(s)he escrita por prongs


Capítulo 1
U: my body is a cage


Notas iniciais do capítulo

Olá queridos e queridas e anyone inbetween!! É com muuuuuuuuuuuito orgulho e alegria que eu estou aqui abrindo o PRIDE MONTH HP 2020!!!! Esse projeto lindo vai deixar a tag de Harry Potter mais colorida esse mês e eu não poderia estar mais animada pra todas as histórias que ele vai trazer.
Essa fic é um pouquinho da história da Lysander Scamander. Ela é recheada de amor e esforço, e se alguém se sentir ofendido por algo que escrevi, por favor podem me contatar e me educar mais sobre o assunto. Eu conversei com amigos trans e nb e tentei deixar a experiência dela o mais real possível num mundo mágico e na casa dos Lovegood-Scamander. Essa é uma história feliz, prometo! Recomendo que vocês escutem a playlist pra ela que coloquei nas notas da história enquanto leem, tem muitas referências às letras das músicas.
Ah, e essa história também é uma forma de mini protesto à famigerada autora transfóbica que não deve ser nomeada. Essa história e seus personagens são algo MUITO maior que ela. Aproveitem! ❤️



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Lysander sempre achou sua mãe linda. Observava seus cabelos loiros e longos cobertos em flores sempre que eles brincavam em seu quintal, suas mãos delicadas eram suaves e bonitas e ela sempre cheirava a hortelã-pimenta e amor. Lysander sempre gostou de usar as roupas dela e de andar pela casa com os saltos coloridos de Luna, além de sempre usar os perfumes dela.

Lysander se recusou a cortar seus cabelos loiros pela primeira vez com quatro anos, quando eles já batiam em seus ombros. Seu pai, Rolf, lhe perguntou por que, e a criança apenas respondeu que não queria, pois gostava de seus cabelos daquele tamanho. Seu pai assentiu, disse que lhe amava daqui até a lua, como sempre fazia, e abaixou a tesoura. Queria ter os mesmos cabelos da mãe, era a verdade. Deixou seus cabelos crescerem até o meio de suas costas, e não tinha vontade de cortá-los.

Com nove anos, o que mais gostava era de brincar com Lorcan, seu irmão gêmeo. Gostava de correr pelo quintal com ele brincando de faz-de-conta, de fazer festas de chá da tarde e de confeccionar brincos e pulseiras com as ameixas dirigíveis de seu jardim. Gostava de usar roupas coloridas, saias de tule, de amarrar os cabelos em tranças ou rabos de cavalo — era mais fácil brincar daquele jeito, sem que eles ficassem batendo em seu rosto.

Aos onze anos, recebeu sua carta de Hogwarts. Não conseguiu evitar que o nervosismo invadisse e dominasse seu corpo. Sentia que suas pernas e braços estavam paralisados só de pensar em ir para a escola com várias outras crianças, que provavelmente tinham tendências de ser maldosas; sabia que elas eram assim. Mas não sabia por que estava com tanto medo. Bem… no fundo, sabia. Sabia que não ia mais poder usar as roupas que queria do jeito que queria ou as pessoas iriam lhe jogar olhares tortos. Era sempre assim quando não estava em casa. Já tinha se acostumado. Toda vez que saíam para o Beco Diagonal ou para Hogsmeade era assim, e não tinha a mesma capacidade de seus pais de ignorar o julgamento alheio.

Então cortou seus cabelos sem a ajuda de ninguém uma semana antes das aulas começarem.

— Eu gostava mais de como era antes — Lorcan se aprontou a lhe dizer, fazendo uma careta. Seu irmão era muito sincero.

Lysander agradeceu quietamente. Também gostava mais de como era antes, mas as outras pessoas não.

Com doze anos, seu corpo começou a mudar. Não gostava nada daquilo. Seus ombros estavam largos demais, assim como sua cintura. Havia cabelo por toda parte, inclusive em seu rosto, e era tão desconfortável ter que lidar com aquilo. Procurou Lily, sua melhor amiga, e implorou por ajuda com uma poção ou feitiço ou qualquer coisa que fizesse todo aquele cabelo ir embora. Mentiu, dizendo que fazia seu corpo coçar. Ela falou com alguém que falou com alguém e, duas semanas depois, apareceu com um tônico para Lysander. Disse que ele deveria ser utilizado diariamente no rosto, uma vez por dia, e tudo ficaria bem. Lysander quis chorar de gratidão por Lily.

Com treze anos, Lysander deixou o cabelo crescer até um pouco acima dos ombros e conheceu Saoirse Thomas-Finnigan e seu irmão gêmeo, Ronan. Saoirse era linda. Seus olhos eram delicados, seu cabelo era longo e macio, suas mãos eram rápidas e sua risada era doce. Ela cheirava a capim-limão e sono e seus lábios provavelmente tinham gosto de suco de maçã e pêssego, e Lysander gostava de olhar para ela.

— Você gosta da Saoirse? — Lorcan lhe perguntou um dia quando os dois estavam na mesa da Corvinal no Salão Principal sem muitas pessoas ao redor.

— Quê? Não — Lysander fez uma careta enquanto engolia seu doce.

— Você olha pra ela bastante. Só queria saber — Ele engoliu seu pedaço de frango de uma vez e Lysander balançou a cabeça.

— Não gosto dela. Não assim. Mas ela é legal e bonita. — Lysander achou importante enfatizar.

— Entendi. Seu cabelo tá bonito, gosto dele mais longo assim — Lorcan pontuou e se levantou, indo embora e deixando um sorriso no rosto de Lysander.

Não, Lysander definitivamente não gostava de Saoirse. Achava ela perfeita, era verdade; seus lábios, seus ombros, seu cabelo, sua voz. Mas não gostava dela, não daquele jeito. Pelo contrário; seu estômago revirava quando via seu irmão gêmeo, Ronan. O sorriso dele fazia sua pele se arrepiar e queria mais que tudo descobrir o gosto dos lábios dele.

— Eu gosto do Ronan — Contou para Lorcan algumas noites depois, no dormitório da Corvinal, enquanto se arrumavam para dormir. Ele olhou para Lysander e sorriu.

— Ah, legal. Faz sentido. Ele é bonito também.

Lorcan deu de ombros, não fez nenhuma pergunta, e Lysander quis abraçá-lo até que os dois estivessem adormecidos, como faziam antigamente. 

Mas Ronan não olhava para Lysander daquele jeito. Nunca olhou. Ele era seu amigo, aproveitava sua companhia, os dois riam juntos e Lysander queria mais que tudo segurar a mão do garoto e descobrir o que ele gostava de fazer quando estava sozinho. Queria ser a pessoa a provocar a risada tímida dele e sentir as mãos dele nas suas enquanto andavam pelos corredores do castelo. 

Claro que seu coração ficou partido ao descobrir que ele, na verdade, tinha uma queda por Lily Luna, aos catorze anos. E Lysander não conseguia deixar de observá-la e se perguntar por que não podia ser mais como ela. O perfume de Lily cheirava a chiclete e pêssego, e seus olhos castanhos, grandes e divertidos eram irresistíveis, assim como seus lábios, sempre vermelhos, combinando com seus cabelos longos e laranjas. Ela irradiava a cor amarelo, luz e risadas leves. Lysander sentia que nunca poderia competir com ela, então se contentava com o silêncio e o desejo de poder ser como ela.

Naquele mesmo ano, deixou que os cabelos crescessem para abaixo de seus ombros, mas sempre os usava amarrados num rabo de cavalo quando não estava em casa. Não se sentia confortável o suficiente para soltá-los fora das paredes confortáveis de seu lar. Também pediu para os pais, um tanto irritadamente, que não lhe perguntassem mais sobre namoradas num dos jantares com a família na época do natal.

— Desculpe, meu bem — Luna falou, com sua voz etérea e reconfortante de sempre. — Você não quer que a gente pergunte sobre nenhum tipo de namorada ou... namorado?

As bochechas de Lysander coraram.

— Pode perguntar sobre namorados, eu acho — Murmurou sem olhar para ninguém e beliscando o brócolis em seu prato.

— Então — Rolf começou, de boca cheia. — E os namoradinhos?

Pai! — Lysander exclamou e todos os seus familiares caíram na risada.

Não conseguiu ignorar a sensação quente e confortável que crescia em seu peito naquele momento. Realmente amava muito sua família e o apoio que recebia deles, sabia da sorte que tinha por ter crescido numa casa como aquela, mas esse fato não diminuía seus medos e inseguranças tanto assim. Antes de fazer quinze anos, Lysander saiu com alguns garotos (sempre com a ajuda dos dotes de cupido de Lily), beijou-os e, por Merlin, era tudo o que havia imaginado e mais, mas algo ainda parecia errado. Sabia disso.

Não gostava do que via quando se olhava no espelho. Se sentia como uma pessoa intrusa na pele de outro qualquer. Não gostava de suas mãos e pés grandes demais, de seus ombros que não paravam de crescer, de sua voz grossa, de seu maxilar definido e nem se atrevia a olhar para seu reflexo sem roupas para que não começasse a chorar. Não gostava daquele corpo, mas era mais que uma questão de auto-estima, Lysander sabia disso. Aquele não era o corpo que lhe pertencia, não era o corpo ao qual ela pertencia.

Aos quinze anos, experimentou muitas coisas. Pegou alguns itens de maquiagem de Roxanne escondidos no meio do verão enquanto estava n’A Toca, e durante a noite aplicou-os em seu rosto cuidadosamente enquanto todos os outros dormiam. Brincou com as cores, formas e desenhos por horas; soltou os cabelos e se olhou no espelho com um sorriso mínimo. Se sentia bem. Na noite seguinte, provou alguns vestidos de Rose (os de Lily eram pequenos demais), e se sentiu confortável e feliz enquanto rodava na frente do espelho, observando o tecido voar ao seu redor.

Naquelas mesmas férias, sentou-se com Louis Weasley debaixo de uma das macieiras do pomar no quintal da casa numa tarde quente de julho, e os dois conversaram e riram por horas enquanto ouviam os primos Weasley correrem pelo meio das árvores e sentiam o suor escorrendo pelos seus rostos, o cheiro inebriante e abafado das maçãs passeando pelo ar. Conhecia ele há muito tempo; sabia que ele era um ano mais novo e que também estava na Corvinal. Às vezes conversava com ele na Sala Comunal ou na hora das refeições, mas nada além disso; não sabia que Louis era uma companhia tão boa e fácil, ou que sua risada era tão doce, muito menos que seus olhos eram tão gentis, mas Lysander não podia arriscar permitir que seu peito esquentasse ou que seu estômago revirasse ao ver as madeixas loiras do garoto.

Com dezesseis anos, percebeu que não poderia continuar vivendo como estava por muito mais tempo. Começou a usar os cabelos soltos na escola, o que lhe rendeu muitos elogios (principalmente de Lorcan e, surpreendentemente, de Louis, de quem tinha se aproximado bastante desde as férias) e, vez ou outra, se aventurava a fazer desenhos em seus olhos com maquiagem para ir para a aula. Se sentia tão mais confortável daquele jeito, mas se havia uma coisa que fazia Lysander morrer por dentro era o fato que ainda estava mentindo para seu irmão gêmeo. Eles não guardavam segredos entre si, nunca. Isso não poderia continuar, e o pensamento estava lhe consumindo todos os dias e noites.

— Lorcan? — Chamou o irmão suavemente numa de suas muitas madrugadas em claro daquele ano.

— Lysander? — Ele respondeu quase que imediatamente. Lorcan dormia como uma pedra, menos quando Lysander precisava dele.

Levantou-se da própria cama e se sentou na cama do gêmeo. Suas mãos tremiam, e os olhos de Lorcan encontraram os seus com gentileza e sono.

— Lorcan. — Repetiu, tentando fazer as palavras saírem de seu peito. Mordia seus lábios como se quisesse arrancá-los de sua pele e sentia o suor em suas mãos e nas suas costas. — Lorcan, eu… acho que sou uma garota.

Seu irmão se sentou na cama, o sono imediatamente deixando seu olhar, e olhou para Lysander com seriedade.

— Você acha?

Ele conhecia Lysander como ninguém. É claro que ele sabia. Fechou os olhos e suspirou.

— Eu sei que sou uma garota.

Lorcan segurou sua mão.

— Mais alguém sabe?

Lysander balançou a cabeça em negação. Lorcan abraçou ela.

— Beleza, maninha. Eu te amo.

Ela chorou nos braços do irmão gêmeo até dormir junto dele, como eles faziam anos atrás. As coisas na escola ficaram mais fáceis depois que Lorcan soube; ele tomava conta dela sutilmente e parecia estar mais presente que o normal. Lysander não poderia agradecer nem amá-lo mais do que durante a vez que alguém passou pelo corredor e murmurou “viadinho” em sua direção e Lorcan não pensou duas vezes antes de socá-lo no rosto imediatamente. Lorcan não costumava ser uma pessoa violenta, mas também jogou outro garoto grifinório no chão e chutou suas costelas quando ele abordou Lysander e começou a xingá-la com insultos homofóbicos e transfóbicos sem hesitação. As duas situações haviam lhe rendido belas detenções, mas ele não se arrependeu em nenhum momento.

No primeiro dia de verão daquele mesmo ano, Lysander saiu até o jardim e encontrou sua mãe cuidando das artemísias que tanto amava. Observou sua saia, enorme e colorida, e seu cabelo coberto de flores voando em seu rosto quando o vento batia neles. Sentiu o cheiro de margaridas que saía deles. Respirou fundo e chamou-a, quietamente.

— Mãe? Posso falar com você?

Luna se virou para Lysander com um de seus característicos sorrisos doces.

— Claro — Aproximou-se e passou uma das mãos pelos cabelos de Lysander, que já passavam de seu ombro e estavam soltos naquele momento. — Fale comigo.

Lysander mordeu o lábio inferior e podia sentir as lágrimas invadindo seus olhos. Ficou alguns segundos em silêncio.

— Eu… eu sou uma garota. — Disse com simplicidade. Nunca teve jeito com as palavras. — Tudo bem?

Luna piscou seus grandes olhos azuis e sorriu.

— Claro, filha. Claro que sim. — Ficou em silêncio por alguns segundos e foi o suficiente para que um soluço escapasse pela garganta de Lysander. Luna a envolveu num abraço apertado.

— E você ainda me ama? — Lysander sussurrou.

A mãe dela se afastou, segurando seu rosto com ambas as mãos e olhando em seus olhos.

— É claro que sim, meu amor. Eu sou sua mãe e sempre vou ser, do mesmo jeito que você sempre vai ser minha filha e eu sempre vou te amar. — Luna afagou o rosto dela e a olhou com os olhos sérios, mas sonhadores como sempre. — E o seu nome? Você quer…?

— Não — Lysander a interrompeu, balançando a cabeça. — Eu gosto de Lysander. É um nome bom. 

Luna assentiu e continuou enxugando as lágrimas da filha. 

— E tem algo que eu possa fazer pra você? Pra te ajudar?

Lysander mordeu o lábio e encarou os olhos da mãe.

— Bem… eu queria… sua ajuda pra pintar as unhas. — Ela suspirou. — É bobo, mas me ajuda a me sentir mais confortável no meu corpo.

Luna pegou nas mãos dela e a levou para o andar de cima, onde pintou suas unhas, arrumou seu cabelo, lhe ajudou com maquiagens divertidas e disse que ela poderia pegar suas roupas emprestadas a qualquer momento. Lysander sentiu que seu coração dobrava de tamanho com cada sorriso que sua mãe lhe dirigia; se sentia verdadeiramente amada, e sabia que sua mãe a aceitava como ela era.

— Você vai querer contar para o seu pai? — Luna perguntou cuidadosamente enquanto prendia os cabelos de Lysander com uma presilha que parecia um grande besouro colorido.

Lysander respirou fundo.

— Você… pode contar antes? — Sua voz saiu baixa e amedrontada. Não achava que seu pai fosse lhe odiar ou não lhe aceitar, sabia que seu medo era irracional, mas não conseguia evitar a sensação no fundo de seu estômago que ele iria se virar contra ela quando soubesse.

Luna sorriu, assentiu, e continuou a trançar outras partes do cabelo da filha.

No dia seguinte, Lysander acordou com um pacote embrulhado cuidadosamente do lado de sua cama e um cartão endereçado a ela em cima. Abriu o cartão com delicadeza e deparou-se com a caligrafia bagunçada de seu pai.

 

Querida filha, encontrei isso ontem no Beco Diagonal e achei que você fosse gostar. Amo você daqui até a lua. Papai

 

Lysander desembrulhou o presente e encontrou um vestido de tule cinza e preto, com pequenas estrelas e luas espalhados por ele que pareciam se mover pelo tecido com magia. Sentiu seus olhos se encherem de lágrimas e abraçou o vestido com força. Era assim que seu pai demonstrava amor; com gestos silenciosos e cheios de carinho e significado por trás.

Agora todos em casa lhe tratavam pelos pronomes corretos e ela podia se vestir e se portar como sempre quis confortavelmente. Mas o que ela não esperava era que um dia seu pai fosse se encostar na moldura de sua porta enquanto ela se maquiava e chamar seu nome com delicadeza para lhe contar aquela ideia.

— Lysander? — A voz de Rolf Scamander era suave e um tanto fina. Sempre gentil.

— Sim? — Lysander soltou o pincel que estava em suas mãos e olhou para o pai. Ele parecia escolher as palavras com cuidado.

— Eu tenho uma ideia. Uma proposta, na verdade, é… é algo que eu li sobre na redação do Profeta Diário e me fez pensar em você. — Ele passou as mãos pelo cabelo.

— O que é? — Ela virou a cadeira de frente para o pai, extremamente confusa com suas palavras.

— É… algo novo que eles estão fazendo no St. Mungus — Rolf mordeu o lábio. — Já foi testado, é absolutamente seguro… é uma variação da Poção Polissuco, mas ela não te transforma em outra pessoa… apenas transforma o seu corpo para o do gênero oposto, eu acho. — Suas sobrancelhas estavam franzidas com medo de não dizer as palavras certas, mas ele sorriu calorosamente logo em seguida. — Foi uma jovem e brilhante bruxa como você que descobriu como fazer isso.

O coração de Lysander parecia estar prestes a saltar para fora de seu peito; tinha sonhado com isso por tantos anos, e agora tinha uma chance de se tornar realidade.

— E… quando eu poderia fazer isso? — Sua voz tremia assim como o resto de seu corpo.

— Depois que você fizer dezoito anos. Em fevereiro do ano que vem, essencialmente, você poderia não ir pra escola por uma semana, isso pode ser arranjado — Ele ajeitou os óculos em seu rosto, olhando para a filha com esperança. — É algo que você quer?

Lysander assentiu. Ela queria aquilo mais que tudo no mundo.

Com dezessete anos, em seu último ano de escola, ela falou com a professora McGonagall e foi transferida para o dormitório feminino da Corvinal. Começou a usar o uniforme das garotas e deixou que seu cabelo crescesse até a metade das costas. Sempre que falava com algum amigo, pedia que eles usassem pronomes femininos ao se referir à ela, e sempre que eles o faziam, seu coração se derretia em alívio.

Na segunda ou terceira semana de aulas, esbarrou com Louis no corredor da Sala Comunal da Corvinal. Ele estava mais alto, seu cabelo estava mais longo que o normal e suas bochechas estavam coradas com sempre. Lysander recuperou o fôlego que lhe tinha escapado e encarou o garoto.

— Louis!

— Lysander!

Os dois falaram ao mesmo tempo e riram. Havia um certo nervosismo no ar.

— Eu tenho uma coisa pra te contar — Os dois falaram juntos novamente e riram mais ainda.

Louis se encostou na parede de pedra do corredor e sorriu timidamente para Lysander, olhando-a nos olhos. 

— Pode falar antes.

Lysander mordeu o lábio e olhou para o chão; já havia contado aquilo para muitas pessoas nos últimos dias, mas Louis a deixava nervosa por alguma razão.

— Então, eu… — Ela franziu as sobrancelhas e sorriu. Estava nervosa. — Você deve ter percebido ou ouvido alguém falando por aí, mas… eu, hm, eu sou uma garota, Louis — Ela olhou o menino nos olhos, analisando a reação dele. Ele estava surpreso, mas não tanto quanto ela esperava. — Pode continuar me chamando de Lysander, ou Lys, só… se refere a mim como ela. É isso — Lysander sorriu. 

Louis olhava para ela com um sorriso bobo e dançante nos lábios, e seus olhos extremamente azuis encaravam os seus.

— Uau — Ele suspirou e balançou a cabeça. — Lys, isso é… isso é ótimo! Você conversou com a sua família? E conseguiu mudar de dormitório? — Ela assentiu para as duas perguntas e o sorriso de Louis aumentou de tamanho. — Caramba, Lys, eu tô muito feliz por você, muito mesmo.

Ela sorriu e apertou seus livros contra o peito.

— Obrigada. E o que você ia me contar?

Louis respirou fundo e passou uma das mãos pelo cabelo loiro, suas bochechas corando mais ainda.

— Eu… saí do armário nas férias. Pra minha família. Eu gosto de garotos — O coração de Lysander afundou até o fundo de seu estômago, abriu um buraco no chão e continuou descendo até as profundezas da terra. Ela tentou ignorar a sensação, mas claramente sua expressão a traiu, já que o rosto de Louis enrubesceu mais ainda e ele levantou uma mão — E de garotas! E, tipo, qualquer um, garoto, garota, ou nenhum dos dois, ou os dois — A cada palavra que ele dizia, seu rosto ficava mais vermelho. — Eu gosto, assim, de qualquer pessoa. É. Eu sou pansexual. 

O coração de Lysander parecia voltar ao lugar certo no peito dela aos poucos, voltando a bombear sangue para o resto de seu corpo e, principalmente, para suas bochechas. Ela sorriu timidamente e assentiu para o loiro na sua frente, que esperava uma resposta com uma cara de quem ia vomitar todo o seu café da manhã ali mesmo.

— Isso é maravilhoso, Louis, de verdade. Que bom que você aceitou isso sobre você mesmo — Ela alcançou a mão do amigo, apertou-a de leve e a soltou, seu rosto ficando ainda mais corado. — Então, hm, eu tenho que ir…

— ...atrasado pra aula, é, eu também tô — Louis riu desajeitadamente, sem se mexer. — Então, é, eu… te vejo por aí?

Então Louis deu um passo à frente, beijou o rosto de Lysander, e foi embora antes que ela pudesse notar que seu rosto estava vermelho escarlate.

O tempo passou. Lysander teve que lidar com perguntas e comentários desagradáveis, mas, na maior parte do tempo, era feliz. Lily era a pessoa que mais lhe dava apoio além de sua família; ela a ajudava com roupas, maquiagem, com perguntas relacionadas ao corpo, tudo que ela podia imaginar. Louis havia virado um de seus melhores amigos também, mas Lysander tinha que constantemente se convencer que ele não estava flertando com ela. Lorcan… bem, ele era Lorcan. Passava tempo com ela e sempre a defendia dos bullies intolerantes da escola. Seus pais lhe escreviam regularmente, e do lado de sua cama, ela mantia uma ampulheta que marcava quanto tempo faltava para o seu aniversário de 18 anos. O dia em que ela poderia ir ao St. Mungus e passar pelo procedimento que não saía de seus pensamentos.

Na noite anterior ao dia dos namorados, em fevereiro daquele ano, exatamente duas semanas antes de seu aniversário, Lysander estava sentada na Sala Comunal da Corvinal com dezenas de pergaminhos aos seus pés, lendo mapas astrais como costumava fazer para suas amigas, quando uma sombra cobriu metade do céu em um dos papéis, chamando sua atenção para o corpo esguio em sua frente.

— Louis — Lysander sorriu, olhando para cima. — O que vo—

— Você quer sair comigo amanhã? — Ele a interrompeu, ignorando o rubor que subia até seu rosto. Ele era tão branco que chegava a ser hilário, o que significava que a qualquer sinal de timidez ou vergonha, seus sentimentos ficavam extremamente expostos. — É dia dos namorados e, e eu queria sair com você porque… eu realmente gosto de você, Lys.

Ele engoliu em seco e Lysander piscou, completa chocada com a revelação-barra-pedido do garoto. Ela balançou a cabeça, sorriu e olhou para cima. 

— Eu adoraria, Louis. 

— Então… eu te vejo na entrada do castelo, e vamos tomar uma cerveja amanteigada, okay? — Ele disse, parecendo estar falando mais com si mesmo do que com Lysander.

No dia seguinte, os dois foram até o Três Vassouras de mãos dadas e tomaram cervejas amanteigadas juntos. Riram, flertaram e Louis a beijou antes que ela pudesse pensar no que ele estava fazendo ao aproximar o rosto do dela. Os lábios dele eram gélidos e tremiam contra os seus, e ela gostava. Se beijar garotos era tudo o que ela sempre quis, beijar Louis era tudo o que ela sempre precisou. Sua boca tinha gosto de menta e ela não sabia dizer qual, mas tinha certeza que Louis estava usando algum perfume francês. Eles se beijaram várias vezes antes de começarem a seguir o trajeto de volta para o castelo.

Quando começou a nevar, Lysander respirou fundo; havia algo que estava queimando em seu peito e estômago desde que Louis tinha lhe chamado para aquele encontro, e não podia passar mais nenhum segundo sem falar sobre aquilo sem sentir que iria vomitar toda a sua cerveja — ou talvez fosse só o efeito da bebida em seu corpo esguio. Parou de andar, apertou a mão de Louis e respirou fundo. Fechou os olhos e contou para ele sobre o procedimento no St. Mungus e o que aconteceria daqui a duas semanas. Louis sorriu e disse que continuaria a gostar dela, não importava o que estava debaixo de suas roupas; na verdade, quanto mais Lysander ficasse feliz com seu corpo, mais feliz Louis ficaria. Ela quis beijá-lo por horas.

Com dezoito anos, Lysander estava numa cama de hospital com Luna e Rolf sentados ao seu lado, sentindo que ia vomitar. O medibruxo na sua frente lhe falava sobre todos os riscos e sintomas do procedimento, e explicava o que aconteceria com seu corpo; como ele mudaria de dentro para fora, primeiro as grandes mudanças, depois as pequenas, suavizando suas feições e curvas levemente. Ela iria tomar duas poções; uma para adormecer por três dias, o tempo que levaria para seu corpo se recuperar das mudanças, e, logo em seguida, a que realmente a transformaria para sempre.

Suas memórias daquele dia não eram claras; lembrava-se do gosto de pêssego em seus lábios ao tomar a poção, da dor e da sensação que seu corpo inteiro estava queimando, e de acordar com uma dor que a fazia pensar que sua cabeça iria explodir. Tudo estava confuso e dolorido, e ela sentiu as mãos macias de Luna apertarem as suas e lhe dizerem que tudo tinha ido bem e que ela estava linda. Ela apagou de novo, e quando voltou a acordar, sentou-se lentamente na cama de hospital. Alguns dias haviam se passado, e seu corpo não doía mais tanto. O resto de suas memórias daquela semana ficaram embaralhadas em sua mente, mas ela nunca se esqueceria de uma coisa em específica: voltar para casa e se olhar no grande espelho sem roupas pela primeira vez.

Lysander chorou. Queria poder dizer que não, mas ela chorou como uma criança. Seus ombros, mãos e pés agora eram menores, a curva de sua cintura era mais suave, ela agora tinha seios. Ela passou minutos a fio observando cada detalhe de seu rosto, examinando as mudanças sutis; suas feições eram mais delicadas, seus lábios levemente mais cheios. Seu pomo de adão havia desaparecido e sua voz não era mais grossa quando ela falava. Depois de um longo tempo, ela colocou um vestido — que agora lhe caía perfeitamente, sem precisar de ajustes — e se sentou na cama, enxugando as lágrimas. Lorcan, que também tinha voltado para casa naquela semana para ajudar a irmã com o que fosse preciso, bateu na sua porta alguns minutos depois e colocou a cabeça para dentro do quarto. Ele sorriu para Lysander.

— Você tá linda, maninha. Mamãe vai colocar o jantar na mesa.

Ele fechou a porta e Lysander voltou a chorar. De alegria, felicidade, euforia, qualquer palavra boa que você possa imaginar para definir os milhões de fogos de artifício que pulavam em seu peito toda vez que ela se via num espelho, tocava alguma parte de seu corpo ou ouvia alguém lhe elogiando. Ela tinha passado tanto tempo imaginando tudo aquilo que a realidade lhe parecia um sonho. A volta para Hogwarts tinha sido tranquila; seus amigos lhe elogiavam, os professores e colegas sorriam para ela, algumas pessoas faziam comentários insensíveis, mas nada que abalasse sua confiança. Lily lhe levou para comprar roupas novas na primeira visita delas à Hogsmeade e não parava de dizer o quanto estava feliz por ela.

A reação de Louis seria algo que ela nunca esqueceria; o brilho em seus olhos e o sorriso genuíno em seus lábios. Ele estava tão, tão feliz por ela que a euforia e o orgulho pareciam transbordar de seu corpo. O jeito que ele tocava e beijava seu corpo durante as madrugadas em que eles se encontravam escondidos era delicado e especial; como seu olhar a devorava e a amava ao mesmo tempo, a desejava. Como suas mãos exploravam cada pedaço de pele que ele podia e seus lábios a tratavam como realeza. Como se ele a adorasse e seu corpo fosse o altar.

Com dezenove, vinte, vinte e um, vinte e dois e todas as outras idades de sua vida, Lysander se olhava no espelho e se achava linda. Amava seus cabelos, sua voz, seu corpo, tudo. Finalmente se sentia confortável e feliz no corpo em que habitava; pela primeira vez em anos sentia como se pertencesse ali, que estava no lugar certo. Não sentia vergonha nem medo quando alguém lhe olhava, e quando pensava no passado, mal acreditava que tinha passado tanto tempo com medo de ser ela, quando ser ela era o que Lysander mais precisava para ser feliz.


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Notas finais do capítulo

Comentários são sempre muito bem vindos hihihi espero que tenham gostado amores!!! Xero em cada um