Hölle escrita por Dev Lish


Capítulo 3
Midding


Notas iniciais do capítulo

Midding
Verbo Intransitivo. a sensação de tranquilidade de estar perto de uma aglomeração sem participar dela.
Sugestão de música: Marisa Pecadora - Ready for Minha X*ta



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As folhas caídas da árvore formam uma almofada um tanto quanto confortável no chão do quintal de Dana. O frio e o chão duro não fazem diferença para mim, mas eu gosto da fantasia de civilidade. O anoitecer que cai lança sombras suaves na grama. A Lua cheia brilha exatamente como ontem, quem mudou fui eu. Bom, nem tanto. Ainda sinto vontade de desenhar cada fio de grama, a luz suave que atravessa a cortina da casa, Dana puxando a cortina para checar se ainda estou onde ele me deixou.

 E é lá que ele me encontra, sentado com as pernas cruzadas em cima das folhas. Parado sob a luz da varanda, ele me encara como se não acreditasse que estou ali.

— Eu achei que tivesse pedido para você se retirar. 

Suas palavras formais me fazem sorrir. 

— Eu não tenho pra onde ir. Acho que você vai ter que me dar abrigo por hoje.

Vejo uma veia em sua mandíbula saltar quando ele cerra os dentes. Queria estar dentro de sua cabeça para ver o que ele está pensando, contudo, a partir de seu rosto posso ter uma boa ideia. Ele olha pra cima como se estivesse esperando algo cair do céu, coloca as mãos dentro do bolso do moletom, olha pra porta da varanda e pra mim, e finalmente gesticula o que eu imagino ser um convite pra entrar. Eu não sou um vampiro, não preciso ser convidado para entrar em casas, mas é mais satisfatório dessa forma. 

— Depois de você.

A cozinha da casa de Dana é.… moderna, para dizer o mínimo. Todos os utensílios são de aço inox, ao invés de uma mesa, uma ilha de mármore branca divide a cozinha ao meio, e o próprio Dana, todo moletom e calça jeans, parece tão deslocado quanto eu, encostado na ilha com as mãos no bolso. 

É um pouco mais fácil falar com ele quando ele não me olha nos olhos com sua expressão perdida, então tomo a iniciativa de iniciar a conversa, olhando para tudo menos seu rosto.

— Eu não estava brincando quando disse que sou um demônio.

— Eu sei que você não é humano. Eu te vi atravessar três pessoas no corredor da escola. Mas um demônio? Prove. – Dana diz olhando para o chão de madeira clara. 

— Provar? – As palavras de Astarte me vem à cabeça, contudo, não tenho razão para esconder meu selo de Dana, visto que nós já estamos presos um ao outro. Ergo a mão com o dorso virado para ele e com a outra aponto para o seu nome entre os outros símbolos. 

— Isso pode ser uma tatuagem – Ele diz, mas seu cenho franzido conta uma história diferente.

— Então, Dana, você convida todos os estranhos com tatuagens do seu nome a entrarem na sua casa?

Respondo, casualmente passando por ele e indo em direção ao corredor. Para a minha surpresa, Dana é mais rápido. Em um segundo ele está entre mim e o resto da casa, as mãos trêmulas erguidas a sua frente, mas sem me tocar. 

— Eu não disse que você poderia entrar.  

— Não é como se você pudesse me impedir. 

Ele levanta o rosto e me encara sob seus cílios claros para depositar a força de seu… de seu o que? Ódio? Não, a irritação é diluída com um pouco de curiosidade e, ele pode se erguer na ponta dos seus pés e não seria capaz de me ver olho a olho sem olhar para cima. Em nenhuma vida Dana poderia me intimidar.

Mas ainda assim, A essa distância, com a curva petulante em seu queixo tão protuberante, é crível que ele irá me expulsar com nada mais do que um empurrão. Não é isso que eu quero, na verdade, eu não sei o que quero.  Mas eu poderia fazer um estudo de expressões com as caras e bocas que ele tem feito nos últimos 30 segundos. 

— Era brincadeira. 

Quando nem sua pose, nem seu semblante suavizam suspiro dramaticamente. 

— Eu não sou esse tipo de demônio. Eu não posso fazer nada que você não permita.

Essas palavras parecem fazer algum efeito. Lentamente Dana recolhe suas mãos, todavia seus olhos não deixam meu rosto.

— Porque é tão vermelho? – Ele diz, retornando a sua expressão incrédula. 

— O que? 

— Seus olhos. 

Confuso com sua constatação não tão óbvia, me dou conta que nem uma vez desde que voltei me olhei no espelho.  Não posso acreditar que minha íris está semelhante as de Lilith ou Lúcifer, o pensamento alone me faz espelhar o ceticismo de Dana. Ando até a geladeira e na superfície reflexiva do inox, vejo o mesmo vermelho incandescente dos olhos de Lúcifer.

— São pra te ver melhor.– Murmuro distraidamente.

— Você não sabia?

— Sinceramente, eu não havia notado – Respondo ainda me olhando na geladeira. 

— Há quanto tempo você é um demônio mesmo? – Dana pergunta inerte da entrada do corredor, sua voz recuperando a apatia usual.

— Algumas horas.

Ele bufa. Ele revira os olhos e bufa.

— O que mais? Você vai dizer que eu sou a primeira pessoa que você assombra?— Dana resmunga sarcasticamente antes de decidir que não se importa comigo perambulando em sua casa. Balançando a cabeça, ele caminha até a sala e imagino que essa seja a minha deixa para segui-lo. 

Passamos por três portas brancas e lisas no corredor. As paredes são brancas e lisas e o chão também. Me sinto dentro de um cubo de porcelanato. Na sala, grande surpresa, um toque de cor. Dois sofás pretos e uma mesa de centro de vidro. Até a televisão na parede é branca. 

 Quando Dana se senta no chão e espalha seus materiais em cima da mesa de vidro, a cena poderia estar em um catálogo de móveis.

Ainda que deslocado, Dana parece acostumado a impessoalidade do lugar. Ele se debruça sobre o caderno, no qual ele não fez sequer uma anotação durante as aulas, se debruça sobre a mesa de centro e começa a escrever em uma velocidade impressionante. Sem ter muito o que fazer além de observá-lo, sento-me do lado oposto da mesa e encaro sua caligrafia.

— Isso não é medonho, com certeza.

Ele murmura sem erguer o olhar da página. Assisti-lo escrever me faz querer desenhar, um passatempo que tenho desde que me lembro de como segurar um lápis. Se tivesse uma folha de papel desenharia Dana sentado no chão da sala imaculada, cabelo caindo sobre os olhos e tudo. Como não tenho, tudo que posso fazer é traçar círculos com a ponta dos dedos no tapete. 

O silêncio não é exatamente desconfortável, é o que penso, Dana parece ter outra opinião.

˗ Então... demônio?

— Sim, humano?

— Você não tem mais o que fazer? Portas pra bater ou copos pra quebrar?

— Não exatamente. 

Isso parece matar a conversa. Dana não fala nada pelos próximos minutos ou horas, eu não tenho uma boa noção de tempo para dizer com certeza. Finalmente, ele guarda suas coisas na mochila e se encosta no sofá oposto. Seu semblante é neutro e sua voz é baixa.

— Você precisa ficar o tempo todo perto de mim?

— Sim, eu preciso. – Respondo, uma verdade parcial.  Eu preciso estar o tempo todo com ele, mas isso não quer dizer que eu preciso estar visível ou interagindo, estar no mesmo plano é o suficiente, segundo Astarte. Pelo menos enquanto ele não abrir sua consciência para mim, tenho que estar relativamente perto.

— E se eu, sei lá, chamar um padre e te exorcizar? 

— Um exorcismo implica uma possessão, e até o presente momento eu existo apenas dentro de mim mesmo, mas obrigada pela preocupação. 

— Show – Ele responde levantando do chão. Apaga a luz ao sair da sala e vai até uma das portas do corredor. Continuo sentado observando seus movimentos, ele para com a mão na maçaneta e se vira para mim. – Você pode dormir no sofá.

Com isso, ele fecha a porta e escuto o distinto barulho de uma chave virando na fechadura. É até fofo ele pensar que uma porta trancada poderia me parar se eu quisesse entrar, o que eu quero e vou fazer assim que ele dormir. Preciso visitar seu subconsciente através de sonhos, e sinto que seria apropriado fazê-lo o olhando dormir. Segundo Astarte, assim que ele dormir, automaticamente irei sentir algo como um puxão, e devo me deixar levar. O que me resta agora é esperar. 

Ainda com minha percepção torpe de tempo, sei que um bom tempo já se passou. Para mim, ficar no escuro sentado por horas não é exatamente uma novidade, tampouco é desagradável, mas minha paciência já está no limite. Faço o mesmo caminho que Dana, fico parado na frente de sua porta por alguns segundos. Pervado, penso com convicção, como Astarte mandou, e atravesso a porta. 

Não sei o que esperava do quarto de Dana, mas como o resto da casa, é minimalista. As paredes são brancas, ao invés de um guarda-roupa há um cabideiro na parede, no peitoril da janela um cacto solitário é iluminado pela luz que atravessa a cortina branca, um criado mudo serve de estante, um tapete ao lado da cama no centro do quarto e Dana deitado sob o edredom, os braços cruzados sobre o peito e o olhar fixo no teto. 

No momento em que o vejo, quero pensar em outra palavra de ativação que me foi ensinada, caecus, desaparecer. Ele parece tão vulnerável, seria um crime perturbá-lo agora, penso distraidamente, ainda imóvel na frente da porta. Um peso se instala em meu estomago, lembro de ter pensado exatamente a mesma coisa a apenas um dia atrás vendo minha mãe dormir em sua cama, e se eu não a poupei, Dana também não será poupado. 

Observação, observação, lembro a mim mesmo. Por enquanto, estou aqui apenas para observar e experimentar com o que eu aprendi, o que a Demônio me ensinou.   

— Você é que tipo de demônio, se escondendo nas sombras como um rato?

— Ei, eu não estou escondido. – Replico cruzando os braços sobre o peito — O Diabo em pessoa ofereceu você pra mim – Sussurro audivelmente, esperando que isso o afete de alguma forma. Me incomoda que ele tenha sentido minha presença, o que é irracional, mas não me impede de ficar irritado.

— Eu sinto muito por você.... Que ele não tenha lhe colocado com uma pessoa melhor.

Uma resposta debochada está se formando na ponta da minha língua, até a percepção de que ele não foi irônico ou sarcástico me atingir. Ou ele está dizendo que é tão pentelho que nenhuma entidade deveria ser condenada a estar com ele, ou ele realmente acha que não merece nem ser assombrado por um demônio (Adolescente, imbecil, mas ainda um demônio).

Ficamos em um silêncio contemplativo, não exatamente desconfortável, apenas estranho, parece que nossa convivência vai ser cheia desses. 

— Eu não estava conseguindo dormir sabendo que você poderia estar vagando pela casa – Ele diz indiferente. 

— Eu estou aqui agora, pode dormir em paz – Falo sem deboche ou escarnio, me deixando deslizar pela porta até estar com as pernas cruzadas no chão. Para ser sincero, quero que ele durma, quero saber como é estar dentro da cabeça de outra pessoa.

Eu não estava esperando que ele me levasse a sério. Para meu assombro, testemunho sua respiração se tornar regular e profunda, suas mãos relaxarem sobre seu colo. Ele adormece ao mesmo tempo em que sinto minha consciência deslizar para fora do meu alcance, minhas pálpebras ficam cada vez mais pesadas. Minha visão é obscurecida, e então, na próxima piscada eu sei que não estou mais acordado. O que exatamente eu deveria estar vendo, não sei. 

Uma espiral de cores varre a escuridão, dando dimensão ao que era apenas uma tela obscura. 

No sonho, uma mulher está sentada no chão macio de uma clareira, cantando enquanto duas crianças pequenas, um garoto e uma garota, dançam em círculos sob a luz do sol.  

— Brüderlein, komm tanz mit mir, Beide Hände reich ich dir – Ela canta suavemente em uma voz doce, as palavras em uma língua estrangeira – Einmal hin, einmal her, rundherum, das ist nicht schwer – Eu não entendo uma palavra do que ela diz, mas as crianças o fazem pois mudam de direção no círculo. 

Por que Dana estaria sonhando com isso? Ele estava lendo João e Maria antes de dormir? A mulher contínua a cantar e eles a dançar em círculos. Seu rosto é familiar, mas não consigo apontar de onde. 

A garotinha pula em sua frente. Ela sorri e algo clica em meu cérebro. Ela se parece com Dana, um pouco mais velha e miserável. Enquanto eu prestava atenção nela, outra figura surge no cenário. Um homem ri e bate palmas como se estivesse lá desde o começo.

Quando o garoto se joga no colo da mulher, reconheço imediatamente os traços herdados deles, apesar do rosto infantil. Os olhos escuros, o nariz e o queixo com a curva levemente arrebitada, a covinha que se forma quando seu sorriso é largo o suficiente – que provavelmente não verei fora de um sonho, são cópias exatas do homem; O cabelo loiro e a pele pálida, traços compartilhados com a garota mais velha que eu deduzo ser sua irmã, são provenientes da mulher.

Essa é a família de Dana em uma fantasia perfeita que seu subconsciente criou.

Me agacho na grama e assisto a reunião familiar. A conversa, os risos, a brincadeira, tudo revira meu estômago. Silêncio, quero pedir, a minha mãe precisa dormir. Chego a abrir a boca antes de lembrar que há menos de um dia eu a matei. 

Eles não precisam fazer silêncio.

Fcho os olhos e, mesmo com as pálpebras cerradas, consigo ver o sonho claramente em minha cabeça. Primeiro, testo minha influência em relação ao ambiente, algo pequeno que não tire a atenção da família. Visualizo a grama em um tom azulado, com flores brancas brotando por todo o encalço da clareira. Ainda que eu esteja esperando, não consigo evitar o sorriso ao abrir os olhos e ver a exata imagem de minha mente. 

Ah, isso pode ser interessante.


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Notas finais do capítulo

De 1 a 10 o quanto eu não deveria ter desenhado os personagens de uma história que ninguém lê?
A RESPOSTA É 10 SACA SÓ: clica no tracinho aí em cima

sou burra tive que repostar



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