo esse dinheiro? — indagou o cavalo de crinas flamejantes, bufando sobre uma das notas verdes que voou com a corrente de ar criada.

Novamente, Caroline ficou pensativa. Seria ilógico sair pela cidade à procura das pessoas furtadas pelo gatinho e, mesmo que o fizesse, o que lhes diria? “Desculpe, meu Meowth tem tendências cleptomaníacas”? Deixar todas aquelas notas jogadas pelo quarto de hotel também não era uma opção muito boa. Além disso, ela realmente precisava de dinheiro e a única forma de conseguir mais seria através de batalhas de ginásio, para a qual nem ao menos havia se inscrito ainda - afinal, tinha pouca vontade de participar já que, após quase perder Firestarter, sua sede por batalhas havia sido reduzida a zero. Portanto, naquele caso, talvez a escolha certa fosse ficar com o dinheiro.

— Bem, acho que vou ficar com ele. — a garota de cabelos negros suspirou, apanhando uma das notas espalhadas pela suíte e fitando-a por longos segundos.

A jovem esperava algum sinal de reprovação de seus pokémons, especialmente do Ponyta shiny, cujo os princípios eram muito semelhante aos seus. Porém, estes apenas assentiram, concordando com a treinadora e compreendendo-a. Talvez, dadas as circunstâncias, o que estava fazendo não fosse realmente ruim, mas necessário. Cansando-se de pensar sobre o assunto, a menina apenas deu de ombros e pôs-se a recolher o dinheiro caído pelo quarto, com a ajuda de seus companheiros.

Assim que terminou a tarefa, sentou-se à beira da cama para contar as notas. Surpreendeu-se ao somar 675 dólares, recontando apenas para conferir o resultado. Sentiu uma pontada de culpa ao guardar cuidadosamente o dinheiro no compartimento da frente de sua mochila de viagens, mas decidiu livrar-se do sentimento. Apanhou um pouco de ração para seus pokémons, servindo-os, buscando uma maçã para si mesma logo em seguida. Após arrancar uma primeira mordida da fruta, o relógio vermelho em seu pulso começou a apitar, sinalizando que alguém estava chamando-a.

— Olá, Sam. — cumprimentou a jovem, fitando a outra de cabelos brancos através da tela do aparelho. — O que houve?

— Amy e eu estávamos combinando de nos encontrar em dez minutos na recepção para voltar ao local de treinamento. Afinal, agora que nos inscrevemos para batalhar contra a Líder, precisamos nos preparar. — explicou. — Você vem com a gente?

— Ah, bem… Eu… — Caroline desviou o olhar por um momento, encarando o chão. — Eu acho que vou passar. Queria dar uma volta pela cidade. — preferiu mentir à dizer que, na verdade, não tinha a menor vontade de treinar seus pokémons.

— Hm. — Sam arqueou uma das sobrancelhas, desconfiada. Porém, por fim, apenas deu de ombros. — Tudo bem então, aproveite o passeio. Encontre conosco lá depois!

— Obrigada. — Caroline esboçou um sorriso fraco antes de desligar.

Ao tirar sua atenção do relógio de pulso, a garota de cabelos negros deparou-se com seus três pokémons fitando-a com expressões confusas, como se lhe perguntassem “Por que não vamos treinar com os outros?”. Com um suspiro, Caroline apenas desviou o olhar, jogando seu corpo sobre a cama macia e tornando a saborear sua maçã. De repente, sentiu-se pesada novamente, como se um certo sentimento de culpa a consumisse. Como poderia explicar a seus companheiros, que tanto se divertiam treinando juntos e aprendendo novas técnicas, que ela não estava ainda preparada para voltar a fazer tudo aquilo? Como contar-lhes-ia que gostaria de desistir de tudo e simplesmente arrumar suas coisas para voltar para casa, onde poderia fingir estar alheia aos problemas daquele mundo caótico?

Não podia. Seria extremamente egoísta de sua parte mostrar aos monstros de bolso como a vida poderia ser e simplesmente tirar-lhes tudo que os deixava alegres.

Por fim, a menina levantou-se novamente, dirigindo-se até o banheiro para lavar o rosto e escovar os dentes. Fitou seu reflexo no espelho preso à parede por um momento, penteando seus cabelos bagunçados. Vestiu uma nova blusa branca de botões e sua saia rodada azul marinho, logo após refazendo o nó de sua gravata vinho. Em seguida, dirigiu-se até a bancada e apanhou sua mochila, buscando as três esferas bicolores que escondia lá dentro. Ao encontrá-las, retornou seus companheiros e guardou os objetos em um compartimento seguro novamente. Não demorou muito para pendurar a mochila em seu ombro direito e sair pela porta.

A garota de cabelos negros dirigiu-se ao elevador sem muita pressa. Afinal, nem ao menos sabia o que iria fazer; só gostaria de caminhar até esquecer-se de tudo que a atormentava. Entrou na cabine e apertou o botão do térreo, cruzando os braços enquanto esperava por sua chegada ao andar desejado. Atravessou o saguão luxuoso sem prestar muita atenção aos arredores, mas pôde observar que não havia muito movimento - talvez por ainda serem nove horas e os hóspedes estarem tomando café da manhã. Sem saber para onde ir, Caroline apenas cruzou algumas ruas da cidade, sem rumo.

A menina gostava de respirar o ar puro de Nacrene. Diferente de outros centros urbanos, este possuía um aroma único, resultado do perfume agradável das flores que haviam sido plantadas em coloridos canteiros. Além disso, o ar parecia não ter sido contaminado pela poluição de automóveis e fábricas, uma vez que as diversas árvores que se estendiam por fileiras inacabáveis incubiam-se da tarefa de retirar o gás carbônico da atmosfera. Aquele ambiente, não coberto por cinza e melancolia, ajudava-a a sentir-se melhor e afastar seus problemas.

Dentro de poucos minutos - ou pelo menos, assim pareceu -, a garota percebeu estar em um local um pouco mais movimentado; provavelmente chegara ao centro. Moradores cumprimentavam-se, murmurando “bom dia”, e outros até mesmo paravam para conversar amigavelmente e discutir planos para o final de semana, que estava próximo. Algumas pessoas reuniam-se em grupos ou duplas para tomar café da manhã nas convidativas lanchonetes locais. Era surpreendente como em Nacrene as pessoas pareciam tão preocupadas com os outros, talvez até mais do que consigo mesmas. Em outras cidades, os residentes levavam uma vida corrida e ocupada, pouco importando-se com os outros à sua volta.

Sem saber direito o que fazer, Caroline sentou-se em um banquinho de madeira de frente para um canteiro de tulipas e girassóis, para que pudesse analisar um pouco sua vida e tomar decisões. Afinal, não podia mais ficar vagando como um ser sem alma, tomada pela dúvida. Por mais que não quisesse, teria de fazer uma escolha. Já não mais se sentia segura nas rotas, à companhia de seus pokémons, sem conseguir esquecer-se dos riscos que corria. Gostaria de esquecer-se de que um dia havia aceitado, erroneamente, a proposta de Juniper. Porém, e quanto ao que seus companheiros queriam? Como poderia simplesmente ignorar todos os seus desejos e sonhos por causa de seu medo? Ela não era egoísta àquele ponto.

Enquanto debatia incessantemente sobre o que deveria fazer, esqueceu-se completamente das pessoas a sua volta, concentrando-se apenas em seus pensamentos e argumentos divergentes. Apenas voltou à realidade, piscando algumas vezes para assimilar o que ocorria, quando sentiu uma mão tocar-lhe o ombro.

— Caroline? — a voz masculina soou por detrás da garota. Embora não estivesse muito familiarizada com ela, facilmente a reconheceu.

— Connor. — foi tudo o que a menina de cabelos negros disse ao virar-se para trás e deparar-se com o garoto de pele clara, cujo os fios loiros ressaltavam os olhos azuis reluzentes. Caroline estava inexpressiva, sem reação. O rapaz, porém, sorria.

— Que coincidência te encontrar por aqui. — exclamou o loiro. — Digo, achei que você não estivesse na cidade, já que não te vi na corrida ontem. — arqueou uma das sobrancelhas, como se buscasse uma justificativa para a afirmação que fizera.

A garota de cabelos negros ficou pensativa por um momento; estava surpresa por reencontrar Connor, mas não tinha vontade de responder sua pergunta. Na verdade, nem mesmo se quisesse poderia fazê-lo; falar abertamente sobre pokémons, em um local público, não era algo lá muito seguro. E tudo que a jovem menos queria no momento eram mais problemas.

Ao perceber o silêncio da menina, o rapaz pareceu entender o que se passava; precisavam de um lugar mais privado para conversar sobre um assunto tão polêmico. Assim, estendeu a mão para a garota sentada, revelando uma peculiar tatuagem em tinta preta em seu pulso: três espirais interligadas. Caroline reconheceu-o como um Triskelion, símbolo sobre o qual pouco havia ouvido falar anteriormente. Porém, não teve tempo de perguntar-lhe o significado da tatuagem, pois o garoto logo apanhou sua mão.

— Vamos tomar um suco. — exclamou o loiro, mais como uma afirmação do que uma sugestão, e a jovem viu-se obrigada a segui-lo.

Os dois atravessaram uma rua, dirigindo-se a uma lanchonete simples de nome “Green Mix”, cujo a logo consistia de dois copos envoltos por frutas variadas. Connor parecia já conhecer o local, uma vez que pediu dois “números sete” à uma garçonete no balcão do pequeno estabelecimento. Não demorou muito para que os sucos ficassem prontos e fossem entregues ao rapaz, que apanhou ambos e seguiu até uma área ao ar livre pertencente à pequena lanchonete. Os dois jovens sentaram-se na mesa redonda mais ao fundo, onde teriam privacidade o suficiente para sua conversa.

Caroline sentou-se na cadeira vermelha de plástico à frente do rapaz, colocando um canudo de papel em seu suco e tomando o primeiro gole. Estava um pouco confusa quanto à situação, sem compreender o porquê da preocupação do loiro em relação a sua ausência na corrida anterior - e muito menos entendia por que sua mente dissera para segui-lo. Sentiu o gosto de morango misturado a limão e, apesar de detestar a fruta ácida, devia admitir que a combinação ficava muito boa.

— Então? — o garoto indagou por fim, fitando a jovem à sua frente, visivelmente incomodado com seu silêncio.

— Hm? — Caroline se fez de desentendida por um momento, ainda pensando no que deveria responder.

— A corrida. — repetiu Connor, com um olhar sério. Parecia determinado a conseguir sua resposta. — Por que não estava lá? Você não saiu de casa para isso afinal? Correr?

— Não exatamente, na verdade. — ela franziu o cenho, pensativa. — E bem, uh.. É complicado. — deu de ombros, evitando olhar o garoto nos olhos. — Firestarter se machucou… Bastante. — revelou por fim, em um tom trêmulo.

A garota tentou repelir as imagens que vieram à sua mente do Ponyta shiny caído, pendurado entre a vida e a morte. Balançou a cabeça ao sentir seus olhos azul-marinho ficarem marejados; não choraria na frente de Connor.

— Como assim se machucou? — indagou, preocupado.

Porém, sem que a menina tivesse tempo de responder, os dois jovens puderam observar uma certa concentração de pessoas correndo em direção ao pátio central, logo ao lado da lanchonete. Por cima das centenas de cabeças, era possível identificar um homem de pele morena, de cabelos longos e espetados mais negros do que a noite, penteados para trás. Connor levantou-se de sua cadeira para observar com maior clareza o que ocorria, mas Caroline encolheu-se ao reconhecer o agente do governo; era o mesmo que ordenara seu Mightyena a assassinar um pokémon e seu treinador em Accumula. Aquele era o homem que lhe causara medo pela primeira vez, logo ao início de sua jornada.

— Silêncio! — gritou o homem para as pessoas ao seu redor, que sussurravam sobre o que poderia estar acontecendo. — Imagino que já me conheçam. Mas, se esse não for o caso, me apresentarei novamente: sou Miyavi, Controlador de Feras do governo. — um sorriso quase maníaco abriu-se no rosto do agente, como se tivesse orgulho de tal título.

Caroline estremeceu. Agora, não somente as imagens de seu companheiro ferido estavam em sua mente, mas sim também aquelas do primeiro assassinato a sangue frio ao qual assistira. Lembrava-se do homem de joelhos gritando ao ouvir os gemidos de seu pokémon, que era estripado pelo poderoso cachorro de pelos negros, antes de se desesperar ao observar o Mightyena pular em sua garganta. Embora fizesse mais de um mês desde o ocorrido, a garota conseguia lembrar-se do cheiro e da cor do sangue que escorria pelo palco de pedra, como se tudo houvesse ocorrido no dia anterior.

— Creio que queiram saber o motivo de minha visita. — o agente brincava com uma esfera bicolor, lançando-a para cima e apanhando-a. — Bem, é simples. Estou aqui por causa de um acontecimento recente, envolvendo nosso maior problema. — fazendo uma breve pausa, apertou o botão central do dispositivo em suas mãos, logo revelando o canídeo de pelos brancos e pretos com cicatrizes por todo o corpo. — Monstros de bolso.

Suspiros de surpresa e espanto foram ouvidos da platéia quando todos se depararam com a fera ao lado do homem no pátio. Alguns até mesmo afastaram-se, temerosos, enquanto outros mais curiosos tentavam observar os detalhes com clareza, tentando entender a cena.

— Mas o que é isso? — exclamou o loiro em um tom quase inaudível, não obtendo qualquer resposta da menina de cabelos negros; esta mantinha seu olhar fixo no homem.

— Vocês já devem estar sabendo do pequeno “incidente” na floresta próxima a Striaton. — prosseguiu Miyavi e, novamente, pôde-se ouvir o burburinho de pessoas conversando sobre o ocorrido. — Sim, isso mesmo: o tiroteio.

Ao ouvir tais palavras, Caroline sentiu todo o ar escapar de seus pulmões enquanto seu corpo estremecia. Seu batimento cardíaco acelerou e a menina parecia entrar em mais uma de suas crises de pânico, aflita.

— Estamos passando de cidade em cidade desde o ocorrido para esclarecer essa história. Sei que acreditam que nós somos os culpados por esse genocício e provavelmente acham que assassinar todos aqueles “inocentes” foi errado. — seu tom era quase irônico. — Mas entendam que as regras estabelecidas devem ser respeitadas, visando a segurança e paz do continente. Aqueles que foram mortos nesse tiroteio estavam realizando um evento ilegal, relacionando-se com pokémons. — relatou.

Mais suspiros de surpresa puderam ser ouvidos, bem como algumas palavras de desaprovação de alguns dos presentes, que claramente eram contra os monstros de bolso. Muitos daqueles na plateia possuíam expressões horrorizadas e incrédulas, insistindo em trocar palavras para esclarecer suas opiniões sobre o assunto.

Naquele momento, Connor pareceu finalmente notar a reação peculiar da garota que o acompanhava; ela estava incrivelmente tensa. Assim, sentou-se de novo, precisando chamá-la duas vezes para finalmente conseguir sua atenção.

— Caroline. — disse o rapaz, fitando os olhos da menina à sua frente. — Você estava lá?

A jovem de cabelos negros encarava o loiro e ouvira sua pergunta, mas fora incapaz de assimilá-la e compreendê-la - sua mente estava em um local longínquo e seu corpo era uma mistura de sentimentos. Então, ao ouvir a voz de Miyavi novamente, voltou sua atenção para o centro, sem nem ao menos responder Connor.

— Sinto que é necessário relembrá-los das regras. — disse o homem musculoso, estalando seus dedos. — Não será tolerado qualquer tipo de interação com pokémons. A convivência com estes seres levará nossa espécie à extinção; eles são a ameaça. — com sua última frase, virou-se para o Mightyena, que havia ficado parado como um ser inanimado durante todo o discurso de seu “treinador”.

Sem qualquer sinal ou aviso prévio, o agente do governo desferiu um potente chute contra as costelas do canídeo, que urrou de dor e tombou contra o chão imediatamente. Em seguida, a coleira negra que envolvia seu pescoço foi percorrida por algumas faíscas e uma corrente elétrica foi enviada para seu corpo. Um longo ganido sofrido foi ouvido enquanto os olhos vermelhos do cachorro negro se arregalavam, transparecendo a dor que sentia. Por fim, o Mightyena fechou os olhos, contorcendo-se sobre o chão gélido em uma tentativa não muito eficaz de afastar seu sofrimento.

Caroline mantinha o olhar fixo na horrível cena, assistindo ao pokémon que nada fizera ser torturado cruelmente. Naquele momento, não sentia medo; sentia raiva. Incomodava-a presenciar tal injustiça e ver-se incapaz de fazer algo a respeito. E então, uma chama forte acendeu em seu peito e ela reviveu os obstáculos que enfrentara: a perseguição na floresta, o tiroteio no Contest…

O dia em que fora expulsa de casa por seu próprio pai, com apenas sete anos de idade.

Finalmente, a garota conseguiu relembrar-se do motivo pelo qual havia aceitado a proposta de Juniper em primeiro lugar: liberdade. Ela não mais queria viver com medo, escondendo-se por becos com medo de um dia ter sua fazenda descoberta, levando à morte iminente de todos os pokémons que abrigava, além de sua mãe e sua própria. Não mais tinha coragem de assistir aos assassinatos injustos, à caça dos últimos pokémons que restavam; ela tinha de fazer alguma coisa.

E ela faria.

— Eles precisam ser destruídos. Cada um deles. — finalizou o homem no centro do pátio, colocando sua bota sobre o crânio do cachorro indefeso e pressionando-o contra o chão, antes de chutá-lo uma vez mais e finalmente retorná-lo à esfera que o aprisionava. — Espero que todos tenham entendido. — completou, antes de virar-se de costas e, junto a dois homens de terno dirigir-se a uma S.U.V. que desapareceu ao cruzar uma esquina.

Ao término do discurso, as pessoas não permaneceram mais do que alguns minutos debatendo sobre a cena antes de retornarem às suas tarefas rotineiras. Embora aparentassem estar tranquilos, era visível que estavam tomados pelo medo de, um dia, acabarem tendo um fim similar aos que haviam falecido no tiroteio. A sensação real de segurança parecia distante e inalcançável, mas todos preferiam deixar seus receios dominarem-nos à opor-se aos atos radicais do governo.

— Caroline, está tudo bem? — perguntou Connor, voltando-se para a menina à sua frente mais uma vez.

A menina de cabelos negros trincava os dentes, a fúria e raiva transparecendo através de seus tempestuosos olhos azul-marinho. Após o discurso de Miyavi, não mais importava-se com os riscos que estava correndo - na verdade, gostaria de agradecê-lo por lembrá-la do motivo de estar arriscando sua vida e a daqueles que amava. Ela não queria ficar sentada em uma cadeira observando a humanidade caçar até o último pokémon, enquanto todos da população tornavam-se marionetes nas mãos do governo. Ela lutaria pela justiça e liberdade, e não permitiria que a vida de seus companheiros fosse tirada durante o caminho para atingir seu objetivo.

— … Caroline? — repetiu o garoto, fitando os olhos da jovem.

— Sim, está tudo bem. — a menina respondeu, finalmente. — Só me lembrei de algo importante que preciso fazer. — revelou, buscando algumas notas verdes em sua mochila e colocando-as sobre a mesa. Entretanto, foi impedida pelo rapaz.

— Eu pago. — ele insistiu, parecendo que não desistiria de sua vontade.

— Obrigada. — a garota sorriu, rapidamente levantando-se de sua cadeira e virando-se de costas para se retirar. Porém, como ocorrera da última vez em que haviam se encontrado, Connor segurou-a pelo braço delicadamente.

— Espera! — ele pediu. — Você nem ao menos respondeu minha pergunta.

— Eu realmente preciso ir. — afirmou Caroline com um olhar apologético, logo em seguida esboçando um sorriso verdadeiro. — Te ligo depois.

— Até breve então. — o loiro retribuiu o gesto, surpreso pela menina ter guardado seu número. Em seguida, soltou seu braço e a deixou ir.

Caroline cruzou apressadamente as ruas de Nacrene, afastando-se cada vez mais das áreas movimentadas. Procurava não chamar muita atenção ao distanciar-se do centro urbano para mergulhar na densa mata que cercava a cidade. Esgueirou-se por entre as árvores e desviou de pedras e outros obstáculos em seu caminho, seguindo por um trajeto que, apesar de ter percorrido uma única vez, já havia memorizado.

A garota cessou sua correria ao deparar-se com uma rocha de tamanho mediano e, logo atrás desta, um buraco escavado no solo. Sem medo, saltou para dentro, sem nem ao menos utilizar a escada velha encostada na parede de terra. Em seguida, caminhou pelo longo e estreito túnel subterrâneo em um ritmo apressado, o qual tornava-se mais amplo à medida que avançava. Após percorrer cerca de cem metros, pôde observar a luz da área mais ampla e ouvir as vozes das outras duas garotas gritando comandos a seus pokémons. Por algum motivo, observar as criaturinhas executando seus golpes a fez sorrir.

Chegando ao fim do túnel, Caroline dirigiu-se à área dos fundos da grande gruta subterrânea, onde realizaria seus treinos. Passou por Amy e Sam em seu caminho e cumprimentou ambas antes de libertar seus pokémons.

— Prontos para mais um treino? — indagou a menina com um leve sorriso no rosto, fitando seus companheiros.

Os três monstrinhos de bolso possuíam expressões confusas, como se não compreendessem a rápida mudança de comportamento de sua treinadora. Leroy e Augustus rapidamente deixaram as dúvidas de lado, animando-se em começar logo seus treinos para que pudessem aprender novas técnicas. Firestarter, porém, ainda estava um tanto quanto desconfiado.

— Care, aconteceu alguma… — o cavalo iniciou, porém, foi rapidamente interrompido pela jovem animada.

— Fire, acho que é melhor você descansar por mais uns dias antes de voltarmos a treinar. — disse, aproximando-se do equino e tocando seu focinho com delicadeza. — Que tal me ajudar a criar ideias para o treino de Leroy e Augustus? — sugeriu, tentando entregar uma atividade ao Ponyta; afinal, sabia que este detestava ficar à toa, preferindo ser útil para alguma coisa.

— Uh, claro. — o cavalo de crinas azuladas sorriu. Queria entender o que causara a súbita mudança de opinião da menina e a motivara a retomar os treinamentos, mas não gostaria de tirar aquele sorriso de seu rosto no processo. Adorava vê-la feliz e, desde o dia em que fora baleado, foram raras as vezes em que a vira sem um semblante triste.

— Ótimo. — o sorriso da jovem tornou-se ainda maior, antes desta virar-se para os outros dois pokémons a sua frente. — Augustus, que tal treinarmos um pouco seu Iron Tail? É um golpe que, quando bem treinado, pode ser bem poderoso. — sugeriu, acariciando o dorso do gatinho.

— Claro. — o Meowth sorriu e se posicionou, parecendo gostar da ideia.

— E quanto à mim? — indagou a lontra de pelos caramelo, animada.

— O que acha que devemos fazer, Fire? — a menina virou-se para o Ponyta ao seu lado, esperando por sua opinião.

— Hm? — Firestarter pareceu confuso por um momento, debatendo sobre alguma estratégia de treinamento. — Bem, talvez Leroy possa treinar sua agilidade usando Water Gun para baixo para esquivar-se dos golpes de Augustus.

— Você é quem manda, chefe. — o Buizel bateu continência, como um soldado faria perante a seu superior, arrancando uma gargalhada serena do cavalo. Em seguida, afastou-se um pouco e posicionou-se à frente do gatinho de pelos claros. — Me dê seu melhor golpe de cauda! — gritou para Augustus.

— Foi uma ótima ideia, Fire. — elogiou a garota de cabelos negros, sussurrando para o cavalo. — Podem começar!

Firestarter sorriu, feliz; era a primeira vez que Caroline lhe deixara dar ordens ao invés de recebê-las e, embora fosse algo novo para ele, estava sendo divertido. Não mais se preocupava tanto em ser impedido de treinar junto aos outros, já que agora poderia ter outra função importante enquanto não havia se recuperado completamente. Sentia-se útil novamente e, para ele, aquilo significava muito.

Enquanto isso, Amy continuava com sua estratégia única, pedindo que Kairi e Iki se enfrentassem em um combate amistoso para treinar simultaneamente agilidade, força e defesa. Os resultados de seus treinos já podiam ser vistos e, agora, ambos os pokémons pareciam se conhecer tão bem que era difícil um deles ser atingido por um golpe do outro; isso os incentivava a criar novas técnicas para causar dano. Após revelar para a treinadora sobre seu passado, o Totodile parecia especialmente dedicado aos treinos, esforçando-se ao máximo cada vez - era sua maneira de garantir que, dessa vez, ele seria forte o suficiente para proteger quem ele amava.

No centro da ampla caverna, onde a luz era mais intensa devido à maior presença de cristais que eram diretamente atingidos pelos raios do sol, Sam preferia fazer um treino em conjunto com seus pokémons. Enquanto Omen praticava seu Night Slash com algumas rochas presentes no campo, partindo-as em diversos fragmentos, Kahira tentava rebatê-los com seu bastão para impedir que caíssem ao chão, em um treino de agilidade. O novo membro do time, Louis, ainda não se sentia pronto para dar início aos treinos, mas observava os outros dois cautelosamente, tentando aprender ao máximo.

— Muito bem, gente. Podem parar um pouco. — afirmou a menina de cabelos brancos, percebendo que seus pokémons começavam a ficar cansados.

Enquanto o Shuppet e a Salandit se sentavam próximos ao Furfrou para descansar, Sam dirigiu-se até uma das colunas rochosas que sustentava a caverna, apoiando-se contra ela. Retirou do bolso seu celular, lembrando-se que não havia respondido às mensagens da desconhecida desde que chegara à Nacrene. Não se surpreendeu ao deparar-se com diversos textos novos, perguntando onde a garota estava - todos de Alice, como a estranha havia se identificado. Sam franziu o cenho, um tanto quanto incomodada pelo grande número de mensagens que lhe haviam sido enviadas, mas estava gostando de se comunicar com mais alguém que dizia gostar de pokémons. Não havia maneiras de provar que aquela afirmação era verdade mas, como nada havia sido feito até o momento, não mais acreditava que a situação pudesse ser perigosa.

“Desculpe, chegamos ontem em Nacrene. Estava ocupada”. Foi o que a menina respondeu, recebendo uma resposta imediata. “AAAAAAAA eu moro aqui perto! Passa aqui em casa quando vocês estiverem indo embora #FestaNaCasaDaAlice”. A garota fez uma careta tentando ler o que havia após a hashtag, mas logo depois abriu um sorriso. Não estava muito segura quanto à ideia de visitar a desconhecida, afinal - embora não fosse o que parecesse - ela podia ter mentido sobre tudo e estar apenas montando uma armadilha para denunciá-la ao governo. Um pouco receosa, Sam preferiu não responder à mensagem, guardando novamente o celular em seu bolso ao notar que Kahira se aproximava.

— Sam! — exclamou a Salandit. — Eu quero ir ao Mercado Negro encontrar novos desafiantes! Estou me sentindo mais forte hoje. — ela sorriu, alongando um de seus braços à frente do corpo.

— Ah, eu não sei se é uma boa ideia… — a garota estremeceu, lembrando-se das cenas da reptiliana após a batalha da noite anterior.

— Eu tive uma recaída. — Kahira cerrou os olhos, desviando seu olhar. — De qualquer forma, batalhas são o melhor jeito de praticar, não?

— Err… Acho que sim. — notando verdade na frase da pokémon, a menina acabou por concordar, dando de ombros. — Vamos, então.

— Vou com você. — afirmou Amy, que também havia há pouco finalizado seu treino. — Acho que terminamos por agora e eu queria conhecer um pouco de Nacrene. Matt me recomendou alguns lugares para visitar.

— Podemos dar uma volta antes de ir para o Mercado Negro. Vai ser ótimo ter companhia. — sorriu Sam, logo em seguida virando-se para seus três pokémons e retornando-os.

Sentindo falta de algo, a garota de cabelos brancos franziu o cenho. Logo então percebeu que Caroline ainda estava aos fundos, dando continuidade ao treinamento que realizava com Leroy e Augustus. Um pouco surpresa por ver a amiga tão animada e motivada a treinar com seus pokémons novamente, decidiu aproximar-se.

— Caroline, vamos voltar para Nacrene agora. — informou. — Você quer vir conosco?

— Ah, uh… — a menina de cabelos negros virou-se para a outra, pensativa. — Na verdade, acho que vou ficar aqui treinando mais um pouco.

A resposta de Caroline surpreendeu ainda mais Sam, que arregalou os olhos. Desde o tiroteio no Contest, a amiga apenas relatava constantemente sobre sua vontade de desistir e voltar para casa. Por mais de uma semana não havia realizado um treino sequer com seus pokémons e demonstrava aversão a batalhas ou qualquer coisa que pudesse ferir seus companheiros. Até mesmo naquela manhã, quando a convidara para treinar junto à ela e Amy, pôde perceber o desânimo e receio da garota de cabelos negros. Por que então, de repente, ela estava tão ansiosa para comandar ataques aos seus pokémons? A mudança de humor da amiga realmente a pasmara e ela começava a ficar preocupada.

— Está tudo bem, Caroline? — indagou Sam por fim, em uma tentativa de compreender melhor o que ocorria.

— Nunca estive melhor. — respondeu prontamente a jovem de cabelos negros, abrindo um sorriso e fitando a outra com um misto de fúria e determinação em seus olhos.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Link do DA com desenhos dos personagens:

https://www.deviantart.com/heavenhellpkm



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Heaven & Hell" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.