Os Retalhadores de Áries escrita por Haru


Capítulo 1
— O futuro da Terra de Áries




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— O futuro da Terra de Áries

Seis meses numa cama de hospital dão a uma pessoa muito tempo para refletir. Por outro lado, podem também provocar nela uma dose de aversão ao quarto em que ela passou todo esse tempo, saudade da antiga cama, das roupas que costumava vestir. Arashi, por exemplo, já não suportava mais as paredes verdes musgo daquele lugarzinho. Achava "escorregadio demais" o colchão da cama em que dormia, e aqueles malditos camisolões brancos que lhe diziam para usar já o estavam tirando do sério. Toda a dor e o cansaço físico que castigavam seu corpo não superavam sua vontade de dar o fora dali.

Para alguém que sobreviveu a uma explosão que devastou um continente inteiro, ele estava perfeito. Sem cicatrizes, sem sequelas. Nenhum de seus médicos conseguia explicar. Seu rosto conservou aquela mesma beleza adolescente de que era dotado antes do ocorrido, em sua jovem pele acastanhada não ficou um só resquício do evento. Se algo mudou nele, foi o doce ar de sabedoria que seus olhos azuis claros passaram a transmitir com um tempo. Nem a provável perda de peso que os médicos previram para ele aconteceu. Seu dia de receber alta finalmente chegou.

Sua namorada entrou no quarto trazendo a camiseta e a calça deixadas na recepção por sua irmã. Branca, loira, com longos e brilhantes cabelos loiros enrolados, ela, sim, perdeu peso nesses meses. Olhando-os rápido, qualquer um poderia dizer que era Kin, não ele, quem recebera alta naquela noite. Ela estava muito diferente daquela garota forte e determinada que ele conheceu quando tinha seis anos, e não era para menos, em apenas dezoito anos de vida, Kin sofreu mais perdas do que qualquer um que Arashi conhecia. A experiência de quase perdê-lo deve ter sido um golpe duro demais para o traumatizado coração da loira.

De mês em mês, ela surgia com uma tesoura para ajudá-lo a cortar seus lisos e negros cabelos. Os únicos momentos em que a via dar um sorriso sincero era quando estava tentando convencê-lo a cortar sempre um centímetro mais, pois, segundo ela, desse jeito ele ficava "menos gato" e diminuía a quantidade de enfermeira que, mesmo sabendo que Arashi namorava, sabendo quem o guerreiro glacial namorava e que ele só tinha dezesseis anos, falava gracinhas e dava em cima dele. Também estava louca para vê-lo ir para casa.

Arashi sentou com as pernas para fora do colchão quando Kin chegou. Ao invés de dar a calça cinza escura em sua mão, ela a jogou em cima de suas pernas. Esperou a retalhadora lhe ceder o braço para ajudá-lo a descer da cama, mas teve que fazer isso sozinho. Se a conhecia bem — e conhecia —, alguma coisa relativa a ele a irritara. Na verdade, notou que a garota estava aborrecida assim que a viu entrar no quarto. Kin comprimia os róseos lábios finos e mantinha abaixada a face oblonga de traços delicados quando estava chateada.

Ele, sem tirar o roupão branco, fechou o botão prateado da calça e pediu:

— Me fala o que foi que houve. Eu sei que você tá aborrecida, você sabe que eu sei.

A dois metros de distância, os dois ficaram cara a cara. Os olhos castanhos escuros dela se fixaram nos dele. Parando agora para pensar no que a deixou assim, viu como seu motivo era bobo. Deveria estar feliz, afinal, ele ficaria bem, estava recebendo alta. Contudo, já que deixou sua irritação transparecer, teria que falar. Pôs as mãos nos quadris, cobertos por sua blusa branca de ombros caídos, e tentou pensar nas palavras que usaria. Nada que não a faria soar como uma ciumenta insegura lhe veio em mente.

Mesmo assim, respirou fundo e falou:

— Eu ouvi a Erika falando com você pelo comunicador, e... não sei, não gostei daquela intimidade toda... Eu tenho que me preocupar, "gato"?

Ele não respondeu em alta voz, a puxou para perto e abraçou. A pergunta não precisava de resposta. Ela própria sabia que ele nunca seria capaz de traí-la, que nada, jamais, aconteceria entre os dois, então retribuiu o abraço e aninhou o rosto no ombro dele. Estavam sem se abraçar desde a explosão, por causa das fraturas nos ossos e das escoriações internas que Arashi sofreu. Nunca pensou que seria tão bom sentir de novo o calor dos braços dele. Uma felicidade imensa explodiu em seu peito. Seus olhos estavam secos graças ao tanto que ela chorou naquele tempo, então, expressou suas emoções através de risadas.

Risadas que rapidamente o contagiaram. Por ela, ficariam assim, abraçadinhos, o resto da noite, mas havia uma festa surpresa em sua casa esperando por ele, para comemorar sua saída do hospital, então precisavam ir logo. Estavam mais do que atrasados.

— Eu vou lá em baixo chamar a doutora. — Ela saiu do abraço, deu a camiseta roxa escura na mão dele e avisou.

Shiori chegou bem na hora que ele tirou o camisolão hospitalar e ficou de peito nu na frente da loira, sua reação automática foi um sorriso maldoso. Os dois enrubesceram de vergonha quando a notaram, Arashi tratou de colocar rápido a camisa.

— Foi mal, eu não quis interromper nada. — A morena se desculpou. Quem a olhava, de cara suspeitava que ela era irmã do guerreiro glacial. A textura dos cabelos, os fios negros como carvão, o tom oliva de pele, o azul claro dos olhos, quase tudo nela lembrava o garoto.

— Eu só tava vestindo a camisa, engraçadinha. — Ele retrucou, terminando de ajustar a blusa ao corpo. Depois, estendeu os braços para ela e, quando ela se aproximou, a envolveu com eles o mais forte que conseguiu.

A médica dele veio ao quarto sem que Kin descesse para chamá-la. Ela manifestou alegria por vê-lo tão bem, disse que tipo de cuidados deveriam adotar dali em diante, prescreveu alguns remédios e oficialmente deu a alta. Nos corredores, de braços dados com a irmã e a namorada, Arashi andava sob olhares de admiração e ouvia aplausos. Era um herói, afinal. Foi por seu sacrifício que foi parar ali, como consequência dele, salvou milhões de vidas no Reino de Órion. Só lamentava não ter salvo o reino da destruição.

Yue recebeu de Kin a tarefa de organizar a festa. Ela arrastou o sofá para o canto direito da sala de estar, pôs um letreiro colorido com os dizeres "bem-vindo de volta" no meio do teto, posicionou o bolo na mesa bege de madeira. Coube à Naomi e Haru convidarem os nomes presentes na lista da loira, quase todos os que se disseram disponíveis já estavam ali. O jovem primeiro ministro do Reino de Órion, Hayate, foi quem, em pouco mais de uma hora, fez o bolo. Só restava esperar a chegada do casal.

Naomi olhava ao redor e conferia se tudo estava no lugar. Seus olhos, castanhos escuros como seus longos cabelos lisos, passeavam pela mobília, iam de uma ponta a outra da sala. Vestia uma camiseta azul clara de alcinhas, uma bermuda cinza escura de seda e um par de chinelos de dedo brancos. Apesar de ser noite, o clima era de muito calor e os ventiladores foram desligados, Arashi tinha uma audição extraordinária, se escutasse algum som na casa, ele desconfiaria e o plano de surpreendê-lo escoaria pelo ralo.

Haru descia as escadas com Yue. O ruivo de cabelos espetados, irmão mais novo de Kin, passou algumas horas dormindo, pois ficou a tarde toda carregando e arrastando peso, ajudando a reconstruir o Reino de Órion. Se espreguiçou, bocejou, desamarrotou a camiseta negra de capuz que usava e guardou as mãos nos bolsos da bermuda verde musgo. Estava quebrado, mas, por sua irmã, se levantou. Não foi nem tanto por Arashi. Sim, gostava dele, o tinha como um amigo, mas quem realmente precisava daquela comemoração era Kin.

— Naomi, quantos dos retalhadores da equipe de elite vão vir? — Yue pôs os clips nos cabelos curtos, lisos, azuis claros e perguntou. Sua pele era clara como uma flor de crisântemo, seus olhos, violeta claros, exalavam pureza.

— Acho que só a Mahina e o Kenichi, os outros saíram do reino em missão, talvez o Gray chegue a tempo. — Respondeu a francesa. Viu que a amiga estava tendo dificuldades com os clips, Yue gostava de prender acima da orelha os cabelos do lado esquerdo da cabeça e, para as roupas, apostava em cores fortes, como o roxo da camiseta com mangas curtas que vestia agora e o azul escuro da saia jeans. Alguém bateu na porta. — Deve ser eles.

O irmão menor de Kin correu para atender. Um ruivo que ao garoto muito se assemelhava fisicamente, embora fosse mais alto, mais velho e mal encarado, aguardava atrás da porta. Ao lado dele, havia uma garota de aspecto gentil, compleição robusta e cabelos castanhos claros amarrados para trás, que ao ver Haru, como sempre, apertou as bochechas dele. O menino fez a mesma cara de raiva das vezes anteriores. Odiava essa mania de Mahina. Kenichi o ignorou completamente, ajeitou nas costas o grande montante que carregava e olhou a sala.

Quando viu o letreiro escrito "Bem-vindo de volta", ficou confuso. O bolo respondeu suas perguntas.

— Uma festa? Mahina, você me disse que isso seria uma reunião! — Reclamou.

— E festas não são reuniões? — Ela falaciosamente retrucou.

Ele ia redarguir, mas Yue apagou as luzes e mandou todos se abaixarem, Kin, Arashi e Shiori estavam chegando. A retalhadora loira colocou a chave na fechadura. Quando a porta se abriu, Yue religou a luz da sala e, fora Kenichi, todos pularam juntos gritando "bem-vindo de volta". Kin e o homenageado agradeceram a todos pela presença. O resto da festa foi conversa, jogos, brincadeiras, comes e bebes, danças, cantorias, Kin estava tão feliz que inspirava o namorado e os outros convidados.

Num certo ponto da noite, todos se espalharam pela casa e a loirinha ficou sentada solitária numa cadeira, de costas para a cozinha. Havia um porta-retratos nas mãos dela, a foto presente nele foi a última que tiraram com Mari, uma em que estava de mãos dadas com Arashi. A moça, logo atrás do casal, apertava suas bochechas. Reforçava na mente as boas memórias que tinha com ela porque ainda doía profundamente tê-la perdido. Seu namorado chegou devagar, a abraçou por trás e deu um demorado beijo carinhoso em sua bochecha.

Ao ver a fotografia, Arashi suspirou de bem leve com tristeza. Ainda era difícil acreditar no que aconteceu com ela. A reação de Kenichi à notícia foi curiosa. Quando contou, Arashi achou que ele não daria a mínima, mas o ruivo brigão ficou visivelmente afetado, se retirou sem dizer nada e sumiu por três dias. O guerreiro glacial acreditava que sabia a razão disso. O retalhador encrenqueiro cresceu oprimido pela mãe, e porque se recusava a praticar crimes por ela, vivia ouvindo que era um covarde, assim, prezou a coragem para além de tudo e internalizou que só retalhadores eram capazes de atos de bravura como o de Mari. Quando soube que uma humana se doou daquela forma, uma parte de seu dogma ruiu — justamente aquela em que estava alicerçada a sua personalidade. Kenichi estava em processo de reconstrução, numa fase que determinaria para sempre o homem que ele seria.

Aspirou o doce perfume dos cachos dourados de sua companheira. Queria dizer algo para quebrar a tensão, o silêncio, então puxou assunto:

— Ela estaria orgulhosa de nós.

Kin deu uma risada e discordou:

— Ela odiaria saber que você se sacrificou. Teria te feito uma ameaça tão assustadora que você ficaria azul de medo.

Arashi sorriu. Não discordava, aquilo condizia perfeitamente com Mari.

— Tem razão. — Disse, somente. Arrastou um banco, sentou na frente da parceira e continuou: — Você era como uma filha pra Mari. Ela teria me matado pelo que eu fiz você passar nesses meses.

— Ela também te amava. Muito. — O contrariou. Lembranças a visitaram, então prosseguiu: — Nossa, você não tem ideia do quanto! Sempre que eu ficava com raiva de você, ela te defendia. Pra ela, eu era sempre a errada!

O ouvinte deu de ombros, segurou suas mãos e disse algo que ela não pensara:

— Acho que conquistei esse amor dela porque ela via o quanto eu te fazia feliz. Me defender era o jeito dela de demonstrar gratidão.

A jovem líder da equipe dos retalhadores de elite deu uma risada, deixou uma lágrima escapar e abraçou o porta-retratos. Seu acompanhante enxugou seu rosto com o polegar. Ia dizer mais, mas das escadas, aturdido, Haru os interrompeu:

— O Hayate disse pra vocês que ia pra algum lugar? Ele sumiu há horas, eu já procurei pela casa inteira, usei meu poder pra ver se ele tá em algum canto do reino, mas não o achei...

O casal trocou olhares. Ambos notaram que o primeiro ministro agiu estranho a noite inteira. Concordaram, na verdade, que ele agiu estranho os seis meses anteriores inteiros. Uma vez, ele disse a Kin que havia visto Mari, conversado com ela e que a veria de novo em breve, Kin ficou calada por vários segundos, disse que a "brincadeira" não tinha graça, o ministro insistiu, a retalhadora chorou, ele se desculpou e se retirou. Os dois nunca mais mencionaram o ocorrido.

Somente contou a Arashi sobre isso. O guerreiro glacial acrescentou que, antes de simplesmente sumir sem deixar rastros, Azin disse coisas parecidas sobre amigos falecidos, mas já que meses se passaram e nada aconteceu com Hayate, eles esqueceram, pararam de especular. Agora estavam realmente preocupados.

— Não, ele não nos disse nada. — Respondeu Kin.

Arashi levantou do banco e cruzou os braços.

— Perguntou sobre ele aos outros? — Indagou. Seus olhos azuis assumiram um tom mais sério.

— Perguntei, ninguém tem nem ideia de onde ele foi parar. — Jurou.

Alguém bateu na porta. Esperando que fosse o primeiro ministro, Arashi correu para abri-la, mas o que viu o surpreendeu do jeito mais positivo possível. Todo o Corpo Policial Leste do Reino de Órion se reuniu na porta de Kin para, com lamparinas acesas, demonstrar gratidão pelo gesto de Arashi, até os retalhadores de elite que não vieram para a festa estavam entre eles. Segundo se contava, aquela era uma honra que apenas os verdadeiros heróis recebiam. Kin e Haru estranharam a falta de reação do amigo, correram para saber do que se tratava e também ficaram estupefatos. A preocupação que tomava seus rostos outrora sumiu. Não demorou muito para que os demais presentes na casa se juntassem aos três.

Yue abraçou Arashi, encostou o rosto em seu ombro. No tempo que ele passou no hospital, ficaram tão próximos que passaram a se tratar como irmãos. Haru, orgulhoso, bagunçou os cabelos negros do cunhado com as mãos. Kin segurou seu braço livre, Mahina acenou para a multidão, Kenichi cruzou os braços e liberou um meio sorriso, Naomi puxou com Shiori uma salva de palmas que rapidamente se estendeu entre os que nada levavam nas mãos.


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