Caixa. escrita por Mestre do Universo dos Vermes


Capítulo 4
Marshmallows.




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/790745/chapter/4

Eles não estavam realmente animados para ir acampar naquele dia. Kelly já tinha 14 anos e se achava grande demais, mas sua mãe insistiu que ela devia ir e fazer companhia para o irmão. Se enturmar nunca foi o forte dele.... Já Dan, no auge de seus 8 anos, já mostrava uma certa paranoia com, bem, qualquer coisa, de acordo com sua irmã.

“...E tem germes, a água pode estar contaminada, animais selvagens ficam à solta, tem ácaros nas camas, podemos pegar uma insolação...” Ele continuava a lista interminável de “ameaças” em potencial. Como uma criança tão pequena falava tanto? Ela era chata assim aos oito anos?

“Relaxa, vai ser legal” Garantiu “Prometo”

“Não sei...” Ele olhou pela janela do ônibus a paisagem cada vez mais rústica “Prefiro nossa casa”

“É, mas acampar um tempo pode ser bom. Cabanas, outras crianças, brincadeiras... Vai ser bom” Dan precisava sair mais. Ele não era exatamente um sucesso na escola, provavelmente por se recusar a brincar com as outras crianças e apontar cada risco de segurança, real ou irreal, que pudesse encontrar.

“Tá...” Cruzou os braços. Não é como se pudesse voltar atrás. Pelo menos ele convenceu seus pais a pôr todos os itens essenciais na mala: álcool em gel, uma fronha anti-ácaros, band-aids, Merthiolate (só pra garantir), sabonete bactericida. Só o essencial.

“Para de paranoia, vai dar tudo certo” Kelly bagunçou seu cabelo do modo de sabia que ele odiava e riu quando Dan protestou. Ele respondeu com um soco leve no braço dela. Depois passaram o resto do caminho brincando de dar forma às nuvens.

*

Fazer Dan sair da cabana de madeira e entrar num time de queimada foi uma guerra por si só. Nesses momentos, Kelly lembrava que veio mais para ficar de babá que pelo acampamento propriamente dito.

Ele era desajeitado com a bola, mas cooperou mais do que Kelly esperava. Até parecia ter se divertido em um momento ou outro, mas mais que tenha negado e dito firmemente que só foi porque foi obrigado quando ela perguntou, no jantar. O refeitório também era de madeira e Dan vasculhava cada canto em busca de mofo ou cupins. Não satisfeito, foi até o cozinheiro e perguntou de onde veio a comida, então checou a validade das latas e só então, relutante, comeu.

Dan era tão esquisito.

Kelly deu de ombros e comeu a própria comida. Teriam marshmallow depois! Com fogueira e tudo, como um bom estereótipo de acampamento. Apesar de se considerar “uma mocinha”, ela não pôde evitar a empolgação com a ideia de fogueiras e doces e histórias e a luz da lua. Parecia tão legal.

A parte irritante foi arrastar um menino de oito anos que recitava os perigos de incêndio, queimaduras severas, ataques cardíacos fulminantes, diabetes, alucinações induzidas por açúcar (esse nem existia... Certo?) e tudo mais que sua mente infantil podia pensar.

“Vamos, Dan, já disse, ninguém vai se queimar” Disse pela trocentésima vez.

“Você não tem como saber disso!”

Depois de muito negociar e implorar e ameaçar e subornar, Kelly o convenceu a se juntar aos outros com a promessa de:

a) Não comer mais de dois marshmallows por causa dos malefícios do açúcar, que ela só fingiu que escutou enquanto assentia.

b) Contar uma história para ele antes de dormir

Foi mais fácil do que ela esperava, na verdade.

*

“—E então o príncipe encantado desmontou do cavalo, que tinha tomado banho no dia anterior, e sacudiu a princesa suavemente. Então ofereceu enxaguante bucal para ela e, depois de pedir permissão, a beijou para encerrar a maldição” Recitou. Essa história era o resultado de várias distorções em Branca de Neve para torna-la palatável para um menino enjoado, paranoico e que via problema em tudo, como Kelly gostava de dizer.

Não que não fosse engraçado imaginar a Branca de Neve precisando escovar os dentes antes do beijo e o príncipe convenientemente carregando enxaguante bucal e outros produtos de higiene dental com ele por aí. Era hilário.

“Bem, é isso, agora fica bonitinho aí e dorme, viu?” As garotas dormiam separadas dos garotos. E, nessa cabana, eram Dan e mais outros dois meninos, mas ele era o único acordado agora. O que era meio estranho, considerando a quantidade de açúcar que os outros dois consumiram.

“Espera!” Dan segurou a manga de sua camisa do pijama “Eu posso... Sabe... Dormir com você?”

Kelly estava pronta para dizer “não”. Era contra as regras, ele estava grande demais, ela queria a privacidade dela, ele já tinha companhia, não tinha motivo para ter medo. Mas então ela viu os olhos pidões dele, Dan nunca lidou bem com ambientes novos, e algumas das histórias na fogueira tinham sido de terror, por mais que fosse um terror bobo e infantil...

“Tá, mas só dessa vez”

Pra ser sincera, ela também não dormiria muito bem pensando nele sozinho com dois garotos estranhos numa cabana escura. E, se eles acordassem cedo pra ele voltar logo, nenhum dos monitores descobriria.

“Obrigado!”

Dan era espaçoso demais e quase a chutou da cama estreita várias vezes, além de insistir em usarem o travesseiro dele com a fronha “à prova de ácaros” e a abraçar com tanta força à noite que ela mal podia se mover.

Mesmo assim, quando Kelly acordou, décadas depois, naquele acampamento em ruínas, pensou no quanto dormiria bem se essa cena se repetisse agora.

*

Claro que foi um sonho. Era sempre um sonho. As melhores coisas eram, não?

A dor de cabeça latejante cedeu um pouco e ela ponderou se devia ou não tomar outro comprimido. Ela vinha se entupindo deles ultimamente. Talvez não fosse uma boa ideia.

Dane-se, pensou e engoliu dois de uma vez.

Foi tão esquisito sonhar com aquele dia. Tão aleatório. Ela não tinha essa lembrança há séculos.

Dan surtaria se visse esse acampamento agora, pensou enquanto saía da cabana se desfazendo. Agora sim o lugar era um perigo estrutural tomado pela natureza e cheio de vermes e parasitas. Ela achou que viu uns ratos pelos escombros do refeitório desabado.

Andando pelo perímetro do que um dia foi um acampamento, viu o campo tomado pelo mato que já foi onde jogaram queimada e vôlei; o ponto que acendiam a fogueira, a trilha quase invisível que levava ao lago; todas as pequenas coisas insignificantes que, enfadonhas na época, agora pareciam relíquias do passado.

Seu corpo todo doía por causa da viagem frenética até aqui, mas tudo bem. Engolindo outra pílula com uma golada de café frio, ela decidiu fazer a trilha para o lago há muito esquecida, em sua mente a imagem de um menininho paranoico de oito anos a abraçando trazia um sorriso a seus lábios amargos.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Caixa." morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.