Céus em Queda escrita por Youseph Seraph


Capítulo 13
A Honra da Família Durand




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Gabriel não sabia o que estava acontecendo, e Lisa não sabia por que estava nos jardins dos Durand. Mas os dois sabiam que aquilo era obra dos poderes de Gabriel, e que poderiam ajudar Hugo de alguma forma por ali.

Os dois caminharam lentamente até o gazebo, onde roseiras cresciam livremente como parte da arquitetura. Contudo, Hugo, que estava sentado com outra moça, idêntica a ele, ao redor de uma mesa delicadamente decorada, bebendo chá juntos, pareceu não notar a presença de Gabriel e Lisa.

—Eu não queria ter que fugir, Camélia. —Disse Hugo, em um tom de melancolia. —Eu não quero deixá-la.

—Lisa já sabe? —Perguntou a moça, Camélia.

Hugo assentiu com a cabeça.

—O que estamos vendo aqui? —Perguntou Lisa, que ia andando pelo ambiente apreensiva.

—Memórias. —Concluiu Gabriel. —Mas nunca vi elas desse jeito.

Então, tudo se contorceu. A terra parecia se mover e, em um instante, eles estavam dentro de um quarto. As paredes de madeira não eram pintadas, mas envernizadas. Havia uma grande cama, com largos lençóis brancos e vários detalhes entalhados na madeira.

Em uma das paredes, uma enorme janela com grades de ferro estava aberta, fazendo uma leve brisa entrar, levando as cortinas brancas para o ar de uma forma etérea.

Havia também um enorme guarda-roupas aberto, cujas portas eram detalhadas com padrões florais. As roupas eram, contudo, pequenas. Era um quarto de um adolescente.

A escrivaninha e as cabeceiras também eram detalhadas com este mesmo padrão floral.

—Estamos no quarto do Hugo. —Disse Lisa. —Estamos dentro da mansão.

Assim que Lisa concluiu, três adolescentes correram pelo quarto. Um deles era um rapaz loiro, de cabelo um pouco comprido, preso em um rabo de cavalo. Ele usava uma camisa branca e uma calça com suspensórios preta. Outra era uma menina, que usava um detalhado vestido branco de renda. Ela também era loira e tinha os cabelos arrumados em um complexo penteado. Por fim, havia um rapaz que, diferente dos outros dois, era de uma pele mais bronzeada e tinha um cabelo castanho liso. Ele tinha intensos olhos violeta e usava um colete preto sobre uma camisa branca, bem como a calça acinzentada. Eles vieram até o quarto rindo, cada um com um livro na mão, e o rapaz de cabelos castanhos também trazia uma xícara de chá quente.

—Mamãe me disse que esse livro não é uma boa influência pra mim. —Disse a menina, em um tom de deboche.

—Mas você vai ler mesmo assim, né, Camélia? —Perguntou o rapaz de cabelos escuros. —Não faz mal um pouquinho de emoção nas suas histórias.

Eles riram.

—E o que é tão emocionante assim, Hil? —Perguntou o rapaz loiro.

—Ah, se eu contar estraga a história, Hugo. —Respondeu o rapaz que foi chamado de Hil.

—Nesse caso, eu vou esconder bem fundo pra mamãe não achar. Vou ler quando for hora de dormir. —Disse a pequena Camélia, indo correndo para o quarto ao lado.

Quando Camélia saiu, o rapaz de cabelos escuros olhou para Hugo.

—Você quer realmente saber o que tem naquela história, Hugo?

Hugo fez que sim com a cabeça.

—Me diga, você já se apaixonou antes? —Ele continuou.

—Não, eu acho que não. —Respondeu Hugo, corando um pouco.

—Nem por alguma amiga sua? A Morgan, sei lá?

Gabriel olhou para Lisa nesse instante. Ela estava claramente desconfortável.

—Morgan. Lisa Morgan. Essa sou eu. —Disse Lisa.

Hugo negou com a cabeça.

—Eu acho que eu sou diferente.

—Diferente como? —Disse o rapaz, se aproximando de Hugo, deixando a xícara de chá na escrivaninha e pondo a mão no cabelo do rapaz.

Hugo olhou diretamente nos olhos do rapaz. Eles estavam claramente interessados um no outro.

—Você já beijou alguém, Hugo? —Perguntou o rapaz.

—Hilbert, eu... —Falou Hugo, um pouco envergonhado, então, puxou Hilbert pela camisa e deu-lhe um beijo na boca.

Os dois ficaram daquele mesmo jeito por longos segundos. Gabriel voltou seu olhar, desconfortável, para Lisa. Ela estava terrivelmente perturbada.

—O que aconteceu? —Perguntou Gabriel.

—Eu sei o que vai acontecer. Hugo me contou... —Disse Lisa, antes de ser interrompida por uma voz que viera de trás deles. Uma voz grossa e furiosa.

—O que está acontecendo aqui!? Que indecência é essa!?

Quando Lisa e Gabriel ouviram a voz, estremeceram de medo, tanto quanto os dois adolescentes nas memórias de Hugo.

A voz vinha de um homem, vestindo um típico traje vitoriano. Camisa branca, colete preto brocado e uma calça preta. Tinha cabelos loiros curtos e um bigode. Olhos verdes como esmeraldas, marcados pelas rugas que esculpiam uma expressão da mais profunda fúria.

A mais breve visão daquele homem nas memórias de Hugo fez Gabriel e Lisa estremecerem. Os dois adolescentes, Hugo e Hilbert, estavam muito pior. Eles não conseguiam se mover, estavam paralisados de medo, a ponto de não conseguirem soltar as mãos um do outro.

Aquele, sem dúvida alguma, era Erron Durand. Um tirano diabólico, até mesmo nas memórias do próprio filho.

—Você, Flores. Como pôde tocar no meu filho desse jeito? Como pôde profanar a honra dos Durand? —Vociferou Erron.

—E-eu não tive a inten-

—Como não teve? —Interrompeu Erron.

Os dois rapazes finalmente conseguiram se soltar. Erron segurou Hilbert pelo colarinho da camisa e o lançou um olhar de mais puro desgosto.

—Você é uma vergonha para a sua família. Eu te exilo no mundo material.

Assim que terminou de falar, Erron Durand tomou em sua mão esquerda a xícara de chá quente e jogou no rosto de Hilbert, que gritou em agonia.

Hugo, assistindo tudo aquilo, se aproximou do pai aos gritos.

—Não faça isso!

Erron, ouvindo seu filho clamar por piedade, jogou a xícara no chão, que se quebrou em um estrondo. Então, tomou no lugar dela um punhal de prata com pedras de esmeralda entalhadas no cabo, que guardava em um bolso no colete brocado, desembainhou com a boca e cravou nas mãos de Hilbert.

Hilbert gritou em agonia.

Hugo estava tremendo de medo. Ele implorava pelo perdão de seu pai.

Lisa e Gabriel não puderam conter o desconforto daquela cena, abraçando um ao outro como uma tentativa de não ver a brutalidade de um homem contra dois adolescentes. Eles apenas ouviram os gritos de Hilbert por um tempo antes de voltarem a olhar.

Erron então jogou Hilbert contra o chão e realizou um ritual, fazendo o rapaz sumir para o mundo material em um turbilhão de luz verde.

—Você vai aprender a nunca mais tocar no meu filho. —Bradou Erron. —E você. —Tornou a olhar para Hugo. —Vai aprender a nunca mais se render a essa indecência.

Então, Erron segurou Hugo pelo braço e o forçou a se ajoelhar de costas. Com os olhos tomados pela fúria contida, cortou as costas do filho com seu punhal com a mais pura intenção de infligir dor. Corte após corte, o adolescente gritava. Gritava pela dor, pela agonia, pelo sentimento de ser a vergonha da família Durand. Gritava por Hilbert, por ele mesmo e pelo próprio pai. Hugo se contorcia de dor a cada vez que a lâmina do punhal passava por sua pele.

Conforme o sangue manchava as costas de Hugo, que antes de tudo aquilo era como uma seda pálida, passou a ser um imenso horror em vermelho.

Lisa se apoiou em Gabriel por um momento. A brutalidade de Erron fazia seu estômago embrulhar. Ela sabia o que havia acontecido naquele dia, mas ver o trauma tão nítido em sua frente continuava sendo horrível. Gabriel estava tão perturbado quanto Lisa. Ele se perguntava o quanto mais Hugo precisou suportar nas mãos de um monstro como Erron.

O céu fora da janela pareceu tingir-se com o vermelho do sangue. Então as cortinas, e os lençóis, então tudo se distorceu em uma outra memória, em um outro ambiente. Como se do sangue vermelho brotasse um jardim de rosas vermelhas.

E nesse jardim, uma mulher de cabelos pretos e pele pálida se aproximou. Uma menina, de olhos azuis profundos, estava ao seu lado, ambas usando um vestido branco que ia até os joelhos.

—Eu lembro desse dia. —Disse Lisa, olhando fixamente para os olhos da menina, ainda atordoada com a mutilação que Erron executou com a mais pura crueldade no seu próprio filho. Os olhos de Lisa estavam lacrimejando. —A menina. Ela sou eu.

Do outro lado do jardim, vinha Erron e Hugo. Camélia vinha logo atrás. Os dois adolescentes vinham com uma expressão de tristeza cravada em seus rostos.

—Senhorita Morgan, é bom vê-la. —Disse Erron, com um tom formal na fala.

—É uma honra, senhor Durand. Garanto que Lisa será uma ótima noiva para seu filho. —Respondeu a mulher.

A Lisa adolescente não estava muito feliz com isso. Ela e Hugo eram claramente bons amigos desde muito tempo. Ambos trocaram olhares de desdém para as ideias dos seus pais. Camélia também não aprovava.

—Soube que Lisa tem hábitos um tanto quanto peculiares. Tem interesse por espadas e se recusa a aprender a bordar. —Criticou Erron.

—Espadas são a peculiaridade da casa Morgan. Com todo o respeito, é normal que ela se interesse. E eu faço questão de ensiná-la a bordar, se é isso que deseja para uma nora, senhor Durand. Minha filha não é nenhuma indecente. É uma dama. —Concluiu a senhora Morgan.

—É bom saber disso. Nossos filhos constituirão o futuro das nossas famílias. Que essa união seja a aliança que precisamos. —Concluiu Erron, oferecendo a mão para a senhora Morgan.

—É um prazer ter Hugo como meu genro. —Aceitou a mulher, estendendo a mão delicadamente para os cumprimentos de Erron.

Lisa, que estava ao lado de Gabriel assistindo aquilo tudo, estava tremendo. Ela estava lutando para segurar as lágrimas dentro de seus olhos, mas não conseguia. Gabriel se aproximou de Lisa e pôs a mão em seu ombro esquerdo.

—Lisa, tudo bem, é só uma memória. —Falou Gabriel com calma. —Você já passou por isso antes, vamos sair dessa.

Ela assentiu com a cabeça e o abraçou.

E no meio desse abraço, a visão mudou.

Eles estavam em uma locomotiva. Hugo e Lisa estavam como chegaram na mansão Seraph.

Hugo estendeu o braço para Lisa, exibindo um pequeno glifo de energia.

—Tem certeza que o feitiço de Babel vai funcionar?

A Lisa da visão fez que sim com a cabeça.

—Vamos indo, já estamos feridos o suficiente. Fugir dos seus primos não foi nada fácil.

—É. Os Durand nunca foram amigáveis. Mas eu fico feliz que tenha aceitado fugir desse casamento. —Disse Hugo.

—Não é como se tivesse outra opção. —Respondeu a Lisa da visão. —Não quero abrir mão da ferrocinese ou da minha vida para viver como uma dama obediente.

—E nem eu quero desistir de um romance com quem eu realmente vou ser feliz. —Concluiu Hugo, mas ao virar os seus olhos para a janela, viu uma sombra. —Cuidado!

Os dois saltaram da locomotiva em movimento, caindo na terra. Rapidamente se recompuseram e começaram a correr.

Um homem de vestes góticas como os Durand estava a correr atrás deles com um chicote. Ele tinha cabelos pretos curtos, pele pálida como giz e usava um cavanhaque. Sem olhar para trás, Lisa e Hugo correram para o território Seraph. Por minutos, eles correram sem parar, até que um espinho atingiu o abdômen de Hugo. Ele caiu, jorrando sangue pelo chão.

A Lisa da visão não pensou duas vezes antes de segurá-lo em seus braços e correr. Correram como nunca antes. Por minutos. Horas. Um dia quase inteiro. As ilusões se tornavam inconstantes. Lisa já não sabia mais se haviam despistado o seu caçador. Mas sabia que não poderia desistir de seu amigo. Enfim, um portão de grades de ferro surgiu em sua frente.

—Babel não falhou, Hugo. O feitiço funcionou. Ele nos mostrou o caminho. —Disse a Lisa das memórias de Hugo.

Hugo, então sorriu, e finalmente fechou os olhos. Tudo ficou escuro. Havia apenas um corpo no chão invisível de um vasto abismo de escuridão. O corpo de Hugo.

Gabriel e Lisa correram até o corpo. Ele estava frio, de olhos fechados, mas ainda respirava.

—Hugo! —Gritou Lisa. —Hugo, sou eu, Lisa!

—Hugo! —Gritou Gabriel, logo atrás.

Aos poucos, o corpo de Hugo foi recobrando a luz e o calor. Ele sentiu uma luz percorrer a sua mão, e então, seu corpo. Os seus ferimentos já não doíam mais, e seus olhos começaram a se abrir.

Em um piscar de olhos, Gabriel e Lisa voltaram ao mundo real, na mansão Seraph. Eles estavam no quarto de Hugo.

Gabriel e Lisa caíram no chão como se tivessem passado dias nas memórias de Hugo.

—Ai, o que aconteceu? —Reclamou Lisa, logo depois de notar que estavam de volta e se levantou. —Hugo!

Os olhos de Hugo, que estava na cama, começaram a se abrir.

—Lisa? —Perguntou Hugo.


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