Momentos escrita por Nat King


Capítulo 4
Capítulo 4 - Chave de Ouro


Notas iniciais do capítulo

Olá, mais uma vez! ♥ Espero que você esteja bem!

"Zolotôi Kliputchik", ou "Chave de Ouro", era uma das marcas de caramelo populares na União Soviética, pelo preço acessível com a criançada :3 Ou seja, capítulo focado na relação pai e filha, com uma pequena aparição do primeiro Nikiforov treinado por Yakov. Espero que gostem!

TW para gordofobia. Leiam com cautela.



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Chave de Ouro

 

— A Margosha tá doente.

Nikiforov não havia perguntado; aquela era a assustadora afirmação feita com toda a convicção do mundo que um garoto de onze anos podia falar.

— Como assim doente, Oleg? — Mesmo assim, foi inevitável para Yakov não estranhar e até mesmo se preocupar um pouco com aquela observação. Pelo que podia se lembrar até de manhã, sua filha parecia muito bem.

— Já é o quarto dia que ela recusa minhas balas, diz que a barriga dói. — Pelo nariz empinado, via-se que o menino pouco se importava em delatar a amiguinha; não que Feltsman fosse avesso a isso, até porque ele mesmo havia orientado o jovem Oleg Nikiforov a relatar qualquer problema que a filha aparentasse ter. E, de fato, não era muito normal para a menina negar os doces oferecidos pelo amigo. — Ela também não comeu muito hoje no almoço.

Oh. Pelo jeito era sério.

— Contou ao meu avô? Talvez seja o caso de comprarmos um remédio para ela. — Ou um chá, que provavelmente era mais em conta.

O rostinho sério de Oleg, no entanto, se fechou naquela sombra meio assustadora, uma maturidade forçada em tenra idade que Yakov lamentava muito o garoto ter conhecido tão cedo… Se ele o tivesse conhecido antes…

— Eu acho que foi aquele Fomin.

“O presidente da congregação?” pensou Yakov, sentindo a respiração faltar. Associar o nome dele e sua natural implicância com o peso dos patinadores que frequentavam o rinque com sua filha, uma criança rechonchuda desde sempre, era saber o tipo de comentário que ele deve ter feito a ela.

— O desgraçado.

— Olha a língua, Nikiforov. — Yakov o corrigiu. Embora concordasse, não poderia dar o mal exemplo.

— Não pensa assim, treinador? — O menino insistiu na careta, mesmo que as bochechas queimassem de vergonha pela reprimenda. — Ele sempre trata todo mundo tão mal! Vi uma menina chorar porque ele disse que a comida dela era uma porcaria! Eu queria poder comer daquela porcaria sempre!

O jovem Oleg tinha suas razões para se revoltar e Yakov sentia muito. Se ele pudesse tomar a guarda do menino para si, mas o tio dele se recusava terminantemente…

— Obrigado por me contar — ele suspirou, bagunçando os cabelos claros do menino. Oleg normalmente não gostava de ter os fios prateados, seu maior orgulho, desalinhados, mas aceitou sem exibir um bico reclamão dessa vez. — Vou conversar com ela, hoje. Dependendo do meu sucesso, eu levo vocês para jantar fora amanhã, que tal?

Uma oportunidade de comer qualquer coisa que não fossem as refeições do refeitório do rinque, era sempre uma oportunidade de ouro. Convencido pela proposta, Oleg exibiu um sorriso mais aberto e sincero, condizente com sua idade, provocando Yakov a sorrir também. Era bom ver Nikiforov mais parecido com a criança que deveria ser.

— Agora vamos começar logo essa aula. Quem sabe eu não te ensino um salto novo, hoje?

Com o peito inflado, cheio de esperança e coragem, Oleg se afastou para o centro da pista, começando o aquecimento já conhecido. Ele tinha certeza de que um dia seria um grande patinador. Yakov também.

.:.

Yakov havia terminado de preparar o jantar para levar os pratos ao cômodo dividido com o tio e filha. Atravessando a cortina de lençol que fazia a divisória do cômodo com os demais, ele viu Alfonse, que já tinha comido mais cedo com a vizinha de comuna, dormindo encostado em sua cama, o ruído baixo da televisão sem cores embalando o roncar baixo. Margosha por sua vez, sequer reparou no pai, atenta ao filme que passava, uma das tantas reprises de Velas Vermelhas, o conto sobre uma garota que aguarda o dia em que um príncipe encantado virá buscá-la em um navio de velas escarlate. Provavelmente Margosha não entendia muito bem a história, já que o aparelho antigo não podia transmitir o colorido que de fato trazia graça ao romance, mas gostava de comentar sobre o figurino, sempre sua parte preferida, e sair saltitando pelo apartamento imitando e declamando as falas da personagem de Anastasia Vertinskaya, a tola e sonhadora Assol. Esse deslumbre ele podia entender, já que na época do lançamento do filme, Yakov — e um punhado de adolescentes da mesma idade à atriz — se apaixonou completamente pela garota e seus olhos azuis. Ele até assistiu o premiado, porém chatíssimo Hamlet por causa dela, três anos depois, no papel de Ophelia. Seu amor morreu um pouco — rá! — depois de ver o destino da personagem.

— Trouxe a janta — Yakov informou, pegando a menina de surpresa. Ela ofereceu um sorriso banguela para o pai antes de seus olhos caírem sobre o prato, desviando de volta para a televisão.

— Não estou com muita fome, obrigada.

— Verdade? Então você já comeu? — Colocando os pratos sobre a baixa mesa de centro que haviam resgatado das ruas há algumas semanas, ele se acomodou melhor ao lado da filha. A menina assentiu lentamente, culpada pela pequena mentira e pela fome que reclamou a negligência. — E o que é que vocês comeram?

A menina ficou em silêncio, sem arriscar olhar para o pai e ter a verdade revelada pela vergonha tão transparente em seus olhos castanhos, tampouco conseguindo distraí-los para a televisão. Era a primeira vez que ela perdia sua parte preferida no filme — coincidentemente o fim — em que o capitão Arthur Gray se aproxima da praia chamando por Assol, para finalmente levá-la embora.

Pensando melhor, ele já não achava tão adorável assim ver Margosha brincando de ser Assol. No fim das contas, Yakov podia facilmente —  e assustadoramente — se enxergar naquele contos de fada nem tão encantado assim, onde ele era o pai solteiro e sua Margosha fazia o papel da protagonista, a menina de seus olhos, que seguiria para um navio a velas sem olhar para trás.

Ugh, que pensamento terrível para antecipar uma refeição, ele até perdera o apetite.

— Eu queria ser como Anastasia Vertinskaya… — Yakov pôde ouvir um balbuciar baixo, quase um lamento. Com as mãozinhas sobre a barriga, Margosha brincava com os dedinhos, mas ele sabia que aquele gesto tentava inconscientemente acalmar a fome. Esperava que ela não estivesse há muitas horas se torturando daquele jeito.

— Você diz uma artista? Uma atriz?

Ele sabia que não era disso que falava a criança, mas havia aprendido com anos de paternidade e turmas diversas que a maioria das crianças não funcionava bem quando um assunto era abordado diretamente. Ele também podia dizer que conhecia um punhado de adultos que costumava se esquivar de uma ofensiva, exigindo muito mais dedos para lidar do que suas classes iniciantes.

Yakov olhou para a televisão. Agora, Arthur estava levando Assol embora para o navio e ninguém movia um dedo para pará-la. A mocinha não tinha nenhum amigo para dizer “hey, jovem, você vai mesmo entrar nesse navio aí cheio de homens que você nunca viu na vida?”. A jovem, que passara os últimos anos sonhando com a promessa de um bruxo sobre ser resgatada por um príncipe, pouco se importava em saber ou não o nome do galã, pois via-se agora realizando a promessa de toda uma vida, uma bem curta, aliás, se fosse parar para pensar, porque a atriz deveria ter entre dezesseis ou dezessete anos na época das gravações. E o bruxo era apenas um velho errante, sem poder algum. E Arthur era um grande mentiroso esquisito que ficou bisbilhotando a mocinha dormindo para depois sair caçando por aí uma forma de fazê-la se apaixonar por ele, até descobrir sobre o tal navio de velas vermelhas. O navio ele já tinha, faltou providenciar as velas e pronto. Mesmo assim, ele era o mocinho. Quem diria o contrário?

Yakov sentiu a cabeça pesar a realização de todos os erros grotescos daquele roteiro, caindo por terra assim como seu amor por Vertinskaya em 64. Aquela história estava toda errada…

— Ela é tão bonita…

O suspiro de Margosha o trouxe de volta ao rostinho murcho da filha. Era a primeira vez que ele a ouvia elogiar um rosto antes de um pedaço de pano.

Yakov não via problema nenhum na vaidade, não mesmo. Ele tinha seu par de sapatos especiais para eventos que exigiam um pouco mais de alinho, uma calça de alfaiataria ganhada de Lev em sua última viagem a Moscou, até uma camisa que ele conseguia disfarçar o curto comprimento com seu blazer antigo, porém intacto pelo cuidado. Acontece que Margosha era pequena demais para se preocupar com algo além de suas próprias brincadeiras e atividades escolares recém-começadas. Ela era jovem demais para ter sua mente quebrada e moldada conforme as exigências superiores que programavam atletas com data de validade proporcional às Olimpíadas.

Ela era sua filha.

— Sabia que beleza depende de quem vê? — A menina o olhou meio confusa, sobrancelhas juntas, rostinho tombado para o lado. — Verdade. Veja só, você diz que acha Anastasia Vertinskaya bonita, mas eu diria que já vi atrizes mais belas do que ela.

Seu eu de quinze anos estaria chorando com tamanha afronta, mas era necessário.

— Mas ela é linda, papai. — A menina ainda não tinha entendido.

— Viu só o que eu falei? Depende de quem admira. — Apontando um polegar para si mesmo, Yakov deu um sorriso torto, uma careta cômica que sozinha fazia Margosha sorrir mais. — Veja seu pai, aqui, ele não é o mais bonito, mas…

— É sim! — ela se empolgou, sentando sobre os calcanhares. — O papai é o papai mais lindo do mundo!

Yakov ainda não sabia porque a filha continuava a pegá-lo desprevenido daquela forma.

— Bom, então obrigado. Mas percebe? Você me acha bonito, mas nem todo mundo pensa como a Margosha.

Ela balançou a cabeça, a trança acompanhando aquele gesto enérgico.

— Impossível, todo mundo acha o papai bonito.

— Quem é “todo mundo”?

Ela parou de sorrir, lábios apertados e olhos perdidos enquanto procurava pensar em mais alguém nessa lista.

Yakov riu dos esforços da filha, alisando o topo da cabeça com cuidado para não desmanchar o penteado. Pelo menos ela não parecia mais triste.

— Não é curioso como as pessoas pensam diferente? O que uns gostam, outros podem não gostar. Fomin, lá do rinque, não gosta de nada.

A sugestão do nome do diretor, trouxe clareza aos olhos de Margosha. Ele não sabia se aquelas poucas palavras funcionariam, mas precisava tentar.

— Mas ele está certo ou errado em não gostar?

É, ninguém nunca disse que seria fácil. Ele deveria saber disso quando resolveu que estava tudo bem ser pai aos dezenove.

— Acho que quando falamos sobre achar algo bonito, não existe certo ou errado, porque como eu disse, isso depende de como você enxerga as coisas. Mas pessoas como Fomin apenas não gostam de nada, nem de ninguém. Ele é uma pessoa muito malvada, entende? E pessoas malvadas fazem as outras se sentirem tristes de propósito.

Aquilo já estava começando a parecer uma fábula; se bem que se ele descrevesse Fomin com cascos e um rabo pontiagudo, não estaria mentindo sobre o diabo. Sua alma deveria ser tão deformada quanto.

— E se for mais de uma pessoa malvada falando?

— Ela ainda estará errada.

— Mesmo se for todo mundo?

E agora ela estava chorando, mãozinhas nos olhos tentando limpar para longe as lágrimas que Margosha deveria estar segurando sabe-se há quantos dias. Yakov estava frustrado consigo mesmo por não ter notado e irritado com Fomin por conseguir espalhar suas sementes malignas na cabeça de tantas crianças, ecos de seu preconceito.

— Muita gente, moya Gosha, muita gente… — Puxando-a para seus braços ele tentou niná-la com cuidado. Era tão tolo em acreditar ser capaz de protegê-la de todo mal, mas ele continuava ninando Margosha, desde o primeiro dia que a viu. Quando as pessoas iriam parar de machucar sua pequena pérola? — E às vezes elas nem percebem, repetem o que ouviram porque aprenderam que aquilo é o certo, e também acabam machucando as pessoas.

— Eu não quero que você tenha vergonha de mim, papai… — lamentou ela, sem conseguir ouvi-lo.

Yakov certificaria-se de arrebentar Rudolph Fomin. Depois de arranjar documentos falsos para fora do país, naturalmente.

— Margosha, olhe para mim — pediu, coração doendo de tristeza pela desolação da filha, cenho franzido pela amargura que trazia por terceiros. — Como eu teria vergonha da menina mais inteligente, gentil e generosa desse mundo? — Ela pensou que deveria responder à pergunta, mas tudo o que conseguiu foi projetar o beicinho ainda mais. — E, aos meus olhos, a mais bonita, também.

— Eu não quero ser bonita — ela reclamou, engasgando a vontade de chorar. —, eu só quero que o papai goste de mim.

— Pois você tem sorte — garantiu, a voz baixa tentando tranquilizá-la. —, porque eu faço os dois.

Ela continuou coçando os olhinhos, contendo o choro, embora ainda suspirasse aquele engasgar sofrido que martelava o peito de Yakov cada vez que a ouvia lamentar. Para quantas crianças Fomin tinha repetido o mesmo discurso destrutivo? E quantas delas haviam estendido isso para Margosha? Desde quando? E quanto tempo levaria para desfazer todo aquele nó em sua mente tão sugestiva?

— Eu juro que não há nada de errado em você, Margosha. Se alguém falar alguma coisa que te faça sentir mal de novo, venha me procurar. Não, melhor, diga que irá contar tudo para mim.

Porque as crianças que não conheciam Yakov, temiam a carranca que marcava o rosto ainda jovem, a voz alta que em correções atravessavam o rinque e vazavam para as salas vizinhas, olhos cerrados que observavam a tudo e não deixava nada passar. Normalmente, seus alunos obedeciam o professor o que não obedeciam em casa, sendo o nome de Feltsman sinônimo de ordem por todo o centro, tanto que até mesmo alunos de outras classes se calavam quando ele era escalado para cobrir um professor ausente, um comportamento ímpar que nenhum outro profissional conseguia.

É claro que depois de o conhecerem melhor, sabiam que ele não era apenas aquele muro de seriedade, cedendo minutos extras para a brincadeira das crianças como prêmio por bom comportamento, e até distribuindo balas como incentivo; alguns inclusive já tinham o visto sorrir, principalmente quando era para a filha! Mas é claro que nem todo mundo sabia disso, então ele continuava sendo, para muitos, uma figura muito assustadora, o que por sua vez, costumava afastar gente indesejável. Esperava que isso afastasse gente indesejável de Margosha, também.

— Promete?

Ela balançou o rostinho molhado, de acordo com o plano. Esperava não ter que precisar fazer isso, não queria que ninguém a incomodasse mais.

— Bem? Eu terei de jantar sozinho ou você está com pelo menos um pouquinho de fome para me acompanhar?

A menina exibiu um sorrisinho pequeno, um pouco mais animada. ela estava sim, com fome, e o ensopado feito pelo pai cheirava bem. Ele tinha até comprado pão fresco para acompanhar e — pasme! — carne pra engrossar o caldo!

Aliviado em vê-la abocanhando a primeira colherada, Yakov finalmente se sentiu relaxar, encostando-se contra o sofá. O filme já não passava mais, mas ele nem se atentava ao noticiário local.

— Sabe, Margosha? — Atenta, ela levou os olhos para o pai, esperando mais algum conselho ou palavra de grande saber. — Estava pensando em levar Oleg para comer fora, amanhã, após o treino. Gostaria de nos acompanhar?

O sorriso cresceu, o topo das bochechinhas vermelhas tocando os olhos grandes. Sim, era daquele jeito que ele gostava de vê-la, feliz.

— Sim, por favor! — pediu, a menininha educada que ela sempre fora.

Na cama de solteiro ali do lado, o tio-avô Alfonse roncou alto, completamente entregue ao sono, assustando os outros dois. Rindo baixo, eles se olharam, terminando de comer o mais silencioso que podiam.

.:.

No gelo, Margosha deslizava junto a outras crianças da turma extra que Yakov havia assumido naquele dia. Repetindo o Axel que tinha acabado de aprender, Oleg Nikiforov se exibia, mesmo tendo mais vezes caído do que acertado o novo salto. A menina ria para tanta confiança, mas tentava acompanhar a velocidade que o amigo ganhava à frente, dedinhos sempre esticados em direção ao muro, caso sua perseguição desse errado. Notar todos aqueles pequenos detalhes fazia Yakov sorrir muito discretamente. Ele ainda estava em público, apesar de tudo.

— Acostumando a filha ao gelo?

E o sorriso que era pequeno, deixou de existir naquela hora.

— Estou deixando ela brincar um pouco antes de irmos embora.

Rudolph Fomin parecia não ter ouvido nada, ou sequer entendido o tom seco por trás das palavras de Yakov, pois continuou a falar.

— Com o programa adequado, ela poderia entrar com seu protegido na categoria dos pares. — Yakov rolou os olhos para longe. Para Fomin, o assunto era sempre sobre novos patinadores e os pares que eles poderiam render. — Isso se ele puder erguê-la no futuro.

Fora da vista do outro homem, Feltsman sentiu as unhas curtas marcando a própria palma; havia fechado uma das mãos em punho e sequer havia notado. A outra estava metida no bolso do blazer, tremendo.

— Margosha não demonstra interesse pela patinação como profissão.

— É uma pena, ela poderia ter uma carreira muito promissora… — Rudolph suspirou, e ainda que não olhasse para ele, Yakov pôde vê-lo passar a mão sobre os cabelos loiros penteados para o lado. — As pessoas adorariam assistir a filha do nosso ex-campeão.

Sempre aquela insinuação, sempre aquelas palavras, cada vez de uma pessoa diferente. Feltsman estava cansado, exausto.

— Ela não é uma extensão minha. — Finalmente virando-se para Fomin, Yakov cruzou os braços em frente ao peito, gesto que o fechava em sua armadura, mas o dobrava de tamanho de igual forma. Ele era um palmo mais baixo que o patrão, mas o derrubaria facilmente se quisesse, sabia disso, queria isso. Mas não seria o melhor exemplo a dar às duas crianças que tanto apreciava e poderia custar mais do que o emprego. — Se minha filha tiver interesse na patinação, precisará se esforçar como qualquer outro atleta. Desempenho não está no sangue.

— Que sangue?

O sorriso de lado de Fomin gelou o sangue de Yakov, travando sua postura. Ele não poderia vacilar na frente de Rudolph, não poderia se mostrar abalado com o comentário maldoso, ou dar qualquer dica de que ele e Margosha não dividiam do mesmo material genético. Será que depois de todos esses anos eles poderiam fazer alguma coisa contra sua pequena família?

Parecendo zombar de seu receio, Rudolph exasperou uma risada, dando tapinhas amigáveis no ombro rígido de Feltsman. Claro que ele estaria achando graça, o desgraçado sádico.

— Se quiser exibi-la, sabe o que fazer.

Sabe o que fazer, dizia ele. Moldar sua filha ao que não era, pensava ele. E na mente de Yakov, apenas sua filha chorosa vinha, e junto com ela, sua ira. Aquilo não. Nem o medo de Yakov poderia calá-lo quando sentia tanto rancor vindo à tona.

— Não crio Margosha para ser gado de corte, Fomin — enfrentou, acenando firme para Oleg. O menino conhecia-o bem para não precisar de uma segunda ordem. — Ela não será como uma dessas crianças tão disputadas que são vendidas como estrelas e acabam no desprezo.

Rudolph balançou sua cabeça lentamente, um sorriso arrogante nos lábios. Ele estava começando a entender. Yakov já se preocupava demais com Nikiforov para incluir a filha na conta. O trauma de sessenta e quatro ainda estava ali, perturbando sua mente, fácil de ver no tempestuoso brilho dos olhos azuis.

— Ainda acho que exagera, Feltsman… Você mesmo disse que ela não é uma extensão sua.

— Tenha uma boa noite, Fomin.

Rudolph continuou ali, assistindo Yakov se afastar contornando o rinque, achando graça na irritação contida. Até chegar à filha e pequeno patinador, as crianças já estavam devidamente calçadas, porém, fosse pela pressa de Yakov em deixar o ginásio, fosse por puro despeito, os patins permaneceram jogados embaixo do banco. Tudo bem, algum funcionário sempre poderia guardar, depois, ou mesmo deixar ali para Feltsman guardar no dia seguinte, para que o rapaz continuasse sabendo onde era seu lugar.

Caminhando em direção ao restaurante, Yakov conseguiu aos poucos se acalmar, ouvindo o tagarelar infantil levando para longe seus pensamentos, caramelos finalmente aceitos, sonhos gritados por Nikiforov que levavam Margosha a gritar os dela, também. Ambos sorriam, o que fez Yakov acompanhar aquele momento; enquanto eles estivessem assim, tudo ficaria bem.

.:.

Papeladas aqui, telefonemas atendidos e Rudolph Fomin decidiu que era hora de parar, pegar sua pasta e ir embora. O dia seguinte, um domingo, seria reservado ao seu descanso, não o bastante para prepará-lo para uma segunda-feira cheia de reuniões e negociações de novos atletas, mas o suspiro de paz do qual precisava. Isso se a esposa não o pentelhasse muito.

Girando o chaveiro do carro nos dedos, ele seguiu seu caminho até os fundos do ginásio, ansioso por colocar suas mãos no muito orgulhosamente ostentado Moskvitch branco, o inesperado o detendo ao virar da esquina, quando seus olhos cinzentos notaram, horrorizados, a estranha proximidade de uma dupla de seu precioso carrinho. O que eles seguravam ali, tão perto da maçaneta e por que se parecia tanto com um canivete?!

Antes que pudesse gritar horrorizado e praguejar contra eles, ambos fugiram em velocidade impressionante, sem tropeçar ou olhar para trás. O único deixado para trás era Rudolph, que agora, perto de seu carro e possivelmente o único bem que tinha como quisto, lamentava com lágrimas nos olhos o destino infame de seu carrinho; o parabrisa trincado como uma grande teia de aranha, pneus abertos em meia-lua, imitando sorrisos sinistros, um dos espelhos retrovisores quebrado no chão, além de riscos sobre a pintura — não a pintura… — formando arcos, flores, matrioskas, galos, todo tipo de ilustração popular sem sentido, enquanto um grande PORCO destacava-se no capô. Incrédulo e desamparado, Rudolph ajoelhou em frente ao carro, como quem cai diante a uma lápide. Por quê?

Longe, a dupla de homens continuou a correr, ofegante, porém incansável, até considerarem segura a distância tomada. Não teria como o coroa estar os seguindo, certo?

Breve, um deles puxou o outro pela manga, apontando com o queixo a fachada de um estabelecimento de fachada cinzenta, como a maioria costumava ser. Sabia não ser tão caro, mas mesmo assim eles não podiam bancar uma refeição no local. Quem sabe depois de toda aquela maratona improvisada eles não davam a sorte de encontrar algum coração repleto de idealizações de bem geral que não lhes pagasse alguma coisa?

Discretos, eles entraram, acenando silenciosos para os atendentes, velhos conhecidos que não apreciavam muito os dois problemáticos. Quietos, deixaram que escolhessem uma mesa, não muito empolgados em oferecer o cardápio. Manter a distância era a primeira orientação que novos funcionários recebiam sobre eles.

Ao lado de um homem acompanhado de duas crianças, os sujeitos que nunca revelavam seus nomes verdadeiros, se acomodaram tranquilamente. Todos dividiam uma refeição quente e chás gelados, distraindo-se e conversando como uma família normal.

O homem, que já havia os notado ao entrar, ofereceu um aceno de cabeça, respondido de igual forma. Era rígido em sua postura, os anos sofridos como patinador conservando os ombros alinhados, o tipo de pessoa que jamais teria um problema de coluna.

— Dia cheio? — Ele iniciou a conversa. Embora afastado das competições há algum tempo, as pessoas ainda conservavam aquela admiração pelo antigo herói, que tentava retribuir da melhor forma possível a atenção admirada que recebia. Ah, aqueles dois adoravam Yakov Feltsman.

— E como, camarada! Acabamos de entregar um serviço!

Os funcionários olharam para a dupla com desconfiança e reprovação. Queriam poder avisar ao técnico sobre a natureza nada convencional dos serviços deles, mas não podiam se arriscar com eles literalmente do lado.

— Bem sucedido, espero — sorriu Yakov, antes de dar um gole em seu chá. A filha estava mais interessada na pequena porção de batatas que comia e o outro garoto prestava atenção apenas por curiosidade inocente. — Aceitam um caramelo?

Ambos se inclinaram para aceitar o doce. Era sempre bom ter algo em mãos para adoçar a dura vida que levavam.

— Obrigado. — Enfiando o doce na boca, ele continuou, sua fala atrapalhada pelo mastigar contínuo. Aquela bala colava os dentes. — E é, até que sim… Só que o cliente chegou antes — confessou, olhando ao redor. Se já não estivesse alinhado, todos notariam Yakov enrijecer.

— Não deve ter ficado muito feliz, imagino.

— Não — ele acabou rindo. — Mas nos livramos, no final.

Yakov sorriu suave, o franzir das sobrancelhas acalmando o aperto. Parecia muito satisfeito.

— Vocês trabalham com o quê? — O pequeno garoto de cabelos prateados questionou, curioso com o tipo de serviço que custava tanto trabalho e prazos apertados.

— Mecânica — responderam juntos, um sorriso largo  e esquisito que não inspirava muita confiança. Oleg Nikiforov estranhava como Yakov não havia ainda notado a esquisitice daqueles dois.

— É um trabalho puxado. Vocês devem estar morrendo de fome. Por gentileza... — Acenando, para os atendentes, eles logos revezaram olhares desconfortáveis, até uma moça de cabelos curtos e escovados para trás decidir se aproximar, evitando a todo momento olhar para os dois homens na mesa ao lado.

— Pois não?

— Poderia, por favor, trazer um cardápio para esses dois? Gostaria de lhes pagar uma refeição.

A moça queria, de todo coração, alertar o pobre Yakov Feltsman, mas estava de mãos atadas. Concordando em silêncio, ela se afastou, um pouco contrariada.

— Ora, camarada, é muita gentileza sua, não precisava… — O homem dizia que não, mas o tom entregava o oposto. Mesmo assim, Feltsman sorria. Nikiforov estava completamente confuso. — Nós não queremos abusar.

— Não é abuso nenhum. Escolham o que quiser e do valor que quiserem, eu insisto. É sempre uma satisfação apoiar o trabalho bem feito.

Quê? Mas ele sequer sabia o que os ditos mecânicos haviam feito!

— Infelizmente não deu tempo de fazer uma inspeção no estofado…

— Mas demos um bom trato na lataria.

Nisso, Yakov gargalhou, chamando atenção da filha Margosha, que sorriu para o que não sabia ser tão engraçado, e de Oleg, ainda tentando entender aquele entusiasmo todo.

— Garçonete, por gentileza, tragam uma bebida para nossos bons trabalhadores, aqui! Eles merecem!

Ninguém entendeu aquele bom humor e simpatia exagerados. Ninguém precisava saber que Yakov é quem tinha contratado o serviço daqueles bons trabalhadores.


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Notas finais do capítulo

Não machuque a filha de Yakov Feltsman, ou ele machuca você. Ou seu carro.
O cara falsificou a paternidade da filha, ele teria a postura não muito honesta de pagar terceiros para sucatear o carro do chefe :v
Novamente, vale lembrar: não compactuo com nada disso, pfvr.

Curiosidades do capítulo:

— O filme Velas Vermelhas aparentemente foi inspirado em um conto de mesmo nome. E, curiosidade extra: "Sobre a mesa ninguém tem demasiado, pelo mérito, cada um é recompensado"; aparentemente, é em cima disso que o evento - um barco a velas rubras - ocorre todo ano, em celebração à formatura dos estudantes. Esse evento acontece em São Petersburgo, e o barco passeio pelo Rio Neva.
— Anastasia Vertinskaya ficou famosa através desse filme, com apenas quinze anos de idade. Veio a protagonizar diversas outras heroínas da literatura russa para o cinema e teatro, sendo conhecida como Greta Garbo Soviética.
— "Moya" é "minha" em russo. É, foi totalmente uma frescura minha :v
— Toda essa questão de peso é um preconceito subentendido que os atletas sofrem. Isso porque nada de fato vaza para a mídia. Por ser um meio artístico muito enraizado e conectado com o balé clássico, o padrão de um estende-se ao outro.
— Não sei se vocês sabem, mas muitos "gados de corte" são exibidos em leilões para posterior venda.
— Yakov "só" pediu que os pneus fossem prejudicados, o resto foi ~cortesia :v É que muita gente ainda gosta de Yakov Feltsman, sabe como é xD

Espero por você no próximo capítulo! owo



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