Frechada do teu olhar escrita por Débora Martins


Capítulo 1
Parte 1


Notas iniciais do capítulo

Por favor desconsiderar a conversão monetária dos cruzados.



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01 de maio de 1981

James Potter acordou assustado com o telefone tocando na sala de seu pequeno apartamento no centro do Rio de Janeiro. Antes mesmo de atender, sabia do que se tratava: seus pais estavam preocupados com sua segurança.

Fleamont e Euphemia sabiam que James corria riscos vivendo onde estava. Seu ideal e partido político o denunciavam e ele sabia que tinha sorte de estar vivo até aquele ponto. James era o tipo de pessoa que lutava com todas as forças por aquilo que acreditava, mas a verdade é que ele estava apavorado. Precisava sair dali. Estava a anos vivendo no epicentro do caos, longe de toda sua família, vendo amigos e colegas sendo presos ou desaparecendo simplesmente e ele sabia que aquilo significava que haviam sido torturados e assassinados. 

A noite anterior fora particularmente assustadora. Ele estava no estacionamento de um evento que acontecia no RioCentro em homenagem ao dia do trabalhador quando viu um carro explodindo, um homem fardado saiu de dentro dele com vísceras expostas, logo depois um homem que James não fazia ideia de quem era entrar no carro e retirar cilindros que ele imaginou que fossem granadas. 

Tratou de sair dali o mais rápido possível. Um conhecido de manifestações de James depois o confirmou do fato: era pra ter sido um ataque organizado pelo exército por causa da insatisfação a respeito da abertura da democracia pelo regime atual.

Mas James não aguentava mais. Havia escapado da prisão por um triz diversas vezes, havia acabado de perder os seus dois amigos que dividiam o apartamento, não podia mais viver com medo. Então naquela manhã abafada quando o telefone tocou, ele avisou aos pais que voltaria para Cascavel o mais rápido possível.  

 

Depois de um dia corrido de empacotamento de coisas importantes em duas malas e mais quase um dia inteiro de viagem de ônibus, James desembarcou na pequena cidade do interior do Paraná e seus pais respiraram tranquilamente em anos. Finalmente estavam seguros. 



26 de maio de 1981

Sirius Black sempre fora a pessoa que James poderia contar. Eram amigos de infância, mas desde quando James foi para o Rio de Janeiro haviam perdido um pouco do contato que antes sempre fora muito presente. Sirius agora — que não falava oficialmente com ninguém de sua família — era dono de um pequeno bar na pacata cidade e assim que soube que James estava de volta o ofereceu um emprego de barman no local. 

James aceitou. Não poderia mais trabalhar com o que fazia antes, doía demais. Mas servir bebidas a estranhos? Isso era moleza, era tudo que ele precisava naquele ponto de sua vida, algo calmo com que ele pudesse lidar sem reviver pesadelos.

Entretanto, quando calculou a equação de trabalho tranquilo, James Potter não levou em conta a variável Lilian Evans. A mulher mais bonita que ele já vira estava ali, em cima de um palco no bar mal iluminado de Sirius, cantando uma música sobre um bêbado e uma equilibrista — a qual James soube no mesmo instante que era um protesto em forma de arte. 

Mas quando ouviu sua voz doce James se esqueceu de tudo. Todas as referências à crueldade dos militares nas entrelinhas da canção. O timbre doce da voz de Lily o fez esquecer por alguns minutos todas as suas perdas e todas as suas dores. James ficou tão concentrado na mulher que quase derrubou a cerveja de um cliente.

 

28 de maio de 1981

James continuava encantado por Lilian. Ficava ansioso para o horário que ela chegava no bar e podia ouvi-la cantar. Trocavam sorrisos, meia dúzia de palavras cordiais, mas nada demais. Até o começo da noite de domingo, quando o show de Lily acabou mais cedo e ela sentou-se no banco do canto, perto do balcão onde James estava. Ela pediu uma cerveja e começou a falar como se conhecessem há anos. 

 

— Minha mãe diz que em certo momento, eu tenho que ser realista a respeito da minha vida, mas eu... não sei se concordo com isso. Entende o que eu quero dizer? Porque eu sou uma cantora. Meu Deus, eu verbalizei isso. Eu sou cantora — James riu, mas não respondeu, apenas a fitava encantado — Eu tenho enviado CDs e tenho esse sonho em ser contratada pela gravadora Gryffindor. Desculpe, acho que eu acho que estou falando demais. Eu estou falando demais? Porque eu sinto que eu estou falando demais. Por favor me conte algo sobre você.

Ela realmente falou demais, mas James não se importou. Ele sorriu.

— Bom, meu nome é James. 

Lily também riu. Não era o tipo de resposta que ela esperava, mas não ficou decepcionada. 

— Ok, isso é um bom jeito de começar, James... Que horas acaba seu expediente? 

— Hum. Em vinte minutos — respondeu olhando no relógio de parede.

— Você por acaso quer sair daqui? — De repente ela começou a ficar da cor dos seus cabelos — Ai meu Deus eu não quis dizer da forma que pareceu... é só que a comida daqui é horrível... não conte ao Sirius!

James gargalhou.

— Claro, eu adoraria!

— Ok, legal — ela sorriu enquanto bebia outro gole da cerveja.

 

***

 

Estavam em um parque de diversão que James ia quando era criança. Ele se lembrava de ver os casais de adultos passeando juntos por ali, o homem ganhando bichinhos de pelúcia e dando para a namorada, depois ganhando um abraço apertado em gratidão. Ele prometeu que quando tivesse uma namorada a levaria em um parque de diversões.

Lily falava animadamente sobre sua infância e ele ouvia encantado, sorrindo de lado. Caminhando com as mãos no bolso enquanto ela comia uma maçã do amor e tomava um chocolate quente.

—  Desculpe ficar tagarelando.

— Você não está — ele respondeu rindo sincero.

— Você pode, por favor, me contar algo sobre você? 

— Bom, eu sou barman no Três Vassouras — ele riu e percebeu que era algo que Lily já sabia, ela cantava no mesmo bar — Eu voltei do Rio de Janeiro no começo do mês. Morei lá por uns bons anos.

— Sério?

— Sim.

— O que aconteceu?

James coçou a cabeça e fez uma careta. Lily parece ter percebido, pois rapidamente disse.

— Desculpe ter perguntado. 

— Não, tudo bem… Meus pais me pediam para voltar há anos, mas eu queria lutar. 

— Você tem irmãos? 

— O Sirius conta? — ele ficou aliviado, isso era um assunto que poderia falar tranquilamente.

— Não sabia que eram tão próximos — ela sorriu.

— Crescemos juntos — disse simplesmente e um silêncio se instalou entre os dois.

— Ok. Já sei — ela disse animada — Vou fazer algumas perguntas e a gente responde ao mesmo tempo. 

— Ok, vamos lá.

— Cachorros ou gatos?

— Cachorros — respondeu James em tom determinado.

— Gatos! — disse Lily animada ao mesmo tempo que ele.

O sorriso dela murchou um pouco, mas ela se esforçou para manter um clima agradável.

— Ok, vou tentar mais uma vez. Recheios de pizza: cogumelo ou pepperoni?

— Pepperoni — disse James convicto.

— Cogumelos — responde Lily, agora com o sorriso totalmente desfeito do resto.

Naquele exato, pingos de chuva começam a cair do chão. 

— Isso é chuva? Começou a chover — Lily disse sem pensar olhando para cima e sentindo pingos em seu rosto.

— Sim, sim…

— Olha — ela apontou para um homem em um canto — Aquele cara já está vendendo guarda-chuvas, devemos comprar um?

— Não acho que está chovendo tanto assim não é? — James perguntou olhando para o céu, um pouco desconfortável. 

— É... — ela fica sem graça porque a chuva estava realmente aumentando — Acho que não.

— Se você quiser eu compro um, mas não acho que está chovendo tão forte assim…

— É, acho que não... 

— Legal.

Eles andaram até a borda de uma das barracas para não se molharem e ficaram em um silêncio constrangedor. 

— Tem certeza que não quer jogar alguma coisa? — James perguntou quebrando o silêncio.

— Não, estou bem. Obrigada.

— Podemos dar uma volta — ele sugere.

— Acho melhor ir pra casa — ela diz exatamente ao mesmo tempo.

 

***

 

— Foi muito bom te conhecer, James. Obrigada pela carona e pela agradável noite — ela fala em um tom totalmente polido e educado, começando a soltar o cinto de segurança para sair do carro.

— Eu não tinha dinheiro pro guarda-chuva... — ele diz rapidamente para não perder a coragem, Lily o olha sem falar nada e ele continua — Eu comecei a noite com 10 mil cruzeiros. Foram 5 mil pra entrar, mais 2 mil pela maçã do amor e pelo chocolate quente, o que é uma exploração na minha opinião, mas não importa.... Eu fiquei com 2 mil cruzeiros, e se eu comprasse o guarda-chuva eu não teria o suficiente para os jogos. Eu não sabia se você queria jogar ou não, mas eu não queria arriscar porque eu te levei a um parque de diversões. Você não leva uma garota a um parque de diversões e sem deixá-la ir nos jogos — ele riu sem graça e respirou por um segundo para criar coragem de continuar — Desde que voltei do Rio, tenho tido dificuldades... Ganhar dinheiro, encontrar meu lugar, eu não quero falar sobre as coisas que vi, que vivi ou sobre as pessoas que perdi. Me deixa triste. Me deixa bravo. Mas eu gosto de falar com você, muito. Você me faz sentir em casa. E eu nunca me senti dessa forma antes. Desculpe ter sido um primeiro encontro ruim.

James solta um risinho tímido e Lily o olha atônita. 

— Nada de gatos é definitivo? — perguntou simplesmente.

Ele fez uma careta antes de responder.

— Sou alérgico.

— Ahhhh.... a cogumelos também?

— Não, eles eu odeio mesmo. Eu realmente odeio muito.

Lily riu sincera.

— Tudo bem, existe pizza meio a meio — ela ri mais — É, foi um primeiro encontro muito ruim.

— Eu sei, desculpe.

— Minhas amigas dizem que eu devo fingir que esqueci algo no carro se foi um bom primeiro encontro, assim o cara tem que voltar pra devolver no dia seguinte... mas não foi esse tipo de primeiro encontro e eu não sou esse tipo de garota e odiar cogumelos realmente é o fim pra mim...

James sorriu e Lily gargalhou.

— Mas o jeito que você me olha.... — ela diz sincera e o olha intensamente — Sabe James eu realmente nunca faço isso…

Lily solta o cinto de segurança e se aproxima, segurando o rosto de James com as mãos, o beija rapidamente e sai do carro sem dizer mais nada. 

Quando ela fecha a porta, ela se apoia na janela aberta do banco do passageiro.

— Sabe… Eu não vou te ligar.

— Eu também não vou te ligar —  James sorri e a observa entrar em sua casa. Quando gira a chave do carro para dar a partida, ele observa que Lily deixou seu casaco no banco.





29 de maio de 1981

James acordou cedo. Estava ansioso por aquele dia. Assim que chegou em casa, ficou encarando seu telefone, imaginando se tocaria. Mal sabia ele, que em sua própria sala, Lily esperava exatamente a mesma coisa. Quando ele mexia em sua carteira procurando o número anotado da garota para fazer aquilo que realmente desejava, levou um susto quando o aparelho começou a tocar. 

— Alô? — perguntou.

— James? — era a voz doce de Lily.

— Sou eu…

— Eu sei que eu disse que eu não ligaria, mas…

— Eu estava prestes a te ligar.

Ela não respondeu, mas James gostou de imaginar que ela estava sorrindo. E assim conversaram por horas. 

Mesmo depois que havia desligado o telefone, James não conseguia parar de sorrir, pensou em Lilian a noite inteira. Eles combinaram de se ver novamente no dia seguinte para que ele pudesse “devolver o casaco”.

Portanto, perto do horário que combinaram, James se arrumou, foi no jardim de sua casa onde pegou algumas flores que sua mãe cultivava com tanto carinho e montou um buquê para Lily.

Dirigiu animado cantarolando feliz as músicas que tocavam no carro até a casa da mulher. Entretanto, quando estacionou no outro lado da rua, ele viu.

Lily estava na porta da casa e conversava com um homem, James não conseguiu ver seu rosto, mas ele parecia alto e muito bem vestido, James olhou para suas próprias roupas que algum dia já foram novas. Pôde notar o sorriso aberto de Lily para o homem, que lhe entregava um buquê de flores. 

Olhando para suas próprias flores, James sentiu o rosto arder de vergonha, seu buquê era pelo menos quatro vezes menor e mais humilde. Sentiu seu coração se apertar e ele simplesmente dirigiu para longe dali. Naquela noite o telefone de James não tocou e ele também não ligou para saber o que havia acontecido.



31 de maio de 1981

Ele aproveitou suas duas últimas noites de folga sem fazer nada. Na noite de quarta-feira, quando chegou ao trabalho, Lily já estava no palco. Linda como sempre. Ele se esforçou ao máximo para evitar ouvir a voz dela, mas era difícil demais. Tentou ao máximo focar nos pouquíssimos clientes que estavam ali naquele dia, mas chegou um ponto que não dava mais para ignorá-la, talvez porque Lily estava sentada em sua frente.

— Você nunca apareceu… — disse com voz tímida.

— Eu apareci. Vi você na porta com um cara — respondeu simplesmente secando um copo.

James percebeu que ela ficou tensa, com certeza era uma cena que ele não deveria ter visto.

— Nós namoramos 3 anos a um tempo atrás e eu não sabia que ele estaria lá…

— Você não precisa explicar

— Eu sei, mas…

— Preciso voltar ao trabalho, amanhã eu trago seu casaco, ok? — como não havia nenhum outro cliente, James virou de costas e começou a organizar as garrafas de bebidas. Quando se virou novamente, ela havia desaparecido.



01 de junho de 1981

Quando a campainha tocou em sua pequena casa no começo da tarde, James franziu a testa. Não estava esperando ninguém, e seus pais haviam acabado de sair para caminhar.

Arregalou os olhos quando percebeu Lilian parada em sua porta.

— Oi… Eu vi seu carro estacionado ali na frente — disse apontando.

— Oi. Quer entrar? — James afastou o corpo dando passagem para a mulher. 

Ele já havia visto a fachada da casa de Lily duas vezes e sabia que ela tinha uma condição social muito melhor que a dele. Ficou quase envergonhado de deixá-la entrar na pequena casa de seus pais, ainda mais quando a cozinha estava uma bagunça.

— Obrigada — ela disse sorrindo um pouco tímida.

— Então.... Aquele cara? — James achou que deveria perguntar a respeito.

— Vida passada.

— Ok…

— Namoramos anos atrás. Minha família quer que eu fique com ele porque ele é do exército e então vai me dar um bom futuro.

James sentiu a sua espinha arrepiar com a simples menção de um militar.

— Eu não concordo… — ela continuou falando — Não concordo com os posicionamentos políticos dele. Além do mais, não é com ele que eu quero estar.

James sorriu e icaram em silêncio por um momento, até ele perceber que Lily olhou  para a mesa.

— Desculpe, acabamos de almoçar.

— Não, tudo bem...

Ele rapidamente começou a organizar os pratos que estavam largados de maneira organizada, empilhando todos e os levando até a pia. Soltou os botões do pulso de sua camisa, arregaçando as mangas e dobrando-as na altura dos cotovelos, também retirou seu relógio de pulso para que não molhasse e colocou em um canto da janela. Começando a ensaboar as louças.

Lily a olhou encantada, mas ele não percebeu. James só soube o que passou na cabeça dela naquele instante anos depois: ela vinha de uma família conservadora, sempre fora acostumada a que mulheres cuidavam das tarefas domésticas porque era o dever delas. Cuidar da casa, cuidar dos filhos. Nunca havia visto seu pai ou seu ex-namorado (sim, o que levou aquele grande buquê) se levantar para ao menos retirar os pratos da mesa, quem dirá lavá-los.

James só percebeu que Lily estava ao seu lado quando ela começou a pegar as louças que ele enxaguava para secá-las. Ficaram assim um tempo, em silêncio, apenas lavando a louça juntos.

— Quer dar uma volta de carro? — ela perguntou de repente.

— Onde você quer ir?

— Porto Alegre…

— Quero.

— Sério?

— Sim.

— Eu estou falando sério, hoje de manhã a gravadora Gryffindor me ligou, eles querem que eu faça uma audição.

— Eu estou falando sério, eu vou com você.


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