Caixa. escrita por Mestre do Universo dos Vermes


Capítulo 2
Kelly.




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Kelly tinha seis anos quando seu irmão nasceu.

Ela se lembra bem de quando seu pai levou sua mãe às pressas para o hospital e sua tia ficou cuidando dela em casa. “Hospital não é lugar para criança”, ela disse, “você tem que ficar aqui comportadinha com a titia agora. Sua mãe e seu pai estão fazendo algo muuuito importante e você vai ter que ser uma boa irmã mais velha, vai sim”.

Kelly nunca gostou muito do modo que sua tia falava, sempre parecia que ela era um bebê. Ou uma idiota. Ou um bebê idiota. Parece que adultos sempre associavam um ao outro.

Mesmo assim, ela estava animada. Ela teria um irmão! Claro, uma irmã seria mais legal, mas um irmão estava bom. Um irmãozinho para brincar e brigar e talvez até zoar um pouquinho.

Os primeiros anos não foram tão animadores quanto ela imaginou. Bebês não fazem muita coisa, eles não podem brincar de pega-pega, não correm, não falam, não brincam de casinha, não montam quebra-cabeças. São basicamente sacos de batata chorões e que usam fraldas. E deixam os pais acordados e de mal humor.

Mas tudo bem, ela tinha suas amigas. Logo seu irmão começou a dar passos desajeitados, então corridas desajeitadas, palavras balbuciadas, discursos sólidos. Ela estava lá em todos esses momentos. Toda a metamorfose de saco de batatas para ser humano.

Claro, não foi tão divertido quanto ela imaginou aos seis anos. Quando ele aprendeu a andar, ela já corria muito bem; ele lia contos de fadas, ela lia infanto-juvenil; ele tinha medo do escuro; ela tinha medo da prova de matemática. Mesmo assim, ela o ensinou a pular corda e o deixava ser café-com-leite no pique-esconde e no pique-pega. Não era uma diferença tão grande.

Ele fez uma maratona de filmes com ela quando seu primeiro namoro acabou. Ela escondeu os cacos de vidro quando ele quebrou a taça favorita da mãe deles e inventou uma história de que o gato derrubou.

Eles eram bons irmãos. Eles eram bons amigos. Eles eram bons alguma coisa.

E é por isso que ela se odiava tanto agora.

"Senhora, preciso que se concentre." A detetive a chamou de volta à realidade.

Dois dias.

Dois. Dias.

Foi o tempo que ela levou para descobrir que seu irmão sumiu.

Sumiu, desapareceu, escafedeu-se, puft.

Ela era uma irmã horrível.

— Senhora — A detetive repetiu — Qual a última vez que você o viu? A última coisa que se lembra?

— Eu... Nós estávamos no apartamento dele. Uma festinha pequena, social, só eu, ele, uns primos e uns poucos amigos. Eu insisti porque ele tinha que ver mais gente, sabe? Se soltar mais — As mãos dela tremiam — Ficamos umas horas lá, conversamos, comemos, vimos um filme — Uma dor de cabeça chata se pronunciava. Uma pontada na têmpora — Eu saí e não nos falamos mais por umas duas semanas mais ou menos.

—Mais ou menos?

— É. Eu mandava mensagem pra ele de vez em quando, pra ver se estava tudo bem. Uma hora ele não respondeu mais, mas achei que ele estava ocupado, ele fica ocupado às vezes. Obcecado com alguma parte do trabalho ou reorganizando a casa.

Dan sempre foi um pouco metódico demais. Ela devia ter checado. Ela podia ter checado. Ela queria ter checado!

Ninguém sabia para onde ele foi. As câmeras só o mostravam saindo do apartamento sem mala nem nada e o perdiam de vista no estacionamento. Ele não foi trabalhar. Não trancou a porta ao sair. Simplesmente saiu, com nada além das roupas do corpo, e sumiu.

Kelly se sentia arrasada.

Encontraram o celular quebrado no pátio, como se tivesse sido arremessado pela janela, e a casa estava relativamente intacta. Sem sangue, sem móveis quebrados, sem roupas espalhadas, só uma mecha de cabelo cortada na pia do banheiro, restos de pão queimado na pia da cozinha e uma caixa vazia sobre a mesa.

A despensa estava quase vazia e o apartamento parecia não ser limpo há algum tempo. A cama estava desfeita e a roupa suja jogada no cesto. Kelly achou aquilo desconcertante.

Seu irmão era ótimo, mas podia ser um pouco... Exagerado com limpeza. Meticuloso. Ele dobrava até as roupas sujas antes de colocá-las no cesto e jamais esqueceria um único item numa lista de compras. Havia algo errado.

Cartazes foram distribuídos, o rosto dele apareceu na TV, câmeras de segurança foram revisadas, pessoas foram entrevistadas. Seus colegas de trabalho pensavam que ele tinha ficado doente ou tido uma emergência familiar, seria a única explicação de por que um funcionário exemplar não apareceu ou atendeu o celular.

Ele não tinha realmente amigos próximos. O mais perto disso era sua irmã, que morava do outro lado da cidade e precisava dirigir quarenta minutos para chegar lá.

Era um caso sem explicação.

Os dias passaram, o caso se arrastou, as pessoas pararam de se preocupar tanto. Talvez perderam as esperanças, talvez se acomodaram, talvez seu relógio interno decidiu que a hora de se importar acabou.

Kelly não aguentava. Ele era tudo que ela tinha. Eles só tinham um ao outro desde que sua mãe morreu e seu pai foi internado num asilo mal sabendo quem era. Eram a única família sã um do outro, e ela o deixou na mão.

Ela tinha que consertar isso.

A polícia estava sem direção, as pistas esfriaram, cada possibilidade foi checada.

Mas ela não era da polícia. Ela era a irmã dele. E, se ele sumiu por vontade própria, sem ser coagido, sem ameaças, sem ser morto, ela poderia achá-lo.

Ou esperava que pudesse.

A polícia já tinha vasculhado todas as opções óbvias. A casa dele, a casa dela, os hotéis e motéis, a casa em que cresceram, tudo.

Mas devia haver outra possibilidade. Tinha que ter!

Se não houvesse, ela enlouqueceria.

Não derramou uma única lágrima desde que Dan sumiu. Se recusava a chorar por alguém que não estava morto, e ele não estava morto. Não podia estar.

Sua cabeça latejava, parecia crônico agora, nem os remédios ajudavam mais. Ela não tinha uma noite decente de sono há o que parecia séculos. Suas mãos trêmulas mal seguravam uma xícara de café. Ela se sentia tonta, perdida, desorientada.

Não importa. Ela tinha que sair. Tinha que fazer algo. Tinha que ir para qualquer lugar fazer qualquer coisa.

Se não fizesse, Dan não teria mais nenhum parente são quando voltasse pra casa.

E ele ia voltar. Nem que fosse a última coisa que ela fizesse


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