Soulmate escrita por lostcullen


Capítulo 1
Soulmate - capítulo único




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A vida na cidade grande não estava sendo tão fácil como eu idealizara. Recomeçar e tentar fazer as coisas funcionarem enquanto se divide um apartamento com seus dois melhores amigos de infância parece promissor no início – quando é apenas uma ideia. Porém, o lugar que antes parecera espaçoso e cheio de ecos, estava cada vez menor à medida que nossos pertences iam se acumulando em qualquer canto que cabiam, pois ainda não tínhamos grana para a mobília que faltava. Nossa organização do espaço se dava de duas maneiras: os objetos que iam se equilibrando precariamente em pilhas espalhadas pela sala, ou aqueles que seguiam empacotados dentro das caixas de papelão. Além da falta de motivação para lidar com todas aquelas caixas, havia o agravante de que o armário que pedimos pela internet, antes da mudança, ainda não tinha chegado.

Aquela casa realmente estava um caos.

Todos os dias, após o expediente de meio período em uma cafeteria, eu tinha que caminhar cuidadosamente e desviar de todas as pilhas prestes a cair para poder – finalmente – me jogar no sofá e fumar os cigarros que eu futuramente me arrependeria. No momento em que eu pegasse a bicicleta enferrujada e tivesse que pedalar com o dobro de força necessária para chegar ao trabalho, eu me arrependeria de cada trago. Meu Deus, com certeza... Contudo, eu sempre preferia deixar esse tipo de estresse para o eu do futuro lidar. Porque, a partir do momento que chegava em casa, tudo o que eu queria era sentar no sofá e deixar a nicotina fazer o seu trabalho. E óbvio: relaxar sozinho antes que Emmett e Jasper voltassem de seus respectivos empregos de meio período e começassem a me importunar do jeito que só os dois eram capazes. Ninguém fazia isso melhor que eles.

Era terça-feira, como eu bem fui lembrado assim que Emmett passou pela porta. Nem para dizer um “oi”, esse filho da puta.

— Cullen! Sabe que dia é hoje? – Ele anunciou sua entrada jogando o primeiro objeto que encontrou em mim.

Soltei um suspiro audível. Claro que eu sabia. Era impossível esquecer qual era o dia em que eu deveria me martirizar em frente à tela de um computador e responder a uma lista interminável de e-mails de clientes insatisfeitos. O dia de Emmett realizar esse trabalho insuportável tinha sido o anterior. E era por isso que ele estava de bom humor. Então, eu mal podia esperar que o amanhã chegasse para eu poder descontar o meu ódio por essa tarefa ao passa-la para Jasper. Sei que ele me xingaria mentalmente assim como estava xingando Emmett. No nosso caso, definitivamente o sonho do oprimido era se tornar o opressor. Portanto, eu sabia que o dia seguinte seria mais feliz.

Os e-mails eram referentes ao nosso mais recente investimento, que cada dia se provava dar mais trabalho que gerar retorno. O projeto consistia em um aplicativo de relacionamentos, que era incrivelmente mais fracassado do que a vida amorosa de seus três criadores. Como algum dia pensamos que isso poderia dar certo? As reclamações eram inúmeras e diárias.

Algumas delas eram referentes ao desenvolvimento de aplicativo em si; outras, sugestões de melhorias; mas a maioria era de pessoas querendo seu dinheiro de volta só porque o aplicativo prometia a elas que encontrariam sua alma gêmea. É sério que tem gente que acredita nessa merda no século XXI?

O nome e o slogan eram obviamente uma estratégia de marketing de Jasper. Só podiam ser. Ele alegou que chamaria a atenção por que as pessoas chegaram num nível de desespero tão grande ao ponto de recorrerem à uma tecnologia que lhes desse alguma garantia de amor. Ele não estava errado nisso, só apenas não havia vislumbrado, com toda sua genialidade, que as pessoas estavam igualmente desesperadas para querer o seu dinheiro de volta por causa de qualquer coisa que não cumprisse com o que prometia.

A consequência disso estava na caixa de entrada lotada do e-mail aberto no computador que eu encarava, já exausto antes mesmo de tentar ter respondido uma mensagem mal criada.

Havia pelo menos umas vinte. Em uma delas um cara me jurava de morte. Esse tipo era mais comum do que eu imaginara, já tinha até me acostumado. Portanto, apenas seguia o padrão de me desculpar enquanto xingava mentalmente o desgraçado.

Para a maior parte das queixas, já tínhamos uma resposta pronta. E outras necessitavam de mais cuidado.

Dessa forma, eu sempre costumava deixar o melhor para o final. O último e-mail que me esperava era o que continha o assunto “Processo”. Não era de nenhum modo uma palavra super agradável de se ler. Então, a evitávamos a todo o custo, pois mal tínhamos dinheiro para terminar de mobiliar um apartamento e quem dirá bancar um advogado...

Isabella Swan

21/05/2020 10:24

Para: soulmatesac@blobmail.com

Processo

          Querida equipe Soul Mate,

Venho através deste e-mail expressar o meu descontentamento com o aplicativo em questão, por se tratar de propaganda enganosa. Gostaria de lhes informar que sou uma advogada muito insatisfeita com o serviço prestado e exijo reparação de danos. Ao longo do tempo utilizando seus serviços, não somente sofri um atentado contra a minha propriedade material, sendo essa o meu dinheiro (nove reais e noventa centavos cobrados pelo aplicativo), mas também sofri danos morais por ser submetida à encontros que me expuseram ao ridículo, degradando permanentemente minha imagem e autoestima.

Gostaria de no mínimo receber o valor do reembolso pelo dinheiro que me foi tirado de maneira injusta e ardil.

Espero que vocês possam resolver da maneira mais eficiente possível o meu problema e aguardo uma resposta o quanto antes. Caso o contrário, peço que leia o assunto da mensagem novamente para saber o que lhe aguarda.

                                                                                      Atenciosamente, Isabella.

Com certeza um dos e-mails mais passivo-agressivos que recebi ao longo desses meses. Elaborei minha resposta cuidadosamente e apertei para enviar:

Equipe Soul Mate

21/05/2020 13:56

Para: bellsswan@blobmail.com

Estimada Isabella,

Nós da Equipe Soul Mate, sinceramente nos desculpamos pelo aplicativo não corresponder às suas expectativas sobre ele. Sugerimos que leia novamente nossos “Termos de uso e Política de Privacidade” clicando aqui. Destacamos a impossibilidade de devolução do valor sob qualquer justificativa.

Lembre-se que não nos responsabilizamos por infortúnios que venham a acontecer durante as conversas, dado que as mesmas ficam a cargo e julgamento do usuário. Também sempre estimulamos que o primeiro encontro seja em público, pois nos preocupamos com a segurança física dos mesmos.

Gostaria de reportar uma conta? Clique aqui.

Perguntas frequentes? Clique aqui.

Compra de pacotes especiais? Clique aqui.

Sinto muito que até o momento você tenha se encaixado no 1% de clientes que ainda não encontraram sua alma gêmea. Não desista!

                                                                        Atenciosamente, Equipe Soul Mate.

O slogan sutil e a porcentagem inventada eram claramente mais uma ideia suja de Jasper para colocar a culpa na má sorte dos usuários ao invés de admitir que o aplicativo era programado por dois idiotas e um publicitário fracassado. De certo, o “não desista” gerava mais irritação do que soava como um incentivo. Nós éramos uns trapaceiros modernos, mas quem sabe trapaceiros que no mês seguinte pudessem finalmente trocar o armário embutido da cozinha e consertar a goteira do corredor.

Coitada de todas as Isabella’s, que sentiam precisar de um aplicativo de relacionamento fajuto para encontrar algo que nem existia. E coitado de todos os Edward’s, Jasper’s e Emmett’s, que precisavam de um aplicativo fajuto para complementar a renda e responder centenas de e-mails com ameaças de processo e morte. Talvez a vida tenha se tornado difícil como em um tipo de castigo do universo por estarmos brincando com a crença de quem deseja encontrar um amor puro e eterno. Se existe alguém que vá nos punir numa espécie de vida após a morte, certamente vamos pagar por um preço muito mais alto do que os nove reais e noventa centavos que cobramos pelo amor que prometemos e nunca vamos ser capazes de dar.

Mais uma preocupação que eu deixaria para o Edward do futuro resolver. Já o e-mail da suposta advogada, eu passava de bom grado para as mãos de Jasper. Bem que ele merecia uma punição divina extra por ter criado essa resposta idiota e ainda nos ter obrigado a usá-la toda vez que alguém reclamasse que não achou seu par.

Eu estava pronto para encerrar minhas atividades, voltar para o sofá e encarar a mancha retangular que existia na parede onde deveria ser uma TV de tela plana. Os rastros do antigo proprietário realçavam ainda mais as ausências das coisas que deveriam existir, mas que ainda não tínhamos. Por hora, eu não me importava. Eu vivia para o pequeno prazer de sentar no sofá e encarar a maldita mancha.

Um som delicado cortou meus pensamentos. Ah, merda. Mais um e-mail indesejado. Eu nem pude fingir não escutar e desligar o computador direto na tomada, pois Jasper estava na sala bebendo uma cerveja. Bem atento e me fiscalizando, com certeza. Ele lançou um sorriso presunçoso.

— Eu tô de olho, Cullen. Nem adianta trapacear. Mentir pra mentiroso não rola.

Eu preferia assinar um contrato vitalício que incluía lavar todas as louças da casa do que responder esses e-mails idiotas uma vez por semana. Mas não funcionaria, porque eles tinham o mesmo sentimento que eu sobre as correspondências eletrônicas relacionadas ao aplicativo.

Suspirei e voltei a encarar a tela para ver a mensagem da suposta advogada Swan. A mulher era rápida e obstinada, eu tinha que admitir isso.

Isabella Swan

21/05/2020 13:58

Para: soulmatesac@blobmail.com

 

          Queridíssima equipe Soul Mate,

Eu reitero o direito de obter no mínimo meu dinheiro de volta, pois o aplicativo alia-se com propaganda enganosa para tirar dinheiro alheio valendo-se de má fé.

                                                                                      Atenciosamente, Isabella.

Respondi com a mesma rapidez:

Equipe Soul Mate

21/05/2020 14:01

Para: bellsswan@blobmail.com

Estimadíssima Isabella,

Sinto muito, mas reitero que não é possível sob nenhuma justificativa a devolução da quantia. Creio que no curto espaço de tempo que você utilizou para ler e enviar sua mensagem, não foi possível checar os termos e condições de uso adequadamente. Peço que verifique de forma cautelosa para poupar o tempo de nossos atendentes.

                                                                        Atenciosamente, Equipe Soul Mate.

Tive que gargalhar alto com essa de “atendentes”. Estava tentando me imaginar engravatado em uma central de atendimento ao consumidor do lado de Emmett e Jasper.

Cada vez eu estava aprimorando mais a minha habilidade de ser educado e impessoal ao escrever essas respostas. Esperava pelo menos, de alguma forma, que minhas palavras chegassem na casa dessa advogada com a mesma energia de ódio que eu as enviava. Provavelmente nem advogada era, bem no fundo eu sentia que ela também estava apenas querendo se dar bem às custas de alguma coisa. Citando Jasper: “Mentir pra mentiroso não rola”.

Queria escrever um e-mail dizendo que ela podia entrar em qualquer site do universo que lhe prometesse um amor qualquer, e ainda assim, não o encontraria. Não porque amor não existisse, mas porque não era digna. Que a culpa era sua e não do aplicativo.

Eu bem queria que essa fosse a verdade — que a culpa fosse dela. Mas não era... Mais difícil que mentir pra mentiroso, é mentir para si mesmo. Fazer o quê? O aplicativo era mesmo uma merda... Porém ainda tinha gente que comprava. E só o que eu tinha que fazer era ajeitar os bugs, ler e-mails e trabalhar naquela cafeteria a umas ruas de casa. Nada como viver o sonho americano...

Eu ri, mesmo sem saber o porquê.

— Vamos, Ed. Levanta antes que você enlouqueça de vez com isso e acabe xingando alguém. — Jasper colocou a mão em meus ombros. — Deixa que amanhã eu lido com isso.

— Melhor lidar mesmo. A gente deu sorte por ainda não termos sido processados. Mas essa daí tá quase. — Apontei para a tela do computador. Jasper olhou e soltou uma gargalhada do “poupar o tempo de nossos atendentes” também, eu podia apostar.

— Você é o melhor, Cullen. Só falta tomar um banho porque ainda está cheirando à café. – Jasper fez uma careta.

Ele estava certo. E eu estava tão enjoado de sentir aquele cheiro que não queria saber de beber café nunca mais. Mas pararia só depois de sair daquele emprego, porque tínhamos direito de consumir um pouco de graça. Eu não negava nada contanto que fosse gratuito.

***

 

O dia seguinte chega para todos e não haveria e-mails grosseiros de usuários insatisfeitos para responder.

Era bom ser a pessoa que tinha o emprego mais próximo de casa, pois não precisava me colocar em uma disputa pelo chuveiro, pela torradeira ou qualquer outro objeto usado durante a manhã. Eu podia ficar até mais tarde na cama também – não dormindo, claro, porque as brigas matinais de Jasper e Emmett me mantinham acordado. Às vezes eu achava ser proposital, mas eles não eram tão maus assim, apenas dois idiotas que não conseguiam passar uma manhã sem brigar.

Assim que eu escutava a porta principal bater, sabia que era seguro me deslocar pela casa e fazer o que tinha para ser feito. O último passo era me arrastar até o térreo e montar na bicicleta enferrujada.

 – Vamos lá, garota. – Eu tentava ser gentil com ela todas as manhãs, não me custava nada. – Eu sei que você é boazinha e não vai me deixar na mão, não é?

E com as palavras mágicas, eu subia e rezava para que nada que eu não soubesse consertar acontecesse pelo curto caminho. Com a sorte que eu tinha era melhor não arriscar...

A cidade era tão bonita que às vezes compensava o estresse. A luz matinal era filtrada pelas árvores que percorriam toda a rua. E as sombras de mil folhas se projetavam delicadamente contra o meu corpo em movimento. Se eu fechasse os olhos, conseguiria sentir o efeito da luz vermelha do sol dançando contra as minhas pálpebras, transicionando para o azul tranquilo e refrescante da sombra. Era pacífico. Nos lugares menos movimentados, eu até me dava ao luxo de experimentar essa sensação por um segundo ou dois.

Se eu olhasse para cima, era fácil de imaginar que eu estava de volta à minha cidade natal, pois as árvores eram parecidas. Então era só virar à esquerda depois da praça e estar na casa dos meus pais novamente, muito simples. Quase podia me iludir pensando nessa possibilidade, mesmo que ela estivesse do outro lado do país. Tentava não me apegar muito nisso para não ser tentado a largar tudo e voltar para um lar estável, amoroso, organizado e com comida de verdade. Não que eu não amasse meus amigos. Eu amava e sabia que eles também, nós só não admitíamos uns para os outros. E eles também não eram a minha mãe, que fazia uma comida especial sempre que eu pedisse (ou quase isso).

Me sobrava pouco tempo para devaneios no meu trajeto até o trabalho, pois ele era bem curto. Mesmo levando em conta a distância pequena, graças a um vício nada saudável, meus pulmões gritavam por socorro todos os dias, o que gerava risadas toda vez que eu chegava arfando na cozinha do estabelecimento. Eu devia largar esse hábito.

Coloquei o avental e me encaminhei para o meu posto habitual. Apesar de não ser o que eu almejava como destino final em uma cidade grande, trabalhar naquele ambiente era até divertido. Não era um lugar muito movimentado, mas possuía uma atmosfera agradável e os clientes eram fiéis. Era bom ter uma rotina que me permitisse ver rostos conhecidos regularmente e, pouco a pouco conhecer seus nomes – eu os anotava nos copos antes de chamar para entregar os pedidos, o que ajudava a decorá-los – e não apenas ver faces passando por mim como borrões. Sem nome, girando na massa borbulhante que era o caos da cidade.

Às vezes eram as mesmas pessoas com suas peculiaridades e rituais matinais, algumas eu já até decorara – o senhor que passeava com o cachorro, o prendia do lado de fora, pegava um expresso e saía rapidamente para desamarrar o cão e retomar o passeio; as mulheres de meia idade – Rachel e Anna – que sempre faziam questão de tomar café da manhã juntas antes de irem para lados opostos e se despedirem com um beijo apressado; o homem de terno e gravata que pedia capuccino com menta e tomava sozinho, na mesa em frente à janela.

Normalmente, o movimento era fraco e sobrava tempo para observar os clientes e fazer fantasias sobre o que acontecia em suas vidas quando deixavam a cafeteria. Era um passatempo que eu compartilhava com Alice, que dividia o balcão comigo no turno da manhã. Ela era muito divertida, uma energia ao mesmo tempo leve e elétrica. A garota com certeza combinava com a vida agitada da cidade, pois era igualmente viva. Ela me jurava que não bebia café. Eu tinha minhas desconfianças, mas julgava que trabalhar por dois anos servindo e sentindo o cheiro da bebida, devia deixar alguma sequela.

Ela tagarelava a manhã inteira e, não importava o assunto, eu adorava ouvir. Eles iam desde o filme que a mais fez chorar – Titanic – até o que ela jantou noite passada – macarrão. E só parava quando chegava um cliente. Sempre depois de atendermos alguém, ela vinha saltitando em minha direção e se colocava na ponta dos pés para sussurrar energeticamente em meus ouvidos:

— E aí? O que acha? – Isso, na nossa língua, significava que deveríamos teorizar sobre a vida de quem que tenhamos acabado de atender.

Ela parecia uma fadinha que comeu açúcar por engano e não parava de se mexer pra lá e pra cá enquanto esperava pela minha análise. Alice sempre compensava meus momentos de silêncio, que eram muitos, ou com uma torrente de palavras ou movimentos repetidos. No momento, ela batia com a caneta no balcão sem parar, o olhar fixo aguardando minha resposta como se aquilo fosse a coisa mais importante do mundo e, caso eu não respondesse nos próximos trinta segundos, ela teria um colapso nervoso e desmaiaria ali mesmo. Então, seria o momento de reanima-la com um “eu acredito em fadas” para o estabelecimento todo ouvir. Não queria tamanha atenção voltada para mim. Portanto, elaborei algo rapidamente sobre um senhor que apenas pediu um café simples:

— Ele parece triste, acho que é viúvo e ainda mantém a aliança. Então eu... – Meus pensamentos foram interrompidos pelo som do sininho na porta, que indicava a entrada de alguém no estabelecimento. Geralmente mal reparava em quem chegava até o momento do atendimento. Mas daquela vez, o mundo todo se resumiu no som daquele sino indicando a entrada da garota mais bonita da cidade.

Alice rapidamente percebeu a mudança de foco da minha atenção, pois estava sempre atenta. Eu observava pela minha visão periférica seu sorriso de lado ao me ver demonstrando um claro interesse pela menina. Ao longo dos meses trabalhando aqui, ela me empurrava continuamente para todo o tipo de garotas que me olhavam, mesmo que por uma simples fração de segundo. Quando sentia Alice me cutucando com o ombro, eu já sabia que se tratava de alguém que ela gostaria de me empurrar para um possível romance.

“Edward, eu sinto as coisas!”, ela dissera na semana anterior. “Essa daí não desgruda o olhar de você nem um segundo. Toda hora vem aqui pedir mais açúcar. Você realmente acha que ela coloca oito sachês em um copo de suco?”. Eu sabia que as meninas me davam mole, eu só nunca ficava afim de ninguém o suficiente para corresponder de alguma forma. Portanto, eu só ria e dava de ombros. Sentia muito que ela se empenhasse tanto em me arranjar alguém, a frustração dela era palpável. E engraçada.

“Você gosta de meninos então?”, ela me perguntara inesperadamente, um tempo depois do dia dos sachês.

“Hm, acho que não. Por quê?”

“Ah, Edward! Você é insuportável... Eu só queria torcer por histórias de amor alheias nessa cidade. A minha vida romântica tá no ralo, eu só espero que a de alguém dê certo. Eu tô apostando em você”. Ela estreitara os olhos para mim de uma maneira que eu julguei que deveria ser um tipo de ameaça. Alice colocava muita intensidade em cada uma das suas falas e, o que para mim parecia ser uma brincadeira, ela provavelmente levava bem à sério.

— Você a conhece? – Questionei sobre a garota que entrava. Alice trabalhava aqui há mais tempo que eu, então esperava que dissesse que sim, porém balançou a cabeça indicando que não.

Quando me dei conta, a menina estava na minha frente. Seus olhos castanhos inquietos, esperando uma resposta. Ela pigarreou para chamar minha atenção.

— Ah, sim... Bom dia! O que deseja? – As palavras saíram desajeitadas e robóticas.

— Um capuccino, por favor. – Seus olhos se tornaram gentis ao perceberem minha vergonha por estar desatento. Com certeza ela deveria deixar as pessoas ao seu redor desconcertadas frequentemente. Era possível que estivesse acostumada a mexer com as pessoas dessa forma e sentia solidariedade por coitados como eu.

— Claro, senhora. – Eu disse.

 Alice, incrédula e ofendida, arqueou uma sobrancelha e fez com a boca a palavra “senhora?”, porque a menina devia ter uns 20 anos. Minha colega de trabalho estava mais uma vez frustrada com a minha inexperiência com flertes.

— Hm, quer dizer... Qual o seu nome? Pra anotar no seu pedido.

A menina de olhos chocolate abafou um riso.

Argh... Que constrangedor.

— Claire.

— Tudo bem, Claire. Iremos chama-la daqui a pouco, é só aguardar.

— Meu Deus, que idiota! – A desconhecida vociferou de repente.

Eu e Alice trocamos um olhar, estávamos igualmente perdidos até percebermos que ela havia dito aquilo encarando o celular.

— Precisa de ajuda, sen... Claire?

— Ah, desculpe por isso. É só um babaca que está me irritando. Aqui está. – Ela tirou notas amassadas do bolso da calça jeans e colocou no balcão.

Seria um namorado? Um ex? Me distraí facilmente teorizando sobre ela e a pessoa do outro lado da tela.

— Ah, sim... – Eu disse por fim. Não sabia o que responder e ela não se importou em ouvir, porque já estava do outro lado da cafeteria, murmurando irritada com quem quer que fosse.

E aí? O que acha?— Sussurrou Alice mais empolgada do que o normal – como se isso fosse possível.

Seu corpo todo tremia de empolgação. Eu estava bem empolgado também, precisava admitir.

— Eu só queria ela me xingasse de babaca. – Confessei.

— Meu Deus! – Alice arregalou os olhos e cobriu a mão com a boca, como se aquela fosse a melhor coisa que ela tivesse escutado em séculos. – Meu Deus, o Cullen pode ser sujo! Essa foi pesada... Uau, finalmente você tá animado com alguém! É bem bonitinha mesmo. – Ela me deu a cotovelada de cumplicidade.

— O quê? Bonitinha? Alice... Você viu aqueles olhos? E o sorriso tão espontâneo... – Eu estava exagerando na minha intensidade, porque depois de tanto tempo, achava que Alice merecia uma reação mais animada de minha parte. Eu devia a ela algo a mais do que o mau humor matinal diário. Estava dando uma resposta adequada que correspondesse às suas expectativas de que sentir que torcer pela vida amorosa alheia valia à pena.

Percebi que minhas palavras surtiram o efeito desejado e ela ficou mais animada enquanto continuava a fazer o seu trabalho. Meu Deus, a garota era mesmo uma figura... De vez em quando eu me pegava rindo sozinho. Gostava de imaginar que se eu tivesse uma irmã mais nova, ela seria assim.

Quando eu olhava para Alice, sentia a necessidade de protege-la a qualquer custo. Tendia a pensar que era frágil porque conservava essa vivacidade e inocência, porém tinha que me lembrar constantemente das dificuldades que ela tinha passado até chegar até onde estava, como havia me contado anteriormente. Alguém que, com certeza, não precisava de proteção era ela – muito menos vinda de mim. Alice sabia se virar sozinha e ainda sim preservava seu jeito. Eu a admirava e respeitava muito.

Então percebi que eu estava divagando enquanto ela tagarelava sem parar. Acho que o assunto já tinha mudado e eu nem percebera. Isso acontecia com frequência, pois era impossível acompanhar o ritmo dela. Definitivamente, nós funcionávamos em diferentes sintonias.

Quando o capuccino ficou pronto, escrevi “Claire” com a minha melhor caligrafia – que continuava sendo desastrosa – e chamei pelo nome.

— Ela tá vindo, aja normalmente. – Alice anunciou como se não fosse o esperado um cliente se dirigir até o balcão para pegar seu pedido.

Fingi estar nervoso, parte do meu plano de dar uma emoção a mais para minha colega de trabalho. Novamente funcionou. Da outra ponta do balcão, ela acenou para mim, me incentivando.

— Prontinho, Claire. Tenha um bom dia. – E entreguei o pedido.

Ela encarou o copo e sorriu.

— Letra bonita. – Disse com ironia.

Eu aceitei a crítica, a minha letra era realmente horrível.

— Ah, claro...

— Eu juro, é bonita mesmo. Valeu, hmm, – ela estreitou os olhos. – Edward.

— Hã? Como sabe meu nome?

Claire apontou para o crachá no meu peito, rindo. Eu sempre esquecia que estava usando essa droga.

— Bem observado. – Eu sorri de volta.

Queria que fizesse parte da encenação para entreter Alice estar parecendo um idiota, mas Claire era realmente muito bonita e estava me deixando sem graça. Seus cabelos longos e castanhos caíam em ondas por cima do balcão, eu não sabia como não agir feito um idiota.

Percebi Alice gesticulando para mim, fazendo uma mímica nada discreta para que eu pedisse o número dela. Obviamente, não passou despercebido por Claire – ou por qualquer outra pessoa na cafeteria, na verdade – e ela sorriu novamente. Nossa, o sorriso também era lindo. Por que será que minha mente não estava funcionando direito? Que droga!

Virei na direção de Alice para pedir pra que ela parasse com aquilo. Ela apenas se defendeu dizendo que estava tentando me ajudar e que eu era um desastre. E, no momento em que me voltei para encarar Claire, ela já tinha ido embora. Tão subitamente que nenhum de nós dois percebeu sua partida.

***

Pelo o resto dos dias daquela semana, eu desejara que ela aparecesse e pedisse qualquer coisa para que eu pudesse me redimir pela minha esquisitice, mas não aconteceu. E a vida continuou se arrastando até ser terça-feira de novo... Mais conhecida como “o fatídico dia de responder e-mails”. Era, portanto, comum que eu resmungasse e fumasse mais do que o normal.

Deixei a bicicleta no seu lugar habitual na garagem do prédio e subi de escadas até o segundo andar, feito que eu considerava uma grande conquista.

Sentei direto em frente ao computador, sem nem tomar um copo d’água antes. Queria acabar logo com aquilo. Esperava com todas as forças que Jasper ou Emmett tivessem conseguido lidar com a suposta advogada, para que hoje eu pudesse me estressar menos. Surpreendentemente, a caixa de entrada só tinha três novas mensagens. Nenhuma delas eram ameaças de morte ou de processo. Vi que a advogada também não tinha respondido à minha última mensagem, aparentemente tinha desistido.

Não lembrava de uma terça tão feliz como aquela em muito tempo.

Abri uma cerveja e aproveitei o silêncio do apartamento.

Emmett e Jasper chegaram e me encontraram no sofá, de banho tomado e cantando alto. Nada como a falta de obrigações para deixar um cara feliz. Eles trocaram um olhar curioso, mas se juntaram para beber comigo.

Na maior parte do tempo, os dois me irritavam. Mas era bom saber que às vezes o happy hour podia ser na sua casa, cantando desafinado ao lado dos seus dois melhores amigos.

— E como tem sido no trabalho Cullen? – Jasper perguntou. – Alguém pra me apresentar?

— Pra você? De jeito nenhum! Coitada da garota.

— Ah, Cullen... Para de esconder o jogo e pode me apresentar alguém. Eu sou um cara decente quando eu quero.

— E algum dia você já quis? – Provocou Emmett.

— Não... – Jasper admitiu, divertido, nos fazendo rir. – Mas acho que quero namorar sério, sabe...

Emmett e eu rimos até a barriga doer.

— Meu Deus, é sério! – gargalhamos mais, sentindo o efeito do álcool nos atingir. E cada vez mais as tentativas de Jasper tentar se mostrar interessado em comprometimento, se tornavam falhas e absurdas.

— E você, Cullen? ­– Começou Emmett, mudando o foco da conversa para mim. – Alguma garota da cidade grande já chamou sua atenção?

— Hmmm, tem uma garota bem gata que apareceu semana passada na cafeteria. Claire.

Eles se tornaram automaticamente interessados. Minha vida amorosa era assim tão desastrosa ao ponto de gerar tanta excitação por parte dos meus amigos? É, talvez. Fazia sentido eles ficarem curiosos, porque nesses 20 anos eu nunca namorei ninguém sério.

— Fala mais. – Pediu Jasper, feliz por o assunto agora ser eu.

— Não tem o que dizer. Ela só apareceu na cafeteria e eu atendi. Fim. A Alice achou que ela estava dando em cima de mim, mas ela acha isso de toda garota que aparece.

— Hmmmm, Alice, é? – Disse Jasper. – Sabia que você estava escondendo o jogo.

— De jeito nenhum, idiota. A Alice é demais pra você.

Continuamos nessa discussão por meia hora, enquanto Emmett gargalhava de forma estrondosa de nós dois.

Quando nossa briga acalmou, começamos a nos questionar o quão irônico era que nós, três azarados no amor, fôssemos criadores de um aplicativo para encontrar sua alma gêmea. E nunca nem tínhamos o testado por nós mesmos.

Bom, até aquele momento...

Não lembro de quem foi a ideia. Provavelmente de Emmett, ele gostava de formas baratas de entretenimento, então abrimos nossos celulares no aplicativo. Ele até tinha um layout bacana. E não digo isso só porque fui eu que desenvolvi. Meus talentos não eram tanto de se jogar fora.

Fizemos nossas respectivas contas e preenchemos informações de gostos pessoais, que eram utilizadas como critério para achar nossas supostas almas gêmeas – coisas como preferência literária, gosto musical, gênero de filme, signo, idade, o que mais te atrai num parceiro, etc.

Então, era feito o cruzamento de dados e... voilà: eram apresentadas as pessoas na região que mais combinavam com você – supostamente, claro.

Como foto de perfil, coloquei meu violão. Não queria minha cara exposta num aplicativo duvidoso.

A mensagem de “aperte no botão para revelar sua alma gêmea” surgiu na tela assim que o processo foi completo. Cliquei, rindo. Como aquilo era tosco... Ideia de Jasper.

Carregando... 5%, 30%, 75%, 93%...

100%

Isabella Swan, 20 anos. A 5 km de você!

­– O quê? – Exclamei. – Essa droga só pode estar de brincadeira comigo. Eu vou processar essa companhia!

Da não aceitação, passei para o estágio de achar aquilo absurdamente cômico.

Era a advogada! O nome era facilmente relacionável porque me atormentou por uma semana.

Não me surpreendia nem um pouco que sua foto de perfil fosse um cachorro filhote de pelos escuros usando uma touca de banho. Jura? Tudo bem que nosso aplicativo era inútil, mas colocar a foto do seu animal de estimação em uma rede de relacionamentos só perdia para uma foto abraçado com a sua mãe. Era quase tão ridículo quanto.

Estava me sentindo mais aliviado que existisse alguém mais fracassado que eu nessa cidade. Então, comecei a rir histericamente, atraindo de imediato a atenção dos meninos, que ainda completavam seus perfis.

Eu não conseguia falar de tanto rir. Então virei a tela do telefone para que eles pudessem ver.

— Espera... – Falou Emmett enquanto analisava. – Essa é a mulher do SAC!

— Sim! – Nesse ponto, eu enxugava com as costas da mão as lágrimas que escorriam. – Eu estou me sentindo completamente aliviado por saber que não é inteiramente culpa do nosso aplicativo que ela só tem encontros fracassados. – Olhei para a foto do cachorro e voltei a rir. Pelo menos era bonitinho.

— Aliviado? Acho que você deveria se sentir ofendido pela sua alma gêmea ser um cachorro de touquinha. – Jasper riu e olhou para o resultado em seu celular: – Ei, ela é bem gata!

Ele virou o celular para que pudéssemos ver.

Alice Brandon, 21 anos. A 7 km de você!

Uma foto sorridente de Alice cobria a tela. Só podia ser brincadeira.

— Opa, opa. Espera aí... Ela foi a menina que eu falei que trabalhava comigo e está fora dos limites porque é muito fofa e legal demais pra você.

— Tarde demais, Cullen! O destino decidiu que somos almas gêmeas! – Ele se levantou subiu no sofá, teatral. – Seus esforços para nos separar serão em vão, pois aqui está o verdadeiro amor da minha vida. Ó, doce Alice Brandon. Minha eterna amada! – Ele colocava a mão sobre sua testa, em uma dramaticidade forçada.

Revirei os olhos.

— Me poupe, Jasper. – Joguei nossa única almofada em suas costas, enquanto ele se afastava sem desgrudar os olhos do celular, digitando.

Desculpa, Alice. Tentei te proteger o quanto pude.

Logo Emmett entrou também para o seu quarto, distraído com sua suposta alma gêmea, Rosalie. Ele não parou de externar o quão linda ela era e o quão geniais nós tínhamos sido por termos criado aquele aplicativo.

Já eu, fiquei sozinho na sala. Mais tarde, com certeza mandaria um e-mail para o SAC reclamando. Desbloqueei o telefone e olhei para a foto do cachorrinho de touca e ri novamente. Eu repetia esse ciclo de cinco em cinco minutos – irritação; cachorro de touca; risos.

Estava mortalmente entediado. Tínhamos tomado todas as cervejas na geladeira e comecei até a imaginar que a mancha retangular na parede era uma televisão.

O tédio tomava conta de cada célula do meu corpo. Então, resolvi abrir a conversa com Isabella Swan, somente para fins de entretenimento pessoal. O fato de que ela nunca desconfiaria de que eu era o criador do aplicativo e o cara que a tinha irritado, me divertia absolutamente.

Enviei um “oi, e aí?” bem despretensioso. Estava então rindo sozinho no chão da sala, alternando meu olhar da mensagem que enviara, para a foto do cachorro. Meu Deus, como um animal de estimação com uma touca podia ser tão fofinho e engraçado? Aquilo nunca perderia a graça.

O aparelho vibrou na palma da minha mão.

“Oii, tudo beleza. E aí?”, foi sua resposta.

“tudo ótimo!”, pensei mais um pouco e completei com: “é você na foto?”, suprimi uma risada e apertei para enviar.

Realmente era uma dádiva poder rir das suas próprias piadas.

Esperei, animado, para que ela me desse uma resposta brava. Mas não aconteceu.

“Hahahaha, que bobo! Eu não sou tão fofinha. Ele se chama Cole.”

Ok, isso tinha sido fofo. Talvez Jasper estivesse certo e minha alma gêmea realmente fosse um cachorro, porque eu não parava de encarar aquela foto ridícula.

“dê um ‘oi’ por mim. é uma gracinha”

“Ele te deu um ‘oi’ também”, ela completou com: “Você tem um corpo lindo, hein. Um violão”

Quase tinha me esquecido da foto de perfil que eu tinha colocado.

Eu estava surpreso com o senso de humor dela e em pouco tempo de conversa, mudei de opinião de: “ela nunca encontraria amor nenhum” para: “por que uma garota como ela continua usando essa droga de aplicativo?”

Isabella se mostrou divertida e sempre surgia com algum comentário engraçado. Conversamos sobre nossos interesses em comum, que eram muitos, prova de que o cruzamento de dados estava funcionando.

“você toca alguma coisa também?”, perguntei.

“Toco guitarra, um pouco de baixo, teclado, bateria...”

“uau, devia ter perguntado o que você não toca”

“Não se intimide, faço muitas coisas e sou mediana em todas elas”

“duvido muito, você deve estar escondendo o jogo. o que mais você faz? trabalha, estuda...?”, joguei a isca para saber se ela era mesmo advogada.

“Então, eu trabalho tocando em bares. Esse é o meu lance mesmo”

Intuição de mentiroso não falha mesmo, impressionante...

“ahhh, você é profissional então! eu disse que estava escondendo o jogo. você canta também?”

“Pode-se dizer que sim. E você?”

          “só no chuveiro haha”

          “Quem diz isso geralmente é porque esconde o jogo, hein”

          “pergunta só pros meus colegas de quarto e eles vão te dizer a verdade. eu canto bem mal”

          “Hmmm, você compõe então? Tem cara, apesar de nunca ter visto sua cara em si, hahaha. Faz sentido?”

          “faz, sim. é, eu componho. pode-se dizer que sim”

          “Acho que temos aqui o suficiente para formarmos uma dupla então”

          “ah, claro. eu fico com as letras mixurucas e você pode ficar com todo o resto. acho que é uma boa divisão. o que diz?”

“Fechado. Posso lidar com isso.”

“e aí? você é da cidade mesmo ou é caipira como eu?”

Esperei por uns bons minutos, mas a indicação era de que mensagem não tinha chegado até seu aparelho. Não desgrudei os olhos da tela, porém nem sinal de resposta.

Meu olhar alternava entre a minha última mensagem e a sua foto de perfil. Aparentemente, ela tinha ido embora e me deixado mais curioso do que nunca. Olhei mais uma vez para o cachorro de touca. Contudo, já não tinha mais tanta graça.

É, foi bom enquanto durou... O que eu teria feito de errado?

***

— ... e aí o cara caiu por cima da mesa de vidro e cortou metade do antebraço, mas ninguém sabe quem empurrou. Acho que ele tropeçou sozinho. É o que dizem, eu não sei. Não estava lá nessa hora. – Alice falou enrolando seu avental depois de mais um dia de trabalho.

Ela estava contando sobre a festa que a menina que dividia apartamento com ela dava anualmente. Aquela era sua tentativa maluca de me convencer que eu deveria ir na desse ano. Que tipo de punk moderno Alice achava que eu era para me atrair por uma festa que terminava com um cara sangrando em cima de uma mesa de vidro? Seja lá qual tipo fosse, estava certa. Eu estava totalmente convencido. Confesso que ela poderia ter parado na primeira frase, quando disse que a bebida era de graça e que eu poderia chamar meus dois amigos – claramente porque um deles era Jasper. Mas era Alice, então ela havia me dado o relatório completo.

Eu não tinha ido em nenhuma festa desde que me mudei. Por isso que basicamente as únicas pessoas que eu conhecia eram as do trabalho, o que era um pouco triste. Não era para ter uma nova vida que eu tinha saído da minha cidade natal? Isso incluía conhecer novas pessoas e não ficar fantasiando com duas garotas aleatórias durante semanas.

A-advogada-que-na-verdade-era-cantora não havia mandado mais nada desde aquele dia e a Claire-da-cafeteria também não deu mais o ar da graça. Era difícil até para mim manter paixões platônicas dessa forma.

Meu único plano para a festa daquele final de semana, então, era beber o suficiente para garantir que eu seria o cara a acordar nos escombros de uma mesa de vidro. Desde o colegial que eu não era tão hardcore e precisava levar o meu legado comigo para a cidade grande.

— Por favor, Edward. Me diz que você vai. – Alice implorou enquanto saíamos da cafeteria.

—  Só pra que eu possa levar o Jasper? – Impliquei só porque era o costume de fazer drama. E porque eu não ia perdoá-la nem tão cedo por ter aceitado sair com aquele idiota.

— Claro que não. Ele vai de qualquer forma.

Eu ri, porque era verdade. Ele não perdia uma.

— Sim, com certeza. Bom, eu vou porque não quero estragar a diversão de ninguém. Eu sei que vocês todos ficariam chorando no canto da festa sem mim.

— Sim, a descrição da tristeza de uma festa sem Edward Cullen foi perfeita. Ok, então! Sábado – Ela disse, gritando por sobre o ombro, virando-se em direção à sua casa. – Te mando o endereço mais tarde. Não fure comigo, Cullen. Não quero ficar chorando pelos cantos sem você lá. – Ao passo que ela terminou a frase, já estava na esquina e eu nem pude responder. Alice...

Minha animação sempre estava no ápice quando alguém me convidava para fazer algo e ia minguando até chegar o dia de sair, o que significava que naquele sábado eu estava no auge do meu desânimo.

Contudo, a atmosfera do nosso apartamento não podia estar mais movimentada. Era a primeira festa que tínhamos sido convidados desde que chegamos, a animação deles era palpável. Principalmente por que fazia muito tempo que não saíamos juntos.

Jasper e Emmett tinham um motivo extra para estarem assim, pois garotas estavam envolvidas, claro. E quanto mais eles falavam nelas, mais a minha vontade de ir diminuía, porque eu sabia que seria trocado facilmente. Convenhamos: eu também faria o mesmo se estivesse no lugar deles. Portanto, me lembrava constantemente da meta de beber e passar vergonha. Era a única coisa que me restava e não era tão difícil.

— Nossa, o Emmett tomou banho hoje? – Exclamei surpreso quando o vi deixar o banheiro com uma cortina de vapor atrás de si.

— Ai, Cullen. Como você é original...

— Eu tô em choque, é sério. Espera... Calma. Jasper? Lavou o cabelo?

— Infelizmente há quem não aprecie a minha tentativa de bater o recorde de cara que fica mais tempo sem usar shampoo.

— Que droga, se eu soubesse teria te apresentado à Alice mais cedo.

Nada como irritar os caras para melhorar meu humor.

Eu era sempre o primeiro a ficar pronto, então estava esperando os dois terminarem de se arrumar para chamar o motorista pelo aplicativo.

Meu celular, que estava no braço do sofá, vibrou.

Uma mensagem não lida de Isabella Swan.

Aquilo era inesperado. Não ia dizer que “quando eu finalmente estava começando a esquecer que fui ignorado, ela aparece”, porque eu não tinha me esquecido. Por mais que vários dias tivessem se passado, no fundo eu esperava que um milagre acontecesse.

“Oii, me desculpa. Meu telefone morreu, mas agora eu tô com um novo. Tarde demais?”

Por que parecia que ela estava sendo sincera?

“se você tivesse demorado mais alguns segundos juro que ia ligar pra polícia falando que você tinha sido abduzida”

“Ainda bem que eu apareci então”

Sim, ainda bem. Queria me encontrar com ela para ter certeza de que eu não estava falando com um cachorro chamado Cole, então ia chama-la para a festa de hoje. Contudo, ela foi mais rápida.

“Eu vou tocar num lugar hoje. Tá afim de ir?”

“nossa, eu ia te chamar para ir numa festa hoje. meus amigos iam me matar se eu não aparecesse, mas eu posso dar uma desculpa e sair mais cedo. onde você vai tocar?”

“Ah, não é nada demais... Não vai ser pra muita gente. É só algo pequeno na casa de uma amiga da minha irmã”

“eu ia adorar te ver tocar mesmo se você dissesse que vai ser no esgoto da cidade”

“Hahaha, que idiota... Minha irmã tem uns amigos estranhos. Não me surpreenderia se ela morasse mesmo num esgoto”

“seria legal, nunca fui numa festa no esgoto. me passe o endereço e eu estarei lá, Isabella”

“Ok, vou ver aqui com a minha irmã e já mando”

“tudo bem, até mais tarde então”

Ok, planos de beber e passar vergonha cancelados.

Pedi o motorista pelo aplicativo e fiquei o caminho todo até a casa de Alice inquieto. Perdi as contas de quantas vezes desbloqueei e bloqueei o telefone para ver se ela tinha respondido ou não, até me dar conta que eu estava sem internet na rua.

— Moço, quando foi a última vez que você dedetizou o carro? – Emmett perguntou de súbito.

O motorista antipático se limitou a lançar um olhar zangado através do espelho, que deixava bem claro que ele não iria se dar ao trabalho de responder.

— É porque eu acho que tem formiga, não é possível. Meu amigo aqui não para de se remexer no banco. – Jasper, que ocupava o assento do carona se virou, rindo e pronto para cumprimentar Emmett com um soquinho.

Que coisa mais vergonhosa se prestar a esse papel para fazer uma piada ruim.

— Sério, Emmett?

Me senti mal pelo motorista e avaliei em 5 estrelas, por mais que o carro estivesse sujo e ele mal tivesse nos dado um “boa noite” quando entramos. Era o que eu podia fazer, não tinha dinheiro para gorjetas.

Me enterrei no casaco diante do ar gelado daquela noite de outono, enquanto nos apressávamos para nos refugiar do frio dentro do prédio. Os meninos estavam descontraídos, implicando um com o outro e se empurrando. Eles não pareciam sentir tanto frio quanto eu, pois meu corpo todo tremia de forma descontrolada.

Na verdade, tinha acabado de perceber que estava usando o frio como desculpa, pois tremia de ansiedade. Provavelmente eu iria ver Isabella essa noite, então mal esperava para poder entrar, conseguir acesso à internet e ver a mensagem que ela havia mandado com o endereço em que iria tocar. Eu apenas ia marcar presença na festa até os caras estarem bêbados o suficiente e não notarem quando eu me esquivasse para sair ao encontro dela. Não ia demorar muito até que isso acontecesse. Plano perfeito.

Nos esprememos no elevador até chegarmos ao sexto andar. Mesmo com todo o calor corporal proporcionado pelo pequeno espaço, meu corpo continuava a enviar tremores que percorriam toda minha espinha.

— Para de tremer que nem um pinscher, Cullen... Por Deus! – Emmett disse enquanto saíamos do elevador.

— Ah, cala a boca, Emmett.

Toquei a campainha.

Parecia ser impossível que alguém pudesse escutar qualquer pessoa que chegasse com o som em um volume tão alto, mas uma garota de cabelo loiro-branco abriu a porta com um sorriso pretensioso, provavelmente resquício de alguma conversa antes de termos chegado.

— E aí? Vocês devem ser amigos da Alice, né? – Ela perguntou retoricamente. – Prazer, Jane. – Ela acenou para nós enquanto segurava uma garrafa de cerveja, sorrindo. – Vamos entrando, vamos entrando. A galera ainda tá chegando. Se divirtam, vou chamar a Alice, ela deve tá por aí. Vou pegar uma cerveja pra vocês.

Elas deviam ser uma dupla bem dinâmica, a garota mal tinha nos cumprimentado e já estava circulando pelo espaço e falando com várias pessoas no caminho. Se “a galera ainda tá chegando”, me perguntei em como aquele apartamento ficaria quando todos estivessem lá. Já parecia estar bem lotado para mim.

Emmett e Jasper foram logo se misturando e conversando com quem estava ao redor como se fossem amigos de longa data. A hora de ficar no canto do apartamento sozinho havia chegado. Quem mandou eu ter amigos tão vira-latas sociáveis?

— Vocês vieram! – Alice saltitou do cômodo que eu acreditava ser a cozinha para falar conosco. Jasper se aproximou para abraça-la.

Que episódio da série eu tinha perdido? Eles já estavam assim tão próximos?

— Ei, Edward. – Ela chamou enquanto enrolava as mãos na cintura de Jasper.

Alice, não abrace esse homem. Ele não toma banho diariamente, eu queria avisar, mas não ia conseguir escapar sem antes levar um soco.

— Fala, Alice. – Eu disse e ela me pegou pelo braço e me arrastou para a cozinha.

— Não brigue comigo, ok? – Ela sorriu como quem se desculpa, mas não arrependida realmente.

— Ah, não... O que você fez, Alice?

— Nada! Olha, eu perguntei a Jane se ela conhecia alguma amiga solteira e...

Gemi em protesto, mas ela continuou a falar por cima.

— ... e uma amiga vem com a irmã. Eu não a conheço, mas Jane falou que ela é muito legal. Você deveria dar uma chance. Realmente aprecio que tenha vindo mesmo sabendo que todos iam ficar de casal. Então não acho justo que fique aqui sozinho.

— Olha, Alice, tá tudo bem. Eu não estava planejando ficar muito tempo.  Meio que marquei com uma garota pra ver o show dela... Ah, inclusive pode me passar a senha do wifi? Ela me mandou o endereço, mas eu fiquei sem internet na rua.

Alice estava boquiaberta.

— EU ESTOU ME SENTINDO TRAÍDA!

— Desculpa, Alice, eu imaginei que por Jasper ter vindo você não ia ficar chateada se eu fosse embora mais cedo.

— Não, Edward! Eu tô feliz que você tem um encontro!

— Na verdade, não é um...

Ela me interrompeu.

— Eu só estou me sentindo absurdamente traída porque você não me contou nada sobre a garota. Como pôde? – Ela não parecia mais estar irritada. Pelo contrário, ela estava feliz. Eu ri, aliviado. – Ah, eles crescem tão rápido...

 – Foi bem do nada, eu nem sei como é a cara dela. Agora pode me passar a senha?

— “essaéasenha”

— Qual?

— “essaéasenha”, Edward.

— Pera, não entendi.

— Edward, “essaéasenha” é a senha. Sem espaços.

— O quê?

­– Me dá isso aqui. – Ela tomou o celular da minha mão e digitou rapidamente.

Estava conectado.

Nenhuma mensagem.

— E aí? Onde vai ser o show?

— Hm, eu não sei... A mensagem não chegou. Que estranho, ela disse que ia mandar. Deve ser erro do aplicativo.

Atualizei a página.

Nada.

— Daqui a pouco ela responde.

— É...

Eu estava me sentindo como um balão que foi cheio com tanto ar que estourou. Melodramático pra caralho, eu sei. Mas desde o momento em que coloquei na cabeça que veria a Isabella, isso deixou de ser uma possibilidade e se tornou uma realidade quase palpável. Enchi minha mente com essa ideia e podia jurar que ia terminar a noite em algum bar vendo a dona do cachorrinho de touca tocar. E agora eu não conseguia sentir mais que isso iria acontecer. Ela tivera tempo o suficiente para perguntar o endereço à sua irmã e enviar para mim. Por que não tinha feito?

Talvez tivesse mudado de ideia sobre querer me ver...

Alice sentiu meu desânimo e se colocou na ponta do pé para afagar meus ombros.

— Ah, Ed... Não fique assim. Vai ver ela esqueceu ou talvez algo tenha acontecido. Só espera mais um pouco...

— Relaxa, Alice. – Coloquei meu melhor sorriso, pois não queria que ela focasse sua atenção em mim. – Vai ser uma boa oportunidade para conhecer a irmã da amiga da sua amiga. – Falei com ironia.

Ela não percebeu o tom de sarcasmo, então foi o suficiente para que me desse um sorriso fraco e voltasse a se juntar à Jasper.

Modo acordar em cima de estilhaços de uma mesa: ativado.

Eu estava na terceira cerveja quando ela passou pela porta, escondida atrás dos volumosos cabelos loiros da garota alta a sua frente.

Não Isabella, claro. Mas Claire.

Tinha um tempo que não pensava nela e, muito mais tempo que eu a via. Contudo, ainda assim, reconheci.

Soube praticamente de imediato que ela era a garota que Alice queria me apresentar porque carregava atrás de si um violão.

— Ah, meu Deus. – Alice sussurrou no meu ouvido. – Edward, olha!

Era desnecessário, tudo o que eu estava fazendo era olhar. Meus olhos foram atraídos involuntariamente pelo o que parecia ser um centro de gravidade poderoso chamado Claire.

Ela tentava não chamar muita atenção para si e parecia bem menos confiante do que eu me lembrava. Sua tentativa de se camuflar estava sendo bem sucedida, pois quem eu supus que fosse sua irmã, atraia toda a atenção para si, já que seus cabelos dourados tinham o efeito de um refletor de tão brilhantes. Ela poderia facilmente ser uma modelo, não duvidava.

Jane sussurrou algo no ouvido da loira, que de cara chamou sua atenção e iluminou seu rosto. Ela olhou para mim e depois para Claire, que me deu a impressão de ter corado e deliberadamente abaixou a cabeça.

A irmã disfarçou e voltou seu interesse para Emmett, que foi ao seu encontro. Então aquela devia ser a tal da Rosalie, a menina com que Emmett havia marcado de encontrar... Não estava surpreso, ele sempre ficava interessado nas garotas extraordinariamente bonitas.

Minha mente foi girando as engrenagens lentamente tentando fazer as conexões entre as pessoas. Para uma cidade grande, as coisas até que estavam bem fechadas em torno de um círculo só. Era muita coincidência para ser verdade.

Jane então se aproximou de mim puxando uma Claire envergonhada consigo. Eu odiava quando tentavam me arranjar com alguém desconhecido, mas não conseguia me lamentar quando a garota se tratava de alguém como Claire. O eu do passado bem que estava grato por ter a oportunidade de se redimir pelo embaraço do último encontro, mas ao mesmo tempo tive pena da menina. Ela parecia tão envergonhada quanto eu pela situação que estava prestes a se desenrolar.

Será que ela se lembrava de mim?

— Ei! Já conheceu a minha amiga Isabella aqui?

Quê?

— Hm, só Bella, por favor. – Ela corrigiu olhando diretamente para mim, envergonhada até demais. Tive então a confirmação de que ela havia me reconhecido da cafeteria.

Estreitei meus olhos. Não era possível que eu tivesse tomado cervejas demais e estava fantasiando isso tudo. O nome dela não era Claire?

— Hm... prazer, Bella. – Me levantei para apertar sua mão.

— Vou deixar vocês sozinhos, crianças. – Jane anunciou com um sorriso confiante de que a sua empreitada como cupido estava tomando forma.

Nenhum de nós dois prestou atenção em sua fala.

Estávamos envolvidos em um aperto de mão esquisito. Ela olhava para mim como se pedisse desculpas pelo mal entendido e eu já estava até começando a achar graça. Até porque era muita coincidência de que o seu verdadeiro nome fosse o mesmo da dona do cachorrinho de touca com quem eu vinha flertando. Tinha sido um desdobramento cômico.

— Tudo bem. – Eu falei finalmente soltando minha mão. – Não precisa se justificar. Muita gente gosta de brincar com nomes na hora de fazer pedidos. Volta e meia aparecem pessoas usando os de personagens de Game of Thrones. É engraçado.

Ela riu olhando para baixo e colocou uma mecha de cabelo castanho atrás da orelha.

— O que eu posso fazer? Claire é mais bonito que Isabella. – Ela deu de ombros, ainda meio envergonhada.

— Isabella é legal, não conheci muitas pessoas com esse nome. – Disse para descontrair e ri pensando na menina do aplicativo, a memória parecendo distante agora. – Hm, você quer que eu pegue uma para você? – Levantei a mão com a cerveja.

— Ah, com certeza. Vou precisar de umas antes de entrar no palco, mesmo que não tenha palco nenhum. – Ela riu, apontando para o espaço vazio na sala onde estava apoiado seu violão.

— É a sua primeira vez tocando em público?

— Não, mas eu sempre fico nervosa de qualquer jeito. Acho que quanto menos gente, pior.

— Nossa, e você acha que tem pouca gente aqui?

Desde o momento em que eu tinha chegado até agora, o número de pessoas havia triplicado. Apesar do apartamento ser relativamente grande, ele estava começando a se tornar apinhado de gente.

Pessoas esbarravam o tempo todo e respingavam bebida enquanto transitavam pelo espaço. A sacada pequena estava cheia de fumantes e quanto mais as pessoas se embriagavam, mais caótico o ambiente ficava. Eu nem conseguia mais ver onde Emmett e Jasper estavam.

— Tem bastante pessoas para um apartamento. – Ela esclareceu. – Mas acho que já toquei para públicos maiores.

— Corajosa. Acho que o mais próximo que eu cheguei de tocar em público foi em festa de família. Isso porque minha mãe me obrigava e não tinha como fugir. – Eu ri da lembrança.

— Que gracinha! Isso é com certeza pior do que tocar para uma multidão de cem mil pessoas.

— Acho que sim. – Falei enquanto abria caminho pela cozinha.

— O que você toca? – Sua voz estava atrás de mim, se projetando com dificuldade em meio às conversas alheias e à música.

Me perguntei como algum vizinho ainda não tinha chamado o síndico.

— Eu só toco violão. E meio mal. E você?

— Pode-se dizer que uma quantidade considerável de instrumentos.

Algo nessa conversa me era familiar, mas não consegui identificar o quê.

— Nossa, garota prodígio.

Eu a observei se içar sobre o balcão de mármore para se sentar enquanto eu me aproximava da geladeira disputada para pegar a bebida.

Ela parecia confortável agora. As mãos estavam relaxadas em cima de suas coxas. Bella usava jeans rasgados que se ajustavam perfeitamente ao seu corpo. Reparei também, agora que estava sentada, em suas meias coloridas listradas de arco-íris e seus tênis brancos, perdurados e balançando para frente e para trás. Seus grandes olhos vagavam desatentos pelo lugar, sua mente parecendo fora de órbita, concentrada apenas no movimento de vai e vem de seus pés.

Me aproveitei então para observá-la sem que pudesse comprometer a minha postura de parecer alguém normal. Sendo Isabella ou Claire, ela era linda sem fazer esforço algum. Depois da situação da vergonha inicial, sua timidez estava cedendo e ela parecia relaxada ao conversar comigo. Com algum esforço, acho que consegui me manter calmo o bastante para não agir de forma idiota. Caso eu tenha sido, acho que ela havia deixado passar, o que era generoso de sua parte.

Peguei duas garrafas de um estoque que parecia ser infinito na geladeira. Entreguei uma para ela e tentei abrir a minha.

Não podia ignorar o fato de que, ao contrário de Bella, eu estava nervoso em sua presença. Minhas mãos se agarravam suadas ao lacre. Girei sem jeito, meus dedos escorregando em uma tentativa mal sucedida de abrir a garrafa, que não passou despercebida por ela, que estava se divertindo apenas ao me observar falhar ao fazer uma tarefa simples. Logo eu, que me orgulhava por saber abrir uma cerveja de várias formas diferentes. Um dos meus únicos talentos, na verdade.

Antes de tentar abrir com a manga da minha camisa, ela tomou das minhas mãos e, com um rápido movimento, abriu.

Ela deu um gole longo na minha bebida e me passou de volta.

— Pedágio. – Explicou.

— Eu não acredito que decepcionei a mim mesmo por não conseguir fazer algo tão idiota. Eu juro que normalmente eu sou melhor nisso.

— Acredito em você. Mas por que você não está no seu normal?

Porque acabei de perceber que fico nervoso perto de você.

— Acho que estou meio bêbado. – Menti. Não estava nem perto disso.

Ela riu e estreitou os olhos, desconfiada.

— Você disfarça bem então.

— Anos e anos de prática.

Ela riu e ficou pensativa por um tempo, como quem está ponderando sobre algo. Por fim ela, disse:

— Tenho que te perguntar uma coisa, mas não quero que fique chateado comigo.

Tentei manter a calma que não tinha quando alguém me vinha com essa frase.

— Pode mandar.

— Eu esqueci qual é o seu nome. – Ela fez uma cara engraçada de culpada.

— Ufa, era só isso? – Brinquei com um sorriso, pois tinha pensado que ela iria perguntar algo muito mais sério.

— Sim, o que achou que fosse?

— Não sei, talvez algo comprometedor. – Estava se provando fácil ser descontraído com ela.

— Não, ainda não chegamos lá. Vamos precisar de mais bebida pra isso. – Ela sorriu. – É que eu fiquei com vergonha. Você tá sendo tão legal comigo e estamos conversando há um tempo... Eu lembro de ter lido no seu crachá, mas esqueci. – Ela fez um beicinho como quem se desculpa.

— Tudo bem. Às vezes eu esqueço meu nome também. – Sim, eu faço piadas sem graças quando estou nervoso e é frequente.— Eu me chamo...

Fui interrompido pelo refletor loiro que era Rosalie.

Ela apareceu com Emmett em seu encalço e puxou a irmã pelo braço.

— Tá na hora de animar a festa, Bells! – Ela gritou entusiasmada, se referindo à apresentação da irmã.

          – Bom, já tá bem animada pra mim. – Ela desceu do balcão num pulo e rindo. – Que merda, devia ter bebido algo mais forte antes de começar o grande show. – A garota era afiada na ironia.

— Eu penso em tudo, Bells. – Rosalie tirou de trás de si uma garrafa de tequila.

— Você é minha heroína, Rose. Vai querer? – Ela se virou para mim.

— Ah, não. Eu tô legal. – Porque os planos de passar vergonha e acordar em cima de uma mesa de vidro tinham sido cancelados novamente.

Ela deu de ombros e virou três shots com o intervalo de apenas uma careta entre cada um. Meu estômago se embrulhou ao testemunhar a audácia alheia.

O grupo se encaminhou para o “palco” e eu fui atrás.

Apesar do pouco tempo que tínhamos passado na cozinha, consegui perceber a diferença na atmosfera do ambiente. Estava muito mais caótico. Não estava surpreso de ter dado polícia da outra vez. Coisas assim acontecem quando o espaço é pequeno e a bebida é liberada em larga escala. E o pessoal ali não estava para brincadeira.

Rosalie se aproximou do pequeno espaço na sala reservado para a apresentação e tentou chamar a atenção das pessoas sem sucesso.

Bella se moveu nervosa e com certa dificuldade ao ser anunciada, efeito do álcool que ela tinha ingerido.

— Ei, bonitinho, – ela sorriu preguiçosamente para mim – você pode me ajudar a abaixar a música?

Eu não acreditei que a bebida havia batido tão rápido. Ela tinha acabado de me chamar de bonitinho?

Eu prontamente ajeitei as configurações de áudio, pluguei seu violão na caixa de som e entreguei a ela.

As pessoas em volta reagiram negativamente por eu ter parado a música, pois elas estavam dançando. Mas ao menos ouviram quando Rosalie apresentou a irmã.

Bella me lançou um sorriso meio tenso antes de se aproximar do microfone e eu sorri de volta, a incentivando.

Realmente esperava que ela fosse boa, não queria perder nem um pouco do encanto que eu estava sentindo por ela.

Alice se materializou repentinamente ao meu lado e perguntou o que eu tinha achado de “Claire”. E eu apenas sorri em resposta, pois sabia que seria o necessário para entusiasma-la.

O lugar se tornou um pouco mais silencioso quando alguém deixou as luzes baixas para criar um clima intimista. Ela parecia uma espécie de fenômeno raro da natureza naquela iluminação. Será que algum ângulo a desfavorecia? Acho que não.

Então, Bella desejou um boa noite trêmulo e começou a ressoar o primeiro acorde de uma melodia tranquila que não era desconhecida para mim. Logo reconheci ser uma música que eu não ouvia fazia tempos chamada “Roslyn”.

          Up with your turret

          Aren’t we just terrified? 

          Shale, screen your worry

         From what you won’t ever find

          Dont’t let it fool you

          Don’t let it fool you

          Down

          Down’s sitting ‘round, folds in her gown

Eu estava completamente estarrecido. Naquele momento, eu tive a certeza de que se um anjo falasse, aquela seria a sua voz. Ela era doce e abria caminho pelo espaço como ondas que inundavam levemente a areia macia de uma praia deserta. Havia beleza e suavidade em cada nota que a sua língua pronunciava. Eu estava diante da prova de um paraíso que jurei um dia nunca acreditar. Chegava ser absurdo.

Contudo, nem todas as pessoas pareciam estar tendo a mesma experiência que eu. Elas se remexiam inquietas, algumas continuavam absortas em suas conversas e nem conseguiam disfarçar.

Fui pessoalmente afrontado por aquilo, era como se tivessem invadido minha praia intocada e a maculado com sua sujeira.

Percebi que Bella começou a se mostrar insegura para começar o próximo verso, trocando inúmeras vezes o peso de uma perna para outra, distraída pelos murmúrios indistinguíveis, que cresciam gradativamente enquanto ela fazia a passagem da música com um lindo arranjo de violão.

De repente, alguém cochichou de forma nítida, cortando o ar com palavras cruéis:

— Nossa, quanta tristeza. Eu quero dançar e quando vejo, eu tô ouvindo uma marcha fúnebre.

Eu facilmente poderia socar a cara de quem disse aquilo se ao menos eu soubesse quem tinha sido.

O violão reagiu, travando nas mãos dela, sinal de que tinha ouvido o comentário. Sua voz se enrolou ao começar a próxima estrofe:

          Sea and the... rock... bellow

          Cocked to the

Ela havia perdido o ritmo e continuado apenas com o violão.

Vislumbrei um pingente de água se formar nos seus olhos. Ela estava chorando e não conseguia continuar a cantar, presa em um looping de instrumental sem prosseguir para terminar o verso.

Me adiantei em sua direção. Não tinha muito em mente o que iria fazer, só queria protege-la de alguma forma. Não queria que ela deixasse aquele lugar com um gosto amargo na garganta.

Tirei o microfone do suporte e tive a ideia de continuar a cantar a música.

Provavelmente eu só ia me envergonhar, mas não queria que o foco da atenção da maldade alheia fosse aquela garota. Era inaceitável que aquilo acontecesse.

Se fosse para alguém ali ser humilhado, que fosse eu.

Fiz um sinal com a cabeça para que ela continuasse a tocar. Bella entendeu e me lançou um sorriso fraco em gratidão.

          Sea and the rock below, recomecei

          Cocked to the undertow

          Bones, blood and teeth erode

          With every crashing node

O Universo estava sendo bondoso comigo por não ter me deixado esquecer uma letra que eu não ouvia por anos.

A minha voz enchia o espaço de forma áspera, como se as ondas, antes suaves, agora batessem em rochas sólidas e pontiagudas. Bem que aqueles filhos da puta mereciam uma dor de cabeça causada pela minha desafinação.

Bella se aproximou de mim, com seu perfume amadeirado marcando presença à minha volta. Ela junto seu corpo ao meu e inclinou-se para alcançar o microfone em minhas mãos. Eu estava envolto em sua atmosfera inebriante. E quando sua voz se uniu à minha, senti que parecíamos criadores de um tempo e espaço que pareciam pertencer somente a nós, onde a maré engolia tudo de forma avassaladora.

Eu nunca havia sentido algo tão poderoso como aquilo.

Sei que não era o único porque ela me encarava com olhos inundados enquanto a música caminhava para o desfecho.

          Won’t, won’t, won’t, won’t

          Won’t let you talk me

          Won’t let you talk me

          Down

          Will put it taut, nothing let out

Eu não fazia ideia de como as pessoas à nossa volta reagiram. Pouco fez diferença para mim se elas continuaram a falar ou se calaram-se.

O meu mundo, ao menos, estava todo concentrado naquele espaço da sala reservado para nós. Eu não conseguira me mover, assim como Isabella. Nossos olhos a observar as órbitas fixas um do outro. Mesmo na luz baixa, o pingente d’água cristalizado que se agarrava aos seus cílios inferiores era perceptível. Bastava um piscar para que ele escorresse pelo seu rosto. Mas a lágrima permaneceu ali, pois ela não se atrevia a piscar.

E nem eu.

Em qualquer outro contexto, descrever uma cena em que você e outro alguém se encaram na frente de desconhecidos, seria estranho. Mas naquele momento, aquilo pareceu o mais natural a se fazer.

Tudo estava inusitadamente certo.

Alguém tornou a acender as luzes e a lágrima solitária se perdeu em seu rosto ainda imóvel.

Foi como se alguém tivesse estalado os dedos e nos tirado de um transe hipnótico e nos trazido de volta à realidade de um apartamento barulhento demais.

— Obrigada por isso. – Ela murmurou baixo, quase de forma inaudível.

Antes que eu pudesse responder, sua irmã a puxou de lado e pude ouvi-la perguntar se ela estava bem. Bella apenas assentiu mecanicamente. Rosalie estava furiosa, fumegava pela sala de um lado para o outro lançando olhares cortantes e intimidadores para quem quer que cruzasse seu caminho. Ela parecia ser muito protetora em relação à irmã, o que deu ideia de que Bella fosse a mais nova.

— Será que a gente pode sair daqui? – Bella sussurrou para mim. – Não quero estar presente quando minha irmã começar a fazer uma cena por minha causa. – Eu ri.

— Claro.

Mesmo sem saber para onde iria, eu a segui para fora do apartamento, nos espremendo entre corpos suados para chegarmos até a porta.

Depois de pararmos em frente ao painel do elevador, ela perguntou para onde eu estava a levando.

— Como assim? Eu estava seguindo você.

— O quê? Eu que estava te seguindo.

O elevador anunciou sua chegada no nosso andar, ressoando no corredor vazio. As sonoridades da festa agora longe.

Entramos sem dizer nada.

— Para cima ou para baixo? – Eu perguntei quando as portas se fecharam.

— Para cima. Quero ver o céu. – Ela respondeu.

Apertei o botão para a cobertura.

— Edward. – Eu cortei o silêncio.

— O quê? – Sua voz estava arrastada.

— Edward, me chamo Edward.

Ela ponderou por um momento e disse, como se tivesse descoberto uma nova linguagem:

— Edward... – Bella não chamava por mim, só parecia saborear a palavra. – Edward. – Ela testou de novo, meu nome ganhando novo significado em sua boca.

Ela tinha o olhar distante, fixo em um ponto qualquer do elevador enquanto meu nome ainda parecia reverberar no espaço.

As portas se abriram abruptamente. Bella pulou com o susto.

— Tá tudo bem. – Eu ri.

O vento gelado invadiu o pequeno espaço e eu tremi sob o meu casaco inútil. Nos encaminhamos, sem trocar uma palavra, para a beirada do prédio. O vento chicoteava o cabelo dela em meu rosto, trazendo seu cheiro para perto de mim. Através minha visão periférica, eu tentava me manter atento a cada mínimo movimento dela. Eu estava superconsciente da sua presença e dos centímetros que nos separavam – do quase toque de nossos corpos, que estavam perto o suficiente para que eu conseguisse sentir o calor que nos unia. Ela tremia com o frio também e eu ansiava por dar a ela o conforto do meu calor.

Como uma digna noite de outono, o céu não desapontou. Para nossa sorte, ele se encontrava límpido o suficiente para que pudéssemos ver as estrelas – nada tão magnífico quando o céu do interior, mas foi o melhor que eu havia visto desde que chegara.

Conforme nos aproximamos da borda, pudemos ver as estrelas debaixo. Essas iluminavam vigorosamente aquele céu mundano de concreto. A cidade pulsava, viva, embaixo de nós. Tanto a ponto de me deixar tonto com tanta informação.

Contemplamos em silêncio por uns minutos. Eu queria ter sido capaz de dizer algo tão bonito quanto a ocasião pedia. Mas o frio estava congelando minha mente, me deixando ainda mais lento e burro que o normal.

— Uau. – Bella conseguiu murmurar com dificuldade entre dentes. – Nós estamos invisíveis, ninguém olha pro alto. Será que Deus se sente assim?

— Deve ser solitário ser Deus. Mas acho que Ele consegue se distrair arranjando diariamente novas formas de me castigar.

Sua risada foi acompanhada de um tremor.

— Acha que estar aqui em cima comigo está sendo um castigo?

— Não. – Respondi com firmeza.

Seu tom havia sido descontraído, mas considerei como algo ofensivo demais mesmo que fosse apenas uma brincadeira.

— Hoje, por algum motivo, Ele foi generoso comigo. – Completei.

 Estávamos ambos olhando para frente, absortos nos dois céus, mas não conseguia deixar de observá-la pelo canto do meu olho.

Mais um tremor percorreu seu corpo.

Seu casaco era bem mais fino que o meu, não conseguia mais ver ela passando frio e, literalmente, ficar de braços cruzados.

Virei meu rosto para encará-la pela primeira vez e, sem dizer nada, a envolvi em um abraço. Suas mãos geladas encontraram meu peito e se aconchegaram ali. Depois, o restante de seu corpo foi se colando junto ao meu, contraído de frio. As pontas endurecidas dos meus dedos encontraram seu cabelo quente e macio. Ela enterrou seu rosto no meu casaco. Dessa forma, ambos buscamos aquecer um ao outro.

Não falamos nada, até que os tremores foram diminuindo e ela foi relaxando debaixo de mim. Eu encontrei conforto por tê-la ali. Era tão pequena, tão macia...

Sua frágil respiração quente sendo soprada em mim tinha sido uma das melhores coisas que eu já havia sentido.

— Eu gosto de sentir frio. – Ela disse depois de um longo tempo.

— De onde você tirou isso?

— Compensa. A sensação de se aquecer depois é boa demais.

Ela se afastou para olhar para mim. Seus olhos me encontraram e meu coração parou por uma fração de segundo ao constatar que eles eram mais brilhantes que todas as estrelas juntas – tanto as do céu acima de nós, quanto as da cidade sob nossos pés.

 – Você me salvou. É bom estar no alto e se sentir parte dessa cidade de alguma forma. Estar presente com alguém, sabe? Estar feliz o suficiente para olhar para tudo lá embaixo e tudo lá em cima e, mesmo assim, querer estar exatamente onde está. Eu não desejaria estar em nenhum outro lugar senão aqui. Porque se sentir presente, com frio por fora e aquecida por dentro, compensa tudo, Edward. – Ela pronunciou meu nome com naturalidade, era bom ouvi-lo junto à suas palavras tão sinceras. – Obrigada por me preservar de ter ficado na beirada sozinha, pensando demais. Provavelmente eu tentaria pular daqui numa tentativa de alcançar o alto. Entende o que eu estou falando, não é?

Fiquei estático. Será que eu tinha entendido o que ela realmente quis dizer? Parei para pensar na música que tínhamos dividido apenas há alguns minutos e como o que ela dissera tinha a ver com a letra.

Será que ela tinha planejado se matar? Ou a bebida apenas estava a deixando sensível e propensa a dizer besteiras?

Ela me analisou e compreendeu o que eu estava pensando.

— Tá tudo bem, Edward. Eu não vou me matar nem nada do tipo. É só triste na maior parte do tempo ter que me distrair da realidade para encontrar conforto ao invés de... simplesmente encarar. Desde que meus pais morreram e eu vim pra cá tentar recomeçar, eu sinto um vazio que não se preenche com nada. Porque não é pra ser preenchido, é impossível. Portanto, a única coisa que posso fazer é continuar vivendo. E eu não tenho procurado as melhores maneiras de se fazer isso. Eu bebo demais, eu me humilho em encontros com pessoas que não querem me conhecer de verdade... Eu não sei lidar, mas também cansei de fingir que a dor não existe. A minha irmã, por outro lado... Ela sempre sabe o que fazer. Eu queria ser mais como ela. – Naquela altura, Bella já havia se desvencilhado do meu corpo e caminhava de um lado para o outro.

Era tão estranho eu me identificar com tudo que ela havia dito, mesmo que eu não tenha passado por nada parecido. Eu sempre tive a sorte de ter um lar estável e pessoas que se preocupavam comigo, mas... Ainda assim, eu estava perdido. Que juventude desgraçada.

Me senti culpado, tomando um pouco da responsabilidade ao pensar em todas as pessoas que se iludiram por causa do aplicativo que eu programara. Eu sabia que eu não tinha nada a ver com o fato delas terem vidas amorosas infelizes, mas eu tirava vantagem disso de alguma forma. Será que ela já tinha usado? Queria sondar qualquer dia para saber. Talvez não... Talvez eu nunca quisesse saber.

— Eu sinto muito pela perda, Bella. – Finalmente consegui dar alguma resposta. – Não há nada mais normal que ter sentimentos. Se algo te faz sentir saudades, quer dizer que foi bom. Ninguém sente falta daquilo que machuca. Se desligar disso é colocar numa gaveta tudo o que seus pais foram pra você. E você não quer isso, quer? – Ela balançou a cabeça negativamente, muito quieta. – Eu sei que praticamente não nos conhecemos, mas isso não me impede de te achar uma das pessoas mais sensíveis que eu já conheci. E é justamente por isso que você sente. Viver dói. Mas compensa, Bella. – Repeti sua frase de mais cedo. – Quando anteriormente você me disse que sentir frio é bom, eu tinha entendido como algo completamente masoquista, mas parando pra pensar... Eu concordo com você. Sentir frio é bom, porque significa que podemos nos aquecer. Talvez nem sempre alguém vai estar presente para nos cobrir e dizer que vai ficar tudo bem, entretanto não nos impede de pegar um cobertor limpo no armário e nos cobrir com ele. Eu só desejo que você seja capaz de ser gentil consigo assim como você fez comigo hoje. Você também me salvou, Bella, quero que saiba disso. Viver dói, sim. Mas nem sempre. Sendo assim, acho que vale à pena esperar por esses momentos. Esperar pelo o dia de hoje valeu muito, por exemplo. Porque... Bem, porque conheci você.

Eu sempre fui um cara de poucas palavras, não me lembro de um dia ter falado tanto assim. Minha garganta estava até seca.

Bella estava chorando, seu corpo todo tremendo. Agora eu tinha certeza não ser de frio. Será que eu só tinha piorado tudo? Porém, antes que eu pudesse dizer qualquer outra coisa, ela correu para me abraçar.

Rapidamente minha blusa ficou ensopada com suas lágrimas, ela não parava de soluçar. Eu não sabia o que fazer a não ser apertá-la forte.

Desde que Bella passara pela porta – mesmo acreditando que ela se chamava Claire – a minha perspectiva de noite tinha mudado drasticamente. Nunca imaginei que pudesse me sentir conectado assim a alguém com tanta facilidade, pois sempre tive um certo bloqueio em demonstrar afeto, até mesmo com os meus pais, que eram as pessoas mais próximas. Portanto, a possibilidade de me sentir livre abraçando alguém ou externando sentimentos é, no mínimo, uma grande novidade para mim.

Uma novidade boa.

Eu estava aquecido.

Ouvi barulhos de passos vindo detrás de nós.

— Bella? – Uma voz preocupada gritou.

— Rosalie? O que faz aqui? – Ela se virou para encarar a irmã, que estava com um olhar cheio de preocupação.

— Bella, você ficou louca? Eu que te pergunto! Tá congelando aqui em cima, vamos embora.

Sim, bem protetora. A loira mal deu tempo para a irmã elaborar uma resposta e arrastou-a consigo de volta para o prédio, sequer reparou em mim.

— Eu já chamei o motorista, temos que descer logo.

Pensei que ela fosse embora sem se despedir, mas Bella olhou para trás, buscando meu olhar. Eu levantei uma das mãos e acenei, com um sorriso tímido.

Eu já conseguia sentir falta do calor do seu corpo contra o meu, contudo, seria ingratidão lamentar sua partida quando só aquele curto contato entre nós tinha conseguido me fazer sentir mais vivo do que em todos esses meus 20 anos. Era surreal.

Será que era isso que significava ser jovem?

Ela caminhou em minha direção pelo o que parecia ser em câmera lenta, como se, de repente, eu estivesse preso em um filme brega de comédia romântica. Com certeza eu era o personagem masculino de beleza mediana, personalidade autodepreciativa e caráter duvidoso. Ela uma atriz talentosa demais, escalada para um filme ruim sobre a minha vida. Como ela foi parar ali?

Bella estava parada na minha frente, me encarando enquanto esperava por uma resposta que eu não tinha ouvido – assim como no primeiro dia da cafeteria.

— Seu celular, Edward. Deixe anotar meu número.

— Ah, claro. – Entreguei o aparelho desbloqueado em suas mãos.

Ela rapidamente escreveu e me entregou de volta.

Bella (festa)”, ela anotara.

Como se fosse possível esquecer...

***

Mais tarde, quando eu estava no escuro do quarto, não consegui resistir à tentação de enviar para Bella uma mensagem de madrugada, mesmo sem saber o que falar. Só queria ter certeza de que tudo aquilo não havia sido um sonho.

Liguei o celular, sua claridade momentaneamente me cegando.

Entrei no aplicativo de mensagens e procurei por seu contato.

Lá estava: Bella (festa) e sua foto de perfil, que não passou batida por mim. Um cachorro com pelos pretos e uma touca de banho.

Poderia eu ter sido tão lento ao ponto de não ter juntado as informações?

Quais eram as chances de me sentir atraído por duas meninas e descobrir que, no fim das contas, elas eram a mesma pessoa?

Os pontos foram rapidamente se ligando em minha mente, associando o que a Isabella havia me dito pelas mensagens que trocamos e o que eu descobrira sobre Bella esta noite.

Ambas tinham o mesmo nome, eram musicistas e estavam tocando em um lugar através do contato da irmã. Então era por isso que nossa conversa havia sido familiar em certo nível... Eu devia ter percebido.

Naquele momento, a confirmação tinha vindo por causa da foto de perfil do cachorrinho. O quão irônico era tudo aquilo? Eu totalmente retirava o que dissera sobre Deus estar sendo gentil comigo. Ele era vingativo e tinha um humor ácido e muito peculiar.

Se eu já me sentira culpado antes, imagine a culpa que estava sentindo por saber que Bella não somente havia pago pelo aplicativo, como tinha tido uma série de infortúnios amorosos e situações embaraçosas por causa dele. Como eu poderia falar com ela outra vez sabendo que eu causara tudo isso? Apesar de ter querido beijá-la mais cedo, me senti grato por não ter o feito, pois era menos uma coisa para ela se arrepender quando soubesse a verdade.

Será que eu estava exagerando e pensando demais? Talvez. Mas não conseguia deixar de desejar tê-la conhecido em uma situação menos constrangedora. Que tipo de castigo era esse? Eu até havia a xingado mentalmente antes de saber quem ela era. Até mesmo cheguei a pensar que ela não merecia amor! Eu era um idiota e não podia fazer nada a respeito disso a não ser me afastar dela.

Eu estava tão envergonhado.

Contudo, não podia simplesmente desaparecer, não sem antes dar alguma explicação. Não era justo.

Rapidamente digitei:

“obrigado por esta noite. tá tudo bem por aí? sua irmã tá brava?”

“Não, o estresse dela foi embora assim que ficamos sozinhas e ela precisou contar pra alguém sobre o Emmett, hahaha. Sobrou pra mim. Ela também me fez beber quase dois litros d’água quando chegamos em casa depois de eu quase ter vomitado no carro”

“meu deus, Bella. verdade. era pra eu ter te dado água”

“Relaxa, eu estou 100% bem agora”

“isso significa que podemos nos ver amanhã?”

“Apressadinho. Claro que sim”, sorri involuntariamente.

“conhece algum legal pra almoçar?”

“Claro, vários. O que você gosta de comer?”

“confesso que meu paladar é infantil e fast food é o meu ponto fraco”

“Ok, vou te mandar a localização de um que fica no perto da cafeteria. Você mora por perto mesmo, né?”

“sim, pode ser por volta de 12:30?”

“Perfeito”

“tá marcado então! até amanhã, Bella”

Me contorcia na cama só de pensar na vergonha que eu sentiria quando tivesse que contar a minha verdade obscura para ela no dia seguinte. Ela provavelmente me odiaria. Eu era a personificação da Equipe SoulMate.

De repente, me veio a memória, a recordação de Bella na cafeteria, naquele primeiro dia. Ela estava encarando o celular e chamando alguém de babaca. O que na época eu pensara ter sido a reação por causa de algum namorado ou ex, poderia muito bem ter sido sua reação ao meu e-mail.

Ah, merda... Ela iria me odiar.

Nada do que havia acontecido essa noite seria capaz de compensar a raiva que ela iria sentir de mim. Eu iria entender. Ou, ao menos, iria tentar.

***

Eu esperava em frente à franquia de fast food que marcamos no dia anterior. Me encontrava muito nervoso e me policiando para não roer todas as unhas, tamanha ansiedade. Estava com medo que ela não aparecesse e fosse apenas fruto da minha imaginação. Ou pior: estava com medo da hora em que ela de fato chegaria e eu seria obrigado a contar a verdade.

Esse momento chegou. De longe, eu já a avistei dobrar a esquina. Contudo, ao contrário da tensão que eu esperava sentir, pareceu, na verdade, que meus temores desapareceram junto com a sua chegada. Instantâneo assim. É claro, eu ainda estava tenso, mas se provou ser uma excitação saudável, e não o desespero de pensar em contar sobre o aplicativo.

Os segundos que encurtam a pequena distância do encontro entre você e outro alguém, parecem ser inacabáveis. O mundo se resume a esperar e tentar manter a compostura. Na realidade, a minha parecia se desmoronar a cada passo que Bella dava em minha direção, pois involuntariamente eu ia parando de me importar sobre o quão idiota eu aparentava ao olhar embasbacado para ela ou em como o meu tique nervoso de passar as mãos pelo cabelo se destacavam ainda mais. Toda essa autoconsciência corporal deu lugar a uma hipersensibilidade da mudança de atmosfera desde que ela contornara a esquina, há provavelmente cinco segundos – os cinco segundos mais longos da minha vida.

Ela correu os últimos passos ao meu encontro, seu vestido florido voando atrás de si. De repente, já não havia mais distância nenhuma, apenas o cheiro do seu cabelo a me atingir com delicadeza.

Era raro eu me sentir confortável com o contato de alguém que eu mal conhecia. Contudo, quando Bella me abraçou, nosso nível de intimidade pareceu fazer sentido o suficiente.

Foi um gesto rápido, porém meu corpo parecia querer guardar os mínimos detalhes para quem sabe remontar mais tarde, porque provavelmente, quando ela descobrisse a verdade, tal coisa não iria se repetir.

Estremeci com o pensamento.

— Tá tudo bem? – Ela perguntou ao se separar de mim.

— Claro, claro. – Tirando o fato de que eu estou praticamente tendo uma síncope.

— Vamos entrar? Tá ventando muito hoje, foi um péssimo dia para escolher usar vestido. – Ela riu, bem humorada.

Quase me senti mais relaxado com sua calma.

— Primeiro as damas. – Abri a porta e indiquei para que ela passasse na minha frente, o que pareceu a divertir ainda mais.

Era domingo, portanto praticamente não havia movimento dentro do estabelecimento.

Na hora de fazer o pedido, o atendente perguntou por seu nome. Bella se virou para mim e sorriu.

— Claire. – Ela respondeu prontamente.

Depois de nos acomodarmos em um lugar, já com os lanches em mãos, eu resolvi aproveitar o tempo que eu tinha antes dela se aborrecer comigo para perguntar qual era a história por trás do seu nome de mentirinha.

Ela ponderou por um momento, desviando o olhar do meu e encarando seu sanduíche.

Percebi o desconforto que cruzou seu rosto, seu sorriso rapidamente se desfazendo enquanto ela considerava a pergunta.

— Desculpe, eu não sabia que era uma pergunta delicada. Podemos mudar de assunto.

Bella voltou a me encarar, um sorriso fraco apontando em seus lábios.

— Não, tudo bem. Não é nada demais, é só que... Bem, tem a ver com os meus pais. Então, tudo referente a eles me deixa sensível. Na verdade, não é nenhuma grande história... É só uma recordação de infância.

Dessa vez ela sorriu de forma mais ampla, com o olhar longe.

Coloquei na mesa o copo de refrigerante que eu segurava, afim de dar mais atenção a ela.

— Se você se sentir à vontade para contar, seja hoje ou em qualquer outro dia, eu sou todo ouvidos.

Ela limpou a garganta teatralmente, recompondo cuidadosamente seu rosto, antes melancólico, para uma máscara de diversão.

— Pequena Isabella tinha uma imaginação muito fértil. – Ela começou. – Também se entediava facilmente, o que eu acredito fazer parte do pacote de uma criança criativa. Então, sempre que íamos visitar a vovó Swan, era um tormento pra mim. A viagem em si não era tão longa, mas acho que ser obrigada a ficar sentada durante duas horas em um carro, se prova demais pra qualquer criança. Ainda mais pelo fato de Rosalie ser pequena e muito chorona, nem pra brincar comigo servia.

Fiquei surpreso pela minha teoria de Rosalie ser a mais velha ter sido falha. Ela continuou:

— Sendo assim, meus pais eram obrigados a me entreter das formas mais distintas que eles podiam encontrar. E tinha essa brincadeira em que eles colocavam uma música pra tocar e eu precisava interpretar. Como uma atuação, sabe?

Assenti com a cabeça.

— Meu pai basicamente só ouvia country, mas minha mãe era bem eclética. Quando eu penso nisso, é quase imediato ouvir o barulho de motor misturado à música “Take Me Home, Country Roads”. Era um clássico, não podia faltar. Acho que foi a primeira música que aprendi a cantar. – Ela riu e fechou os olhos, ficando distante por um tempo, e continuou a falar de olhos fechados, com a voz tão baixa que precisei me inclinar sobre a mesa para ouvir melhor: – Se eu me concentrar o suficiente, consigo sentir todos os cheiros, Edward. Todos os sons. Eu escuto o tamborilar dos dedos do meu pai no volante, enquanto fazia o ritmo de alguma música; a risada da minha mãe; o choro da minha irmã. – Ao dizer isso, uma lágrima deslizou pesada por uma de suas bochechas. – É cruel lembrar com tanta vivacidade e pensar que nada disso existe mais, nem nunca vai existir. Que a gente vive pra criar memórias que, a cada vez que fechamos nossos olhos, se tornam mais embaçadas. Às vezes elas são muito claras, mas em outros momentos, eu me pego desesperada tentando lembrar do tom de voz do meu pai e ele me escapa. Às vezes eu tento recriar a risada da minha mãe e percebo que a minha mente não consegue dar conta de reproduzir. Tudo vai se esvaindo aos poucos, é impossível lembrar de todos os detalhes com precisão. Eu entendo que é isso que os fazem ser especiais, porém não consigo deixar de me revoltar mesmo assim. Tem dias que eu só queria lembrar, apesar de saber que é inevitável esquecer. É pro esquecimento que caminhamos o tempo todo. Eu entendo isso, mas não me conformo que tenha que ser dessa maneira. – Mais lágrimas escorriam rosto abaixo.

Com isso, eu me levantei de onde estava e fui ocupar o lugar vazio ao seu lado, tomei sua mão com delicadeza e estava pronto para sugerir que mudássemos de assunto. Porém, Bella apertou os meus dedos e deu prosseguimento à sua narrativa, ainda com os olhos delicadamente cerrados.

— Minha mãe, no entanto, tinha outra música como preferida. – Ela prosseguiu e limpou a garganta para afastar o choro. – Apesar de nossa família nunca ter sido ligada à música clássica, essa era uma que ela gostava, porque a lembrava de seus pais, que também eram falecidos. Talvez você conheça, se chama “Clair de Lune”. E eu, obviamente, me imaginava como essa bailarina, que se chamava Claire. – Ela riu e se virou para mim, abrindo os olhos.

Eu estava muito quieto, quase sendo transportado junto com ela para uma época que eu nunca nem havia vivido. Se eu já sentia saudades, mesmo que eu nunca tivesse passado por nada daquilo, imagine com deveria ser para Bella.

— Eu gostava tanto de ser Claire, – recomeçou ela – que eu aguardava ansiosamente pelo momento da viagem em que minha mãe colocaria para tocar “Clair de Lune”. Eu até mesmo passei a me apresentar com esse nome quando mudei de escola e não conhecia ninguém. Acredito que era uma forma de fingir que eu era essa pessoa, que era muito mais legal que a Isabella. Era mais fácil fingir ser a Claire. Pra ser honesta, acho que eu continuei me refugiando nessa ideia de ser ela desde da morte dos meus pais, há alguns meses. É assim que eu me apresento em cada oportunidade que eu encontro. Mas sabe o que eu descobri ontem? Que eu gostei de ser Isabella com você. E isso não acontecia há muito tempo.

Eu não sabia o que responder. Não sabia que simples palavras, uma simples narrativa podia me tirar de órbita de uma forma tão extraordinária quanto naquele momento. Eu parecia estar fora do meu corpo, contudo seu olhar expectante me trouxe de volta à realidade.

Eu deveria dizer alguma coisa.

Estiquei meus dedos para alcançar a lágrima que pendia em seu queixo. Lentamente enxuguei seu rosto, cobrindo-o com minhas mãos desproporcionalmente grandes. Ela voltou a fechar seus olhos, mas dessa vez com uma expressão pacífica, de quem estava aproveitando.

Continuei a circular suas bochechas com a ponta dos meus dedos, mesmo quando não havia nenhum resquício de lágrimas ali, me demorando de propósito, pois estava aproveitando aquele toque tanto quanto ela parecia estar. Seus olhos grandes e úmidos grudaram nos meus e eu me tornei estático. Parece que todo o vocabulário que eu construí ao longo desses 20 anos tinha desaparecido.

Contudo, Bella não parecia se importar com a minha falta de palavras. Como quem leu a minha mente, ela disse:

— Você não precisa ter algo para dizer o tempo todo. Eu só queria ser ouvida, obrigada por fazer isso com tanta delicadeza.

Eu assenti em silêncio, em transe com aquele momento.

— Obrigado por confiar em mim. – Murmurei timidamente.

— Edward, – Ela disse lentamente, saboreando meu nome como fizera da primeira vez – eu preciso te confessar algo.

Olhei confuso, mas ela não esperou por uma resposta e continuou:

— Eu deveria me envergonhar, – ela riu – mas não vou. Porque eu estava curiosa demais sobre você para me desculpar por ter feito o que eu fiz. Foi completamente irritante ontem depois de nos despedirmos, pois você simplesmente não saía da minha cabeça. Então, eu... Hm... – Ela franziu o cenho, tentando encontrar palavras. – Eu achei uma coincidência enorme ter conhecido através de um aplicativo um cara chamado Edward, que não é um nome comum e, na festa, ter conhecido você.

Opa, para onde essa conversa estava indo?

“As histórias batiam e o jeito de falar também. Então, foi fácil eu fazer a relação entre as duas coisas. Pra completar, quando cheguei em casa fiz uma pesquisa de imagem reversa da foto do seu perfil e...”

— Espera aí. O que você quer dizer?

— Deixa eu terminar. Eu acho que estamos quites, afinal. Porque eu encontrei seu perfil nas redes sociais, e você não me disse nada de ser dono do Soulmate! Francamente, Edward...

— Ei, ei. Foi ideia do Jasper de...

— Calma. Você não me disse nada sobre ser dono do aplicativo, – recomeçou ela – mas eu também não disse nada na festa sobre ter certeza de saber que você era você. Portanto, assim que se apresentou como Edward, eu tive a certeza de que era o mesmo cara do aplicativo. Mas dava pra ver que essa possibilidade nem passava pela sua cabeça. A foto de Cole entregou, não foi?

Eu ri, apesar de estar confuso.

— Você nem deu tempo de me explicar, Bella. Eu queria contar isso direito, mesmo que você nunca mais olhasse na minha cara. Mas, pelo visto, alguém bancou a detetive.

— Acha mesmo que eu faria isso? Acha que eu não ia mais querer falar com você? Com todo o respeito, o aplicativo e o atendimento são horríveis, mas eu gostei de você e quero te conhecer melhor. Honestamente, você se tornou, em poucas horas, a coisa mais interessante dessa cidade pra mim. Me desculpa por ter te stalkeado dessa forma, mas eu não me arrependo. Não é como se você fosse um assassino em série ou algo do tipo.

— Na verdade, não tem como saber disso. E, já que estamos colocando as cartas na mesa, tem outra coisa que você deveria saber...

Sua expressão se tornou mais séria.

— Eu que te atendi. Aquele atendimento horrível foi o meu. – Eu disse olhando para baixo, com medo de sua reação.

Ela riu.

Ela riu?

— Era isso que você temia? De ter sido grosseiro com uma estranha irritante que pediu o dinheiro de volta?

— É... E porque eu descobri que essa estranha era você. E você não é irritante. Você me irritou, mas só pelo fato de estar totalmente certa sobre o aplicativo. É injusto, ainda não entendi o que alguém como você estava fazendo lá. Mas eu posso compensar os nove e noventa, ok? Eu pago o seu lanche.

— Ah, com certeza você vai! – Seu rosto agora estava iluminado com um sorriso, qualquer traço de choro bem longe. – Eu não estava esperando receber realmente o dinheiro de volta. Só achei que devia reclamar mesmo assim. Eu sei que dei azar com ele.

— Eu achei que ele fosse só um transtorno também, até me provar o contrário colocando a garota mais legal e linda da cidade na minha frente. Pra mim funcionou. – Dei de ombros.

— Pensando por esse lado... Ele funcionou de uma forma muito inesperada. E eu não poderia estar mais feliz com todas essas coincidências. – Ela levantou seu copo de refrigerante. – Vamos brindar ao SoulMate!

Eu então levantei o meu e encostei no dela.

— Saúde!

Voltamos a comer nossos lanches frios por um tempo, até eu quebrar o silêncio.

— Sabe, eu achava que iria ser punido de algum modo por brincar com a ideia de almas gêmeas. Porque eu não acredito nessas coisas, nunca acreditei. Continuo não acreditando, na verdade. Mas talvez o que eu vá dizer agora soe como um papo de emocionado, mas... Eu sou grato por ter esbarrado com você. Seja isso destino ou uma série de coincidências, é bom dividir um pouco dessa confusão com alguém. E eu estou aberto a estar aqui com e te ouvir falar sobre qualquer coisa da sua vida. Foi bom te conhecer.

— Sim, está sendo. – Corrigiu ela sutilmente. – Eu não acredito nessa merda de almas gêmeas também. Acho que as pessoas escolhem estar onde querem estar. E, convenhamos que, isso é muito mais interessante do que estar ligado a alguém só por causa de uma força invisível. Ugh, chega a ser triste.

Eu sorri e ela me acompanhou.

E essa sensação tomou conta de mim, me aquecendo de dentro para fora, até eu não conseguir pensar em mais nada claramente.

Pois ela ofuscava tudo. E, de repente, o lugar que antes era um restaurante, se tornou insignificante e vazio. Os sons ao redor se desmancharam gradativamente à nossa volta. E o espaço entre nós diminuiu, sem que eu nem tivesse consciência de fato.

Ela era. Isabella. Um centro de gravidade que me atraía para o inevitável desfecho. Algo que eu involuntariamente desejara desde que o sino daquela porta havia anunciado sua chegada.

Seus olhos grandes estavam colados nos meus, como quem estivesse memorizando meu rosto, parecia querer guardar todos os meus detalhes para si antes de fechá-los para me beijar.

E eu senti seus lábios com gosto de sal de lágrimas nos meus. E era assim que eu me lembraria para sempre deles. Mesmo que tivéssemos experimentado inúmeros tipos de beijo, eu sempre me lembraria do primeiro ter sido banhado a lágrimas – o que não era de modo algum ruim, pois foi a primeira vez de muitas em que ela compartilharia toda sensibilidade do seu mundo comigo. Porque ela não tem medo de se entregar aos seus sentimentos, mesmo que às vezes seja dolorido.

E eu sabia, já naquele momento, que se um dia eu me afastasse, ela seria independente o suficiente para pegar um cobertor limpo no armário e se aquecer sozinha.

Porém, eu não me afastei. E com os anos, depois dos e-mails, das mensagens, da festa, conversa nas estrelas e de beijo salgado, ela ainda me escolhe para que eu a aqueça quando as coisas se tornam pesadas demais. E eu, que tinha um certo desconforto com toques, aprendi a deitar em seu colo e colocar tudo o que me machucava para fora. E ela, como sempre, é capaz de ofuscar as piores coisas em mim.

O aplicativo, contudo, permaneceu lá, de nome inalterado. Mas eu e os meninos cuidamos para que ele fosse um pouco melhor. Não sei se fomos capazes, mas as reclamações, ao menos, caíram bastante. Ameaças de processo e morte ainda eram presentes, claro. Porém, as terças se tornaram bem melhores, pois Isabella canta para mim.

E, com ela, tudo fica bem melhor.

O meu recomeço em um novo lugar trouxe coisas que eu nunca poderia imaginar. A amizade com Alice, eu não ter matado meus melhores amigos na primeira oportunidade que tive – essa era realmente surpreendente – e, claro, Bella.

Essas histórias foram apenas o começo, apenas uma pequena amostra do quão promissora a vida, de repente, se mostrou para mim. Eu, que nunca tive muitas pretensões ou grandes sonhos, me vi desejando construir algo além de pagar contas e dormir. Bella me ajudou a abrir todas as portas que eu nem sabia que existiam. Foi como se um grande circo tivesse chegado na minha cidade pacata demais, agitando a pequena praça e trazido sentido e alegria para tudo que estava dormente dentro de mim.

Eu nunca imaginei que um ser humano pudesse ser capaz de aflorar todas as sensações da forma que ela aflora em mim, tanto que me assusta.

Mas com ela, sinto que finalmente, as coisas fazem sentido da forma mais louca possível.


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Notas finais do capítulo

Aí vão as músicas usadas na one:
https://www.youtube.com/watch?v=XqCg4sIhyFc
https://www.youtube.com/watch?v=1vrEljMfXYo
https://www.youtube.com/watch?v=CvFH_6DNRCY



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