Os Retalhadores de Áries escrita por Haru


Capítulo 11
— Luta entre as dimensões




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— Luta entre as dimensões 

Solitário na escuridão da sala de trabalho que compartilhava com Kin, Arashi fitava duas folhas de um fichário enorme e, um a um, repetidamente, os nomes que as abarrotavam. Estava fazendo isso há tantas horas que até os memorizou. No entanto, quanto mais tempo passava assim, mais pesado o seu coração ficava de tristeza e de culpa, porque em cada uma das folhas havia três fileiras com os nomes das pessoas que ele matou ao longo da vida — um total de cento e vinte e três vidas ceifadas por suas mãos. Nem se atrevia a pôr sobre a mesa os documentos com os nomes de suas vítimas.

Só depois de se tornar o primeiro ministro do Reino de Órion pôde ter acesso a esses arquivos, Hayate, com o zelo de um irmão mais velho, manteve segredo acerca deles. Nunca lhe ocorreu a ideia de contar a quantia de mortes pela qual foi responsável. Se, em algum momento de sua carreira, tivesse parado para reparar nas coisas que sua profissão lhe forçava a fazer, se pensasse muito no que fazia no instante que fazia, teria fracassado em quase todas as missões que o reino incumbiu a ele. Sua função era agir, voltar para casa com bons resultados, e não pensar, muito menos sentir. E sempre foi bom nisso.

Agia com frieza e racionalidade no trabalho, mas todos os que o conheciam em sua vida privada o descreviam como dócil, humilde, amigável, gentil. Tinha amigos que adoravam sua companhia, uma irmã que o idolatrava e uma namorada que o amava de todo o coração. Por que tamanha discrepância entre sua ética em serviço e a de seu cotidiano? Quem sabe porque se mutilava interiormente praticando aqueles assassinatos e se sentia remendado quando era bom com quem encontrava em seu dia a dia. Fossem quais fossem suas razões, Arashi não estava feliz. Em seus piores pesadelos, sua irmã descobria as coisas terríveis que ele já fez.

Bateu a mão na cadeira, esticou as pernas, cruzou-as e as deitou em cima da mesa. Seus olhos continuavam fixos nas folhas mesmo depois de Yue bater na porta, sua atenção estava tão voltada para os nomes espalhados nas planilhas que deu permissão a ela e lhe disse para entrar sem nem perceber.

— Eu vim trazer os... — Yue não completou a fala, sentiu o clima pesado da sala assim que o olhou. A cor rosa de sua camiseta sem mangas, o cinza claro de seu short jeans e o amarelo de seus chinelos de dedo contrastava com o ambiente sombrio que enfeitava a sala na qual ela entrou. — O que foi?

Arashi exibiu um sorriso curto, desanimado, e depois mostrou as folhas a ela.

— Achei isso aqui numa dessas gavetas hoje. — Disse. Quando Yue chegou perto, entregou-as nas mãos dela. A menina, muito curiosa, as pegou e leu. Só haviam nomes. A princípio, como o esperado, ela não entendeu nada, mas ele explicou: — São todos os retalhadores e humanos que eu matei ao longo dos anos.

Yue apontou de novo os olhos violeta para as folhas. Nossa, pensava, atônita. Tinha que concordar: o número era impressionante, ainda mais considerando a idade dele. Mas a culpa, o horror a si mesmo cintilavam em seus belos olhos azuis claros. A menina não sabia o que dizer. Temia falar algo que o deixasse pior do que ele já estava, ou que soasse falso, afinal, todo mundo sabia a sua posição sobre esse assunto, o quanto ela brigou com Sora por matar o sujeito que invadiu a morada da família real de Órion, mas com Arashi era diferente. Algo lhe dizia em seu coração que ele era bom e que sentia muito até quando matava os piores criminosos.

— Aposto que a lista de vidas que você poupou e salvou encheria umas... vinte salas do tamanho dessa. — Yue tentou animá-lo, arrancando um sorriso sincero dele. — E também aposto que todos esses nomes que estão aqui mereceram o que tiveram.

— Não fala assim, não se parece contigo. — Recriminou a última frase que a ouviu proferir. Levantou, foi até Yue, afofou os cabelos dela e disse: — Nunca deixe ninguém e nenhuma circunstância apagar esse brilho que você irradia. Se o mundo vai mesmo se tornar um lugar bom um dia, essa mudança vai vir de pessoas como você. — Após aconselhá-la, andou até a porta. No meio do caminho, sem olhar para trás, a informou: — Pode usar a sala pelo tempo que for necessário, se precisar de alguma coisa, eu ainda estou no prédio.

Quando Arashi pôs a mão na maçaneta, Yue retrucou:

— Eu também tenho um pedido pra você: pare de se castigar por isso. Se você ficar se culpando e se preocupando com o que seus inimigos te forçam a fazer com eles, muitas vidas mais serão perdidas.

O ex retalhador de elite a olhou por cima do ombro. Agora se parece com você, concluiu, sorriu, girou a maçaneta para abrir a porta e se foi. A verdade era que aquele sentimento ruim não o abandonaria tão cedo. Vai ver só precisava de uma coisa que não tinha há meses: uma boa noite de sono, mas não conseguia ser otimista a ponto de achar que a teria hoje. Para hoje, só queria que aquelas malditas dores lhe dessem algumas horas de folga, ou que elas pegassem leve uma só vez.

A madrugada mergulhou o Reino de Órion numa escuridão que raras vezes se deu lá. Os guardas responsáveis pela proteção das fronteiras redobraram o estado de alerta, tinham medo de alguém passar despercebido ou de aquilo ser uma tática de algum invasor. No entanto, naquela noite, a única pessoa que planejava atravessar a fronteira sem fazer alarde disso era Kin, a líder do reino. Ela desceu devagar as escadas da casa para não acordar Haru e Naomi, saiu do quarto vestida como uma retalhadora de elite.

Na sala, para sua surpresa, se deparou com Naomi. A francesa estava sentada num banco alto de madeira e pintava algo numa tela. Muito curiosa, Kin cruzou os braços, franziu o cenho, terminou de descer as escadas e parou atrás dela. Naomi tentava copiar um jarro de flores que havia sobre a estante onde ficava a tv e não estava se saindo muito bem nisso. Isso tá horrível, pensou Kin, bastante confusa.

— Eu sei que está terrível. Pode falar. — Naomi quebrou o silêncio.

— Ah, não, não era isso que eu ia dizer! — Kin desconversou, entretanto, reconheceu: — Mas é verdade, tá terrível. Se você sabe disso, por que continua?

— Porque me ajuda a ter disciplina, paciência e desanuvia minha mente. — Se explicou. Molhou o pincel na tinta vermelha, esfregou-o na tela e continuou: — E porque me lembra aquilo no que eu não sou boa. Meus limites.

Kin deu uma risada. Cada um com suas manias, pensou.

— Vivendo e aprendendo. — Disse a loira. Revirou a bolsa que levava no ombro para ter certeza de que não esquecera-se de nada, jogou os cabelos para trás com uma mexida de cabeça e disse: — Escuta, eu vou ficar fora do reino o dia inteiro, não diz pra ninguém que você me viu sair essa hora, tá?

— Tá. Nem pro seu namorado?

— Especialmente pra ele. — Respondeu.

— Não vai se encontrar com outro retalhador de olhos bonitos, vai...?

— Minha vida só tem espaço pra um retalhador de olhos bonitos. — Kin retrucou, ajeitou a bolsa no ombro e saiu.

Normalmente ficaria nervosa e desajeitada caso qualquer outro alguém sugerisse o que Naomi sugeriu, sempre preferiu o sigilo quando o assunto era sua vida amorosa, mas com ela já se sentia confortável para falar sobre seu namoro e o modo como se sentia. Algo no jeito de ser da francesa a lembrava de Mari, não tinha certeza do quê. O que sabia ao certo era que há muito tempo não se entretinha tanto conversando com outra pessoa que não fosse Arashi.

Ainda no hospital, Mahina dormia feito um bebê. Os remédios que os médicos deram amenizaram quase que totalmente suas dores e a ajudaram a cair no sono, Kenichi, que jurou visitá-la todas as noites até ela receber alta, achou conforto nas cadeiras do outro lado do corredor, tinha permissão para adormecer ali mas não conseguiu pregar os olhos. Algo naquela data o incomodava profundamente, ele não sabia dizer a si mesmo o que era. Havia uma vibração diferente no ar.

Vinda da esquerda de sua posição, uma sombra acobertou sua figura. Ele abriu os olhos, ergueu a cabeça e olhou para lá. Kin. Quando chegou perto dele, a loira cruzou os braços e olhou para o quarto de Mahina.

— Como é que ela tá? — Perguntou.

— Melhorando. — Disse, sentando direito na cadeira. — Se continuar nesse ritmo, vai receber alta em três dias. E o Arashi?

— Faz a cirurgia hoje, por volta das quatro da tarde. — O informou, sentou-se ao lado dele e olhou para baixo. — É uma das razões pra eu vir aqui. A principal delas, na verdade. Você estava certo quando disse que estávamos desistindo dele muito fácil e que podia existir uma solução. Existe uma solução. — Afirmou, com convicção. O olhou no rosto e completou: — Eu tô saindo do reino agora pra ir atrás dela e vim saber se você vem junto.

Kenichi sorriu e olhou para o quarto de Mahina.

— Sabe que não precisa nem me perguntar... aquele filho da mãe ainda me deve uma revanche.

— Gosto de como ele pensa, Kin... — Uma terceira voz soou no local, uma que Kenichi jamais pensou que voltaria a escutar. As lâmpadas do corredor no qual eles estavam piscaram, chegaram perto de estourar, rachaduras se abriram nas paredes. — Você sabe como montar uma equipe. Deve ter herdado isso do seu pai.

Santsuki foi o autor daquelas palavras. O vilão, em seu terno negro, com sua gravata rubra como seus olhos, expunha um terrível sorriso no rosto branco como a neve. Kenichi primeiro encarou Kin incrédulo, depois partiu para cima do desgraçado, mas a primeira ministra entrou na frente e o conteve. O ruivo só ficou mais confuso. Logo compreendeu tudo e ficou frio. Então ela pretende levá-lo também, imaginou, incapaz de crer nessa constatação.

— Pedir a ajuda desse...?! Não pensei que você iria tão longe! Está pondo em risco o destino de toda a Terra!

— A situação é desesperadora! Eu não posso ficar parada vendo o Arashi perder tudo o que conquistou, abrindo mão dos sonhos dele! Não posso! — Ela bradava, nervosa. No fundo, concordava com Kenichi: foi longe demais. Mas era muito tarde para voltar atrás. Encarou Santsuki nos olhos e, tomada de um semblante sombrio, completou: — Não posso e não vou.

Kenichi abaixou a guarda. Pelo menos pareceu abaixar.

— Sabe que ele não vai te perdoar se souber que você pôs a Terra em perigo. — Achou necessário recordá-la.

— É, provavelmente não vai. — Kin concordou. — Mas vai estar vivo e com os poderes dele quando brigar comigo.

— E a Terra não está em risco. Se eu a quisesse destruída, ela já teria virado pó. — Complementou Santsuki.

— Isso é o que você pensa. — Kenichi o olhou nos olhos e rebateu. Os ânimos se esfriaram. O ruivo cruzou os braços, deu-lhes as costas e questionou Kin: — Por que esse verme nos ajudaria? O que ele pediu em troca?

Kin travou. Se contasse que prometeu dar a Santsuki a essência de Hanzuki, Kenichi não apenas não a ajudaria, iria querer entregá-la. Olhou para Santsuki como se lhe pedisse para ficar de boca fechada. Pensou por uns segundos na enrascada em que se meteu. Só de permitir, no Reino de Órion, a entrada do maior criminoso da história da galáxia, já se sujeitara a perder seu cargo e ir para a cadeia, se desse a aquele assassino a essência do último Guardião da Terra, passaria o resto de seus dias na prisão.

— Não se preocupe com isso, confie em mim. Tenho tudo sob controle. — Respondeu, apreensiva, inquieta. Ia perguntar ao vilão sobre o quarto integrante da equipe, mas ele chegou antes.

— Vamos agora ou vão esperar amanhecer? — Disse Sora Raikyuu, com uma fala impregnada de seu habitual sarcasmo. Foi graças a ele e seu poder de, com sua voz, alcançar qualquer um, em qualquer lugar, que Kin conseguiu contato com Santsuki.

— Estamos de partida, primo. Mas antes é necessário que eu explique bem o que vamos fazer. — Santsuki respondeu, depois detalhou seus objetivos: — Eu vou nos teletransportar para uma outra dimensão, uma Terra de Áries paralela a essa daqui. Lá, vamos encontrar uma outra versão do nosso querido Arashi, uma que não perdeu as habilidades, e vamos trazê-lo pra cá. Se dois retalhadores idênticos de dimensões diferentes se encontram, o mais fraco morre e o mais forte ganha os poderes dele, é por isso que vocês vão lutar contra o Arashi de lá e enfraquecê-lo o bastante para o trazermos aqui. Perguntas?

Sora ia levantar a mão, mas Kin segurou. Com a anuência de todos, Santsuki ativou a técnica e os levou para a Terra da outra dimensão. Numa primeira olhada, ninguém diria que a região onde o malfeitor os deixou abrigava vida, ela tinha o aspecto de uma cidade abandonada, com edifícios envelhecidos, muitos deles destruídos e nenhum som em parte alguma, o que mais existia ali era areia no chão. O cenário de um mundo pós-apocalíptico, de um futuro distópico. Kin ficou desconfiada, soube na hora que não era a primeira visita de Santsuki ali. O retalhador de terno tomou a frente.

O sol que brilhava era igual ao do meio-dia, o calor que fazia, poucos humanos seriam capazes de suportar.

— Onde encontramos o que queremos? — Kenichi alçou a voz e fez a pergunta que todos queriam fazer.

— Não encontramos, ele nos encontra. — Disse Santsuki. O genocida fez uma pausa, olhou para Kin e se corrigiu: — Ou melhor, ele a encontra.

A loira, confusa, andou até ele e lhe pediu que se esclarecesse:

— O que quer dizer com isso?

O assassino mais famoso da galáxia olhou para os dois lados e disse à ela o que sabia:

— Vocês estão olhando pro Reino de Órion. Aqui nessa Terra, seu namorado tem tanta predileção para o caos quanto eu, ele matou todos vocês e passou a morar aqui sozinho.

— Eu não acredito em você. — Kin não esboçou reação alguma, achava aquilo impossível. Independentemente da versão ou do universo em que morava, Arashi jamais faria algo assim.

— Devia. — Avisou Santsuki. — Não precisa, mas devia. Ele começou por você.

— Como o achamos? — Kenichi se inseriu na conversa.

— Como eu disse, ele nos achará. Ele tem como rastrear a Kin, ficará confuso quando souber que ela está viva e irá imediatamente atrás dela. Vamos andando.

Os três o seguiram sempre tomando o cuidado de irem após ele. Em certo ponto da caminhada, porém, decidiram se dividir, aceitaram a teoria de que Arashi estava tendo dificuldades para encontrar Kin devido às outras essências e energias que estavam em volta dela. A retalhadora estava com emoções conflituosas. Conseguiu esquecer o medo das consequências de dar a essência de Hanzuki para Santsuki porque precisava se concentrar no presente objetivo, por um lado, contudo, se preocupava com Sora e Kenichi, por outro, sentia-se ansiosa para ver se a história de Santsuki era verídica. Saber da existência de universos paralelos, de mundos onde a história segue rumos diferentes, fritou sua mente.


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