Carax estava devidamente selado. O dispositivo entregado pela garota em Adhara era muito mais potente do que parecia. Agora, o homem que muito atormentou Athy, não passava de um ser decrépito sem magia alguma.

— Você rouba mana das pessoas para selar contratos, não é? – Lucas perguntou, apenas para confirmar suas próprias suspeitas. – É impossível alguém como você conseguir um acordo, mas, se por acaso alguém com mana pura solicitar, certamente nenhum demônio recusaria. Afinal, é o alimento preferido deles.

O homem de meia idade olhou para Lucas enraivecido. Depois de tantos anos fugindo dos Venatores, não esperava que fosse pego justamente agora, quando estava prestes a seguir para a próxima parte de seu plano.

— Os caçadores agora contratam crianças? Porque não vieram atrás de mim eles mesmos? Estão com medo? – Respondeu Carax com um sorriso, ignorando a pergunta anterior de Lucas.

— Não seja estúpido, não trabalho para aquela guilda nojenta. Tenho meus próprios motivos para estar atrás de você.

— E quais são eles? Por acaso eu peguei algo que te pertence? – Carax aumentou o sorriso, totalmente alheio a verdade de que ele, de fato, havia tomado algo importante para Lucas. – O que acha de um acordo? Se você me soltar, posso devolver qualquer que seja o que lhe pertence. – Respondeu enfim, certo de que nunca havia visto Lucas em sua vida, mas acreditava que o adolescente fosse idiota para cair em sua conversa.

— Você acha mesmo que eu concordaria com algo sem sentido como isso? Tem sorte de eu não matar você... – O jovem mago se aproximou mais de Carax, sua expressão se tornando mais sombria e nefasta. – E só para que você saiba, vai me dar o que eu quero com ou sem acordos.

Uma sensação fria subiu pela espinha de Carax. Lucas aparentava ser um adolescente, mas, ás vezes, suas expressões e atos o deixavam parecido a um animal selvagem que espreitava nas sombras, esperando sua chance para dar o bote em sua presa. Um lobo solitário, indomável e insaciável. Ali, o homem entendeu que Lucas era alguém que ele jamais deveria ter enfrentado. A determinação de Carax foi, facilmente, quebrada.

— O que quer de mim, afinal? Porque me persegues e se mete em meus planos?

Lucas o olhou enigmático. Os olhos que se assemelhavam as mais puras pedras de rubi, o analisavam profundamente, de certo, procurando pelas mentiras em suas falas.

— Existe uma torre em uma cidadela perto de Antlia. Há algo lá dentro que eu quero recuperar e você possui a chave para isso. Eu quero essa chave.

— A velha torre do relógio? Como sabe sobr... espere – O olhar obsidiana¹ de Carax aclarou-se. – Foi você? Você estava lá frequentemente?

Lucas não respondeu, mas seus olhos diziam a verdade. Era quase como se Carax pudesse ouvi-lo resmungar um “Sim, algum problema?”. Então, depois de tantas dúvidas, finalmente entendeu o porquê a princesa parecia cada vez mais saudável. Esse garoto devia ser o motivo. Ele definitivamente descobriu sobre a garota e, constantemente, ia visita-la. Isso era um problema. Se mais alguém sabia sobre ela, os planos que Carax formou com seu empregador estavam em risco.

— Ninguém deveria entrar naquele lugar, como você conseguiu?

— Isso é irrelevante. Me diga logo onde está a chave para o selo. Minha garota está esperando há tempo demais.

— Sua garota...? – A expressão de Carax se tornou mais risonha, logo seus murmúrios se tornaram gargalhadas. - ... Eu... eu entendo agora... Ela roubou o coração do jovem mago não é? – Continuou a gargalhada. – Deuses... eu compreendo, ela é realmente uma coisinha linda não é? Tão parecida com a mã...

Não terminou a frase. Lucas, tomado pela raiva, desferiu um soco no rosto do homem. O adolescente não era apenas bom em magia, mas também possuía uma grande força. Um filete de sangue escorreu pelos lábios, agora, avermelhados de Carax. Embora o soco fosse forte o suficiente para quebrar alguns dentes, Carax ainda mantinha a expressão risonha no rosto, deixando Lucas ainda mais enraivecido.

— Pode me bater, mas garoto... creio que você está um pouco atrasado demais.

— O que quer dizer? – Perguntou furioso.

— A chave que procura para abrir a prisão da sua namorada, já foi passada adiante para meus associados...

...

O tempo passou tão lentamente que quase perdera a esperança. Quantos dias havia que Lucas a tinha deixado? Athy não sabia, mas tudo estava tão devagar sem ele por perto. A impressão que tinha era que fazia meses que o mago partira. O algoz que a atormentava não voltou e Athy tinha quase certeza que não voltaria a vê-lo.

Para marcar o tempo, a garota começou a riscar a parede com um pedaço de carvão que encontrara enquanto vasculhava o quarto. Contou dois conjuntos de seis traços na vertical e um traço na horizontal, cortando os riscos. Um novo conjunto estava sendo formado, mas esse continha apenas três traços. Dezessete. Lucas tinha partido a dezessete dias, e também esse era o número de dias em que Athy começou a sonhar.

Seus sonhos normalmente eram apenas vagas imagens borrosas, nada fazia sentido neles, então, a adolescente não deu muita atenção. Mas desde que Lucas partira, as imagens têm mudado.

Na primeira noite em que sonhou, era apenas uma pequena garota brincando com duas pessoas mais velhas. Um homem com cabelo dourado e olhos azuis de cristais como os dela e uma mulher com longo cabelo encaracolado, também dourado, contudo, os fios eram mais brilhosos e um pouco mais claros. Os olhos, no entanto, eram como pedras de turmalina². Rosas, intensos e brilhantes.

A mulher possuía um sorriso gentil e amável e o homem, apesar da expressão rude, possuía um olhar tão gentil como o da moça que se assemelhava a uma fada. Athy acordou aquela noite com um intenso sentimento de saudades. As lagrimas inundaram o rosto da garota que pranteou por horas a fio.

Nas outras noites os sonhos eram similares, apenas mudavam os locais, mas, desta vez, mais pessoas apareciam. Uma mulher vestida com roupas negras e um avental branco. Cabelo castanho e olhos azuis celestes como o céu diurno e um cavaleiro de olhar gentil, com cabelo de vermelho intenso e olhos cinzas tempestuosos. Pessoas amáveis e que sempre lhe sorriam.

Mais uma vez, Athy chorou de saudades.

Apesar de não conseguir lembrar seus nomes, Athy sabia. Sabia que eles faziam parte de sua vida. Que eram sua família.

Mais algumas noites e Athy sonhou novamente e, desta vez, o sonho a fez pensar por muito, muito tempo. Ela havia se esgueirado pelos corredores de um imenso palácio; não podia ter feito, mas fez mesmo assim. Havia alguém do seu lado, mas não conseguia ver o rosto. Enquanto andavam, encontraram um grupo de pessoas vestidos com mantos iguais. As cores eram escuras, mas a marca dos magos se destacava em tons de verde. Aqueles eram os magos que trabalhavam para o império.

Ela e a pessoa que estava ao lado se esconderam nos arbustos enquanto observavam o grupo passar. Riram um para o outro, como se o que estivessem fazendo fosse algo que não deveriam fazer.

“-Princesa, deveríamos voltar logo. Seu pai vai brigar com você novamente se sumir como da última vez.

— Hm, certo. Está quase na hora do chá...”

A criança que estava com ela a chamou e Athy, prontamente, se colocou a segui-la. Todavia, os pés pequenos pararam antes mesmo de dar dois passos para longe. No meio dos magos havia um garoto, não muito mais velho do que ela. Também não era incomum. Crianças com aptidão a magia, normalmente iniciavam cedo na Torre Negra. Mas o que chamou sua atenção, foram os fios negros como a noite e o olhar vermelho intenso.

Athy tinha certeza, jamais vira olhos tão fascinantes.

Ao acordar na manhã seguinte, a garota não chorou, todavia, a saudade que sentiu foi muito maior do que já havia sentido até então. Ela, agora, sabia de duas coisas. A primeira era que ela era uma princesa. A segunda e mais importante, Athy já havia encontrado com Lucas antes.

...

Encontrar não seria bem a palavra certa. Para ser específico, apenas ela o tinha visto, ele, porém, nunca soube de sua existência. Aos poucos, Athy ia recordando mais e mais coisas. Não sabia o motivo de, só agora, poder recordar o passado, mas imaginou que a magia que selava suas memórias estava, no mínimo, se enfraquecendo.

O colar que Lucas lhe dera antes de sair ainda funcionava bem. Certa vez, desejou tomar chá, como havia feito naquele dia com o adolescente e uma xícara apareceu em sua frente. O gosto do chá, no entanto, era diferente. Doce, mas não enjoativo e sua fragrância lembrava-lhe flores desabrochando.

Subitamente, sua mente vagou para a lembrança da mulher que, constantemente, visitava seus sonhos. Sabia que era sua mãe e, então, lembrou-se de uma conversa que tivera com a progenitora.

“— ... brilhantes olhos vermelhos. Tão bonitos como rubis. Athy quer ser amiga do garoto mago.

— Vejo que nossa pequena princesa se encantou com o jovem mago.”

A mulher de cabelo castanho falou com um singelo sorriso. Athy lembrou-se da expressão divertida nos olhos de sua mãe e da donzela.

“— Gostaria de conhecer esse garoto. Ele deve ser realmente muito bonito, afinal, o coração de minha filha foi roubado tão facilmente.

— Mama! – A princesa corou. – Athy só quer ser amiga dele.

— Sim, claro. Porque sinto que essa história vai muito mais longe?”

As mulheres riram da pequena criança, claramente se divertindo com a vergonha da garota. Athy, porém, não ficou chateada. Realmente queria se aproximar do garoto que chamou sua atenção. Era como se um imã a estivesse puxando e ligando a ele.

Ela poderia passar horas repassando essa cena em mente, mas quanto mais se lembrava, mas falta sentia. Ela queria ver Lucas o mais rápido possível e contar a ele o que se lembrava. Queria voltar para casa e para os braços das pessoas que amava. Mas, mais do que tudo, queria dizer a mãe que, finalmente, conseguira, não só a amizade, como o amor daquele garoto que a encantou.

Athy sorriu. A esperança em seu coração crescia a medida em que se lembrava. Pessoas, lugares, amigos. Um festival. Definitivamente se lembrava de um festim.

“ ­— Princesa, eu não sou o suficiente?

— .... o que está dizendo?

— A princesa definitivamente não precisa da amizade daquele garoto, posso ser quem você quiser, fazer o que você quiser. Então permaneça comigo para sempre.”

A lembrança pegou-a desprevenida. Um sentimento amargo lhe invadiu de repente, como se agulhas afiadas pinicassem seu corpo. A sensação não era agradável e Athy se perguntou o porquê ter se incomodado com a voz da pessoa. Não conseguia se lembrar do rosto e a entonação da voz era disforme, mas, com certeza, não era de um adulto.

Forçou a mente ao máximo, mas, sem sucesso, por fim, desistiu. Com isso, apenas manteve a mente trabalhando para guardar as lembranças que já possuíam. Havia tantas coisas que gostaria de contar a Lucas agora. Seus olhos pousaram no grande relógio que a tempos era seu companheiro.  Os ponteiros estavam quase nos lugares que marcavam sua hora preferida do dia.

Imaginou se Lucas pararia o tempo novamente, apenas para não perder o costume e entraria no quarto, desta vez, pela porta. Ela sabia que Lucas definitivamente voltaria com a chave para solta-la.

Os ponteiros marcaram o horário.

Dez para as seis de uma tarde qualquer.

Athy suspirou. Suas esperanças esmorecendo.

Quando pegou o carvão para marcar mais um dia na parede, a jovem, subitamente, parou. Sons foram ouvidos através da porta que, há muito tempo, estava selada. Com o coração acelerado e olhos expressando surpresa e esperança, Athy manteve-se em seu lugar enquanto esperava para ver o rosto que mais sentia falta.

Lucas, finalmente, viera cumprir o que prometeu.

A porta, por fim, se abriu, revelando o rosto da pessoa que a levaria de volta para casa.

— .... Finalmente... finalmente posso vê-la de novo....!

...