Só Por Garantia escrita por Ly Anne Black


Capítulo 1
Único




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/793061/chapter/1

Era madrugada em Hogwarts e Neville não conseguia pegar no sono. Através da janela do dormitório, os dementadores desgarrados, mais escuros do que a noite, sobrevoarem a floresta como abutres. Preferiam a área onde o lago negro e a floresta proibida se encontravam, onde agora ficavam as lápides dos heróis caídos da última batalha. Colin, Lilá, Fred, Remus Lupin, Nymphadora Tonks…

Alguns inimigos, cujos corpos não tinham sido clamados, também haviam sido enterrados nas proximidades, mas Neville não queria pensar nisso. Não queria pensar que Severus Snape e Bellatrix Lestrange apodreceriam na mesma terra que os seus amigos. Felizmente o Ministério clamara o corpo de Voldemort, porque Neville não podia suportar a ideia de tê-lo enterrado ali, nos terrenos de Hogwarts. 

E a cobra… a cobra tinha sido enterrada lá também. A cobra era uma das razões pelas quais Neville não conseguia dormir. Nunca matara antes, mas já não conseguia parar de pensar no momento em que separara a cabeça de Nagini do corpo com um movimento único da espada afiada de Godric Griffyndor. A lembrança mandava arrepios pela sua espinha toda vez que emergia. 

Neville pensara que, se um dia tivesse que matar algum ser vivo provido de consciência, isso o atormentaria a vida inteira. 

Certamente não esperara gostar da experiência. O que havia de errado com ele? 

Neville piscou, achando ter visto alguma coisa se mover entre as lápides. Uma forma branca contra a escuridão, uma… pessoa? 

Ele se aproximou da janela, procurando se certificar, mas era difícil ter certeza de tão longe. Os dementadores também a viram e mergulharam em sua direção, uns quatro ou cinco. Neville assistiu a silhueta da mulher nua e muito pálida correr das criaturas pela orla da floresta, tropeçando e oscilando como se não soubesse bem o que fazer com as pernas. 

Ele saltou da cama, agarrou a varinha na cabeceira em uma mão, a espada de Gryffindor na outra – desde a batalha, a espada ficava apoiada no seu criado mudo, como um lembrete de que tinham mesmo vencido. 

Não havia tempo para chegar até a orla da floresta correndo castelo abaixo, mas os feitiços anti-aparatação estavam temporariamente suspensos. Neville se concentrou, esperando que o surto de heroísmo não o fizesse estrunchar alguma parte vital do próprio corpo. 

* * *

— Você a achou onde? — Madame Pomfrey perguntou, os olhos arregalados para a mulher que Neville trouxera com ele e que agora tremia, sentada no largo sofá amarelo da Casa dos Gritos, o corpo nu e imundo, recusando qualquer tentativa de ser coberta. 

— No cemitério — ele disse, apertando um ponto na lateral do tronco, que ardia a cada respiração. — Os dementadores estavam tentando chegar nela. Não sei se está ferida, ou… 

Pomona se aproximou da mulher, que se esquivou com a proximidade. Era bonita, com seu cabelo escuro e embaraçado, olhos puxados, um quê serpentino nas feições esticadas do rosto, as curvas sinuosas do corpo todas expostas à luz conjuradas do velho candelabro. Neville nunca a tinha visto em Hogwarts, mas pensando bem, ela era velha demais para ser uma estudante, de qualquer maneira. 

— Não vou machucá-la, querida — disse Pomona. — Deixe-me ver o que é isso em seu pescoço… 

A curandeira estendeu a mão e a jovem respondeu com um movimento súbito com a cabeça, como se pretendesse mordê-la. Pomona retraiu a mão, ultrajada. 

— Estou tentando ajudar! 

— Asshhahsahhhhh — respondeu ela, numa série de sibilos e estalos irritados. 

Neville e Pomona se entreolharam em choque, reconhecendo a natureza dos ruídos. 

— Vou chamar um intérprete no castelo— anunciou a curandeira, puxando do seu avental um celular trouxa amarelão e tocando a varinha nele. A tela se acendeu. Ao ver o olhar chocado no rosto de Neville, ela retrucou:

— Ora, não me olhe com essa cara, menino! Está ligado à rede de flú. Engana os trouxas direitinho e é muito mais prático do que ficar se agachando em frente a uma lareira e enchendo a cara de fuligem! 


* * * 

— Vocês querem que eu o quê? — Harry olhou, as sobrancelhas muito erguidas, a mulher enrolada em si mesma no canto do sofá amarelão da sala da Casa dos Gritos. A casa tinha se tornado uma enfermaria temporária pra os feridos na batalha, enquanto a de Hogwarts estava sendo reconstruída. 

A mulher olhou de volta para ele, seus olhos estreitos de desconfiança no rosto de traços asiáticos. 

— Fale com ela em língua de cobra — pediu Neville. — Pergunte quem ela é e como chegou aqui. 

— Por quê?

— Apenas confie em mim. Tenho um palpite. 

— Certo — Harry cedeu, cansado demais para contestar. Puxou uma das cadeiras desparelhadas cadeira para perto de sofá e se sentou, a fim de ficarem do mesmo nível. A mulher olhou atravessado para ele, mas não se esquivou como fizera diante de Pomona. Harry tentou não olhar para o corpo nu e delgado, manchado de terra úmida. Não era muito difícil pensar nela como uma cobra.

— Olá. Qual é o seu nome? 

Mas o que se desenrolou da sua língua foi uma série de sibilos macios e suaves. Harry, que por um momento temera que a sua ofidioglossia tivesse o abandonado após a destruição da horcruxe de Voldemort em seu interior, ficou surpreso de que a habilidade permanecesse. 

Ao ouví-lo, a expressão da mulher se transformou em agradável surpresa. Ela sibilou de volta. Harry franziu para a resposta. 

— O que ela está dizendo? — Neville perguntou com inquietação. 

— Ela me disse olá. E disse que não se lembra do próprio nome. 

— Bem, isso é fácil de descobrir — disse Neville, a expressão carregada de tensão. — Pergunte a ela se o nome “Nagini” diz alguma coisa. 

Harry virou para o amigo com ceticismo. 

Como é? Você acha que ela é…?

Peça para ver o pescoço dela — disse Neville com aspereza. — O corte ainda está fresco. 

Harry se voltou para a jovem e pediu, em ofidioglês:

— Pode me mostrar o seu pescoço? 

Após alguma hesitação, ela inclinou a cabeça para trás e deixou Harry ver o pescoço branco e longo, bem como a linha rosada de um corte em início de cicatrização, circulando-o como uma gargantilha. Harry sentiu o queixo cair um pouquinho. 

— Como você sabia? 

— Eu tive um sonho — disse Neville, soturno. — Depois da batalha, eu sonhei com ela, desde então não consigo mais pregar o olho. 

Harry olhou de Neville para suposta Nagini, aturdido. Ele limpou a garganta e perguntou em vários sibilos exigentes: 

— Como chegou aqui? Onde esteve, antes de aparecer no cemitério? 

Neville assistiu a troca de estalos serpentinos, metade horrorizado, metade fascinado. A mulher respondia a Harry sem hesitação, como se tivesse prazer em falar com ele. 

— Ela diz que foi vítima de uma maldição de sangue que a aprisionou perpetuamente no corpo de uma serpente quando completou vinte anos. Lembra-se de ter fugido para uma floresta e refugiado-se lá por muito tempo, até cruzar com um ser das trevas que a possuiu, prometendo que a libertaria da maldição se pudesse usar o seu corpo por algum tempo. 

— Um ser das trevas? — Neville repetiu. — Voldemort?

Harry assentiu, sem precisar perguntar. 

— Ele encontrou Nagini na floresta da Albânia depois que eu o derrotei da primeira vez. Ele a possuiu para ter um corpo, até reconstruir o próprio, no nosso quarto ano. Ah, e no meio de tudo isso ele guardou uma horcruxe dentro dela. A que você destruiu durante a batalha, com a espada de Gryffindor. 

—Mas como ela pode estar viva? Eu cortei a cabeça dela fora! 

Harry se virou calmamente e fez a pergunta em língua de cobra. A sua resposta foi um sutil dar dos ombros nus da mulher, seguindo de um sibilo conformado. 

— Ela diz que acordou debaixo da terra e cavou o seu caminho para fora. E que o pescoço dói um pouco, mas está definitivamente atarraxada à sua cabeça. 

— Ela disse “atarraxado”? 

Harry assentiu.

Ashhhavshh. Atarraxado. 

Neville o encarou com o cenho franzido, depois balançou a cabeça.  

— E ela não se lembra de nada dos últimos anos? Nenhuma das pessoas que ela matou ou devorou? Você não disse que foi ela quem picou Snape na última batalha? Nem mesmo disso ela lembra? 

Harry se virou e fez a pergunta. Nagini negou, num movimento suave de sua cabeça. Nada. 

— Uh… Harry, uma palavrinha, se não se importa? 

— Claro — Harry se levantou seguiu Neville para a cozinha, vendo-o apertar o lado do corpo e se encolher a cada passo. 

— O que há errado com você? 

— Ah, acho que estrunchei uma costela, aparatando. 

— Hum. Peça a Pomona um pouco de esquelecresce. 

— Certo — Neville franziu para o tom apático de Harry. — Uh, sobre a serpente de estimação de Voldemort, renascida em forma humana, na sala de estar… algo a comentar? 

— Acho que você quebrou a maldição quando usou a espada de Gryffindor nela. 

— Sim, mas, como é que ela está viva?

Ah, não acho que ela esteja— Harry balançou a cabeça. — Você prestou atenção nos olhos dela? 

— Não — Neville admitiu, corando um pouco. Serva de Voldemort ou não, era a primeira vez que via um par de peitos, o que o distraíra um pouco de reparar nos olhos dela. 

— São opacos. Acho que ela é mais como uma coisa morta-viva. Do clube dos inferis, vampiros, testrálios e etc. 

Neville olhou para o amigo, que parecia mais louco para voltar para a cama do que qualquer coisa. Pensando bem, Neville não o tinha visto sair muito do dormitório, desde os enterros. 

— Você acredita nela? Acredita que ela não se lembra de nada e que esteve sendo controlada por Voldemort esse tempo todo? 

Harry pensou por um momento, lançando um olhar rápido para a porta através da qual Nagini aguardava. 

— Talvez. Difícil dizer, não é? — Ele suspirou, levantando-se. — Isso era tudo? Eu mal consigo manter os meus olhos abertos. 

— Uh, sim. Acho que era. 

Harry assentiu e deixou a cozinha sem se despedir. Ao passar pela sala, a mulher no sofá olhou para ele e sibilou alguma coisa. 

— Boa noite para você também, Nagini. 

Alguns minutos mais tarde, enquanto Madame Pomfrey lutava para convencer uma relutante Nagini a cobrir-se com um vestido emprestado do seu próprio guarda-roupas, Neville recebeu um bilhete de Harry, entregue pela corujinha irritante de Rony: 

“Ela sabia o meu nome.”

Neville ficou olhando para o papelzinho por uns três minutos. Quando se decidiu, ele ainda passou uns dez minutos na cozinha, conjurando uma pilha de ratos de um ninho que morava debaixo da pia, os quais estuporou e empilhou numa travessa de porcelana lascada.  Então ele foi até a sala, onde Nagini continuava nua e os pedaços do vestido de Pomona estavam espalhados pelo chão. Pomona não estava mais à vista. 

— Está com fome? — Neville sacudiu um dos ratos no ar. A cabeça dela se ergueu como a de uma serpente farejando e ela se levantou, o seguindo languidamente para cozinha. 

— Bom apetite — Neville indicou o prato de ratos frescos com um gesto cavalheiro.  

Nagini se lançou sobre a refeição com entusiasmo. 

Por via das dúvidas, Neville sacou a varinha e lançou um Abafiatto não verbal em torno da cozinha antes de, discretamente sacar a espada de Gryffindor de detrás da porta. 

Não queria ser interrompido quando decapitasse a cobra de Voldemort uma segunda vez… só por garantia. 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Só Por Garantia" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.