Diários do Fim do Mundo | FIC INTERATIVA (hiatus) escrita por Ma Ellena


Capítulo 2
CAPÍTULO 1 - Extra! Extra! O mundo acabou!




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/796394/chapter/2

30/07/2694 05:43 PM

Querido diário,

Será que é assim que deveria começar? Honestamente, tanta coisa aconteceu nas últimas duas semanas que nem sei como contar. Decidi escrever por três razões. Por ter lido em um livro que a escrita é terapêutica, em outro livro sobre a importância da escrita no desenvolvimento da sociedade e porque acabei achando esse caderno aqui no chão e algumas canetas ao longo do caminho. Canetas são mais úteis do que você imagina, em um livro ensinava sobre como ressuscitar alguém que não conseguia respirar fazendo um furo com a caneta no começo do pulmão.

De qualquer forma, não consigo contar sobre como tudo isso começou, apenas como tudo terminou. Nem isso direito, ainda é confuso pra mim sobre como o mundo, finalmente, acabou. A última coisa que me lembro era de estar na livraria como de costume, André cuidava do caixa enquanto eu organizava os livros novos que haviam chegado. 

Sinto falta daquele velho rabugento. Da forma como ele reclamava das pessoas que liam os livros sem a intenção de comprar e das garotas que ficavam na vitrine depois das aulas, tomando o sorvete da loja ao lado. Sinto falta do sorvete da loja ao lado também, é uma benção que não se tem mais esses dias. 

Sinto falta da forma como André me explicava a importância de ler e sobre como todos os livros continham as informações mais essenciais para a vida e nosso desenvolvimento. Sobre como brigava comigo por estar tomando sorvete na loja ao lado antes do almoço e sobre como ele foi o responsável por eu ter entrado em uma escola.

 

*****

 

02/08/2694 06:32 PM

Tudo acabou após o estardalhaço do vidro e de toda aquela poeira entrando, todo o barulho e a tremedeira que desfez todo o meu trabalho ao organizar os livros perfeitamente na prateleira. Num piscar de olhos, meu refúgio perfeito naquela livraria gigante e antiga se transformou em um cenário abandonado de guerra. Depois disso, várias lojas ao redor foram invadidas, milhares de pessoas desesperadas e machucadas passaram pela vitrine. Lembro de ficarmos escondidos no fundo da loja por uma semana, vivendo dos salgadinhos que levava pra escola.

Acho que essa foi uma das vantagens de estar em uma livraria, só pegavam alguns livros quando fazia frio a noite, o que raramente acontecia desde aquele dia. Até que a água foi cortada e a comida acabou. André insistiu que eu ficasse enquanto ele procurava algo. No começo foi massacrante, todas aquelas horas esperando no escuro. Uma das melhores lembranças foi ele voltando sorridente e suado cheio de nossos salgadinhos preferidos na mão, junto com um pacote de M & M 's. 

Nunca vou esquecer a cara do velho, orgulhoso me dando a sobremesa. Durou dois dias, até que ele saiu novamente. Fiquei preocupada quando escureceu e ele ainda não tinha voltado. Conhecia muitas pessoas que foram abandonadas pelos membros da família que iam comprar cigarro e nunca mais voltavam, não esperava que minha versão fosse caçar comida no apocalipse e não voltou.

 

*****

 

05/08/2694 06:02 PM

Li em um livro uma vez que o ser humano sobrevive uma semana sem água e quarenta e cinco dias sem comida. Quem escreveu isso ocultou a parte da garganta seca e lábios rachados de dois dias sem água e da dor no estômago em ficar sem comida. Me lembro que depois de dois dias sozinha, tentei arranjar coragem para procurar comida, quanto mais tempo sem, menos energia teria pra procurar.

Lembro do meu coração palpitando forte em meu peito e do calor que fazia na rua, do quanto ventava e levantava a poeira. Depois de duas semanas trancada, a visão daquela rua tão familiar pra mim era estranha, toda destruída por algo que aconteceu e das invasões. Minha barriga roncava mais do que o medo e tentei procurar algo que havia restado. 

A floricultura do fim da esquina era uma visão do inferno, mas sabia que eles guardavam galões de água no fundo para regar as plantas no calor. Entendi o sorriso incessante no rosto de André quando chegou naquele dia, a felicidade de poder beber água depois de dias era incessante. Consegui dois galões e meia caixa de maçãs em uma condição aceitável. Coletei algumas roupas na loja da frente, para tentar me proteger do sol, e alguns protetores que a farmácia vendia. Kit primeiro-socorros, energéticos caídos no chão e qualquer coisa que me parecia ser útil. E comi. Muito.

No dia seguinte, queria comer bastante também, mas tentei racionar. Precisava aprender como me adaptar ao fim do mundo, me arrependi de nunca ter sido muito fã de literatura distópica e do grupo de escoteiros da cidade. Minha sorte foram os livros, que me incentivaram a tapar a fachada da loja com madeira e a criar armadilhas. Pena que aprendi tudo por necessidade, não diversão e interesse. Talvez, se tivesse aprendido, não teria sido tarde demais.

Acordei com um barulho alto de algo batendo nas prateleiras. Eu não sei o que era aquela coisa, mas não parecia humana. “Zumbi” não era uma definição apropriada para aquela coisa, nada parecia servir, nem “monstro” encaixava apropriadamente o que eu consegui ver… Espero nunca mais encontrar aquilo. Não parecia morto, não parecia humano, não parecia doente e nem um animal. Era algo mais, algo que te mata por dentro só de olhar, como se aquilo que imaginava ser o resquício de um humano tivesse sido completamente tomado e devorado por seu próprio medo, raiva e desespero. Me escondi no fundo rezando para que fossem embora, não sei o que procuravam, mas não acharam.

Pesquisei tudo o que podia, em todos os livros que haviam sobrado. Se houvesse uma próxima invasão, estaria preparada. Meu último passo foi o desta manhã, nas inspeções semanais por comida, encontrei sementes na floricultura e um pouco de terra que espero estar boa. Estudei um sistema de irrigação essa semana, e ele funciona. Espero ter água o suficiente para isso. Nesse diário, estou tentando escrever o que lembro aos poucos, tentando gravar as memórias nele para, quem sabe, algum dia rir delas.

 

*****

 

10/08/2694 11:32 PM

INVENTÁRIO

5l de água (útil para, pelo menos, 5 dias)1 pacote de sementes de girassol1 pacote de sementes de abóbora1 pacote de sementes de tomate (provavelmente não vão crescer)2 maçãs4 cascas de banana1 pacote de espinafre murcho½ pacote de farinha de trigo2 pacotes de macarrão3 papéis higiênicos1 shampoo2 desodorantes3 lenços1 luva de jardinagem2 cds1 martelo4 tábuas de madeira½ cobertor

ps: ainda tenho a roupa do corpo

 

*****

 

17/08/2694 06:34 AM

Preciso buscar mais alimento, receio que todas as provisões dessa rua acabaram. Tentarei buscar pelo bairro se algo ainda sobrou. Tenho medo de ser encontrada por aquelas coisas, começo a me questionar se isso aconteceu em outros lugares. Será que essa cidade apenas está em quarentena e não faço ideia? Outro dia encontrei um telefone, mas não estava dando sinal. As pessoas que não sumiram estão largadas na rua, pensei em enterrá-las para não ter problema com animais e infecções. Li também que o corpo humano é cheio de elementos químicos necessários para plantações, mas entro em um conflito se isso seria moralmente correto. Será que ainda existe uma definição de moralmente correto?

 

*****

 

17/08/2694 01:46 PM

Encontrei um poço de água no que um dia havia sido a fazenda da Dona Nina, acho que essa é a vantagem de morar no interior. Estou pensando em mudar o esconderijo para lá, lembro que ela sempre foi uma leitora assídua, então tem vários livros lá que poderia aprender. Seria bom poder viver lá, em um lugar um pouco mais isolado da bagunça do centro, sempre me trouxe uma sensação familiar e aconchegante, como a casa de uma avó. Agora, lembrando de como era, talvez era isso que Dona Nina tentava ser, já que nunca conseguira ter filhos, cuidando sempre de todos na cidade. Quem diria que ela conseguiria trazer segurança e paz até depois do fim.

Deveria começar a escrever aqui os resumos do que aprendi nos livros lidos até agora também, assim sempre terei toda a informação sem ter que carregar o peso. Deveria começar a fazer buscas a noite também, com esse calor do inferno é quase impossível respirar. Será que no fim estou morta e esse é o inferno? Faz sentido aquelas coisas serem demônios.

Acho que um bom plano é começar a reformar a casa e mover as coisas aos poucos, até o fim da semana terei me mudado para cá. Achei um rádio no caminhão abandonado no campo, havia me esquecido que seu João tinha um, poderei enviar um pedido de ajuda, ou buscar alguma informação. 

Tem bastante espaço para uma horta interna também, já que algumas partes do piso estão quebradas. Quem sabe, algum dia, poderei reformar o sítio e viver sem me preocupar com chuvas ácidas, ar rarefeito, sol ardente e coisas me atacando. Terei que testar a água.

Pensando nessas últimas duas semanas, é quase como se não conseguisse mais falar. Tem sido muito solitário, mas não sei se conseguiria confiar em alguém. No começo de tudo, o pouco de pessoas que encontrei estavam invadindo todas as lojas em busca de algum mantimento, até matavam por isso. Agradeço por terem desaparecido, ficar sozinha me parece mais seguro, pelo menos por enquanto. Tentarei encontrar algum motivo e consequente solução para o que aconteceu. Nem acredito que foram só duas semanas.

 

*****

 

17/08/2694 06:43 PM

Estou voltando para a livraria, depois de um dia arrumando a casa. Pelo menos foi produtivo, dois cômodos já estão cobertos. É engraçado o quão confortável fiquei em caminhar pela cidade, o suficiente para escrever enquanto chego. Talvez o espaço seja grande para viver sozinha, quem sabe não encontro algum animalzinho para fazer companhia nesse tempo. Seria mais uma boca para alimentar, mas assim que o projeto da horta estiver pronto, poderá alimentar muito mais seres além de mim.

Acho que estou me sentindo mais confortável esses dias, sonhando até com um possível futuro. Será que isso é resiliência? Transformar os demônios que aparecem em cada esquina em algo cotidiano? Percebi que eles não ouvem tão bem, depois de todos esses dias, eles continuam na mesma rota. É estranho pensar que um deles devorando um corpo apodrecido é parte do meu novo cotidiano, a ponto de não ter mais ânsias. Me questiono se estou me tornando uma pessoa ruim ao não querer enterrar os corpos para deixá-los distraídos.

Estou chegando agora, mal espero para poder comer a batata que achei e a fruta desidratada que fiz…

Tem algum barulho lá dentro, é algo que parece fogo. Tem alguém ali dentro, e esse ser me viu.

 

**********************************************************


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Diários do Fim do Mundo | FIC INTERATIVA (hiatus)" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.