Ayesha, a Ladra escrita por Janus


Capítulo 6
Capítulo 6




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Algum tempo depois, no terceiro andar de uma das muitas casas bem cuidadas da vila real, uma mulher que passara a noite no calabouço sentia-se revigorada. Aquele banho quente fez verdadeiros milagres para o seu corpo. Nem sentia mais as costas doerem por ter levado aquelas chibatadas. Mesmo as dores em seus ombros quase não se podiam sentir. Mas ela sabia que voltariam a doer no dia seguinte. Já tinha tido seus braços torcidos daquela forma antes, e conhecia bem as dores que sentiria nos músculos e nas articulações nos próximos dias. Se tivesse sorte, acharia algumas ervas no campo para fazer algumas compressas que aliviariam a sua dor.

Por enquanto sentia-se radiante por estar se sentindo bem, limpa e com a pele novamente macia. Mas se sentia um pouco envergonhada por estar nua. A mulher do taberneiro era realmente esperta. A trancou ali dentro dizendo que quando terminasse poderia chamá-la. Isso tinha sido há algumas horas. Ayesha praticamente dormiu dentro da tina de água quente. E mesmo agora com ela um pouco fria, sentia vontade de ficar mais um pouco. Mas não poderia. Tinha muito o que fazer. Precisava pegar suas roupas, conseguir informações mais confiáveis sobre o local em que se encontrava, planejar uma forma de fugir caso seu salvo conduto não fosse entregue ao guarda do portão, pegar a encomenda que deixou no ferreiro, e conseguir mais algumas daquelas moedas estranhas e belas. Nunca tinha visto moedas com cores como aquelas.

Foi até a mesinha onde as deixou e observou uma delas novamente. O desenho era trabalhado, mostrando um trabalhador em um campo. As ranhuras do desenho cobriam ambas as cores da moeda, de forma que falsificar estas devia ser muito difícil. Elas também eram duras como se fossem metal de uma espada, mas também eram leves como o bronze. Uma gentileza o capitão da guarda ter esbarrado nela... Será que imaginava que tinha sido roubado? Talvez ainda não. Quando desse por falta delas ou iria direto ao seu encalço ou por vergonha ficaria em silêncio.

De qualquer forma já tinha cuidado de acabar com a linda bolsa de couro em que as vinte e seis moedas estavam. Simplesmente a colocou no fogo que aquecia a tina. Nenhuma prova contra ela, salvo o testemunho da mulher do taberneiro.

Foi até a porta e antes de bater olhou ao redor novamente. Não havia nada de útil ali. Alguns barris em um canto e cadeiras e peças de mesa ao lado da pequena janela com grades. Aquele sótão podia muito bem ser transformado em uma prisão. Tinha a tina no centro da sala e o fogareiro que a aquecia com uma chaminé de metal neste. O cômodo tinha além disso apenas ela e as moedas que agora estavam em sua mão. Tentou abrir a porta e não estranhou esta estar trancada. Sorrindo, bateu nesta com força, e se arrependeu um pouco depois pois os nós de sua mão doeram com o ato.

Ouviu passos na escada e se afastou da porta. Assim que ela se abriu viu a velha e gorda senhora entrar com suas roupas que tinham um vermelho agora muito vivo! Pareciam muito novas agora, valendo muito bem a moeda que custou para ser lavada. Havia também um grande lençol para se secar.

Isso a lembrava de alguns detalhes... quanto valiam realmente aquelas moedas que tinha?

- Senhora...  ?

- Hilda – disse a mulher – e também não me disse o seu nome.

- Ayesha – respondeu ela.

- Um nome muito diferente. De que região vem?

- Do sul – mentiu – eu queria saber sobre estas moedas – olhou para as moedas que segurava em sua mão enquanto a mulher colocava sua roupa limpa em cima da mesinha – quanto elas valem? Em ouro ou prata, quero dizer.

- Não sei dizer direito... essas daí quase valem uma moeda de ouro – apontou para as moedas em sua mão – mas existem outras com outros números que valem mais. Temos também moedas de dez e quinze crates cada uma. Mas é raro usarmos.

Vinte e seis moedas valiam uma moeda de ouro? Realmente eram valiosas, e o serviço que estava pagando para se lavar era na verdade bem mais caro do que tinha imaginado. Teria que usar as moedas que ainda tinha com muita prudência.

- É cedo para molhar a garganta?

- Não – ela sorriu – já temos os bêbados de sempre lá embaixo, e meu marido já está atendendo eles. Por isso sugiro que se vista antes de descer – ela piscou o olho – nossa taberna é respeitável e dançarinas não são permitidas aqui.

- Uma pena – lamentou-se – queria conseguir um pouco mais de moedas antes de partir.

- Pode tentar do jeito que está acostumada – ela sorriu, não dizendo diretamente que podia tentar roubar de novo - mas não acho que tenha tanta sorte assim. E antes que fique tentada, a punição por roubo é sempre de serviços forçados, isso se não for vendida como escrava. E a propósito, me deve quatro crates.

A velha pegou as quatro moedas e saiu da sala a deixando sozinha para se vestir e pensando no que ouviu. Já era a segunda vez que ouvia sobre a punição de ser vendida como escrava. Primeiro tinha sido na conversa com o capitão da guarda, e agora novamente ouvia o mesmo. Parece que não gostavam de perder tempo alimentando prisioneiros sem receber nada em troca.

Pegou a sua roupa e antes de vesti-la sentiu o tecido. Estava lindamente macio e aconchegante, tendo recuperado inclusive parte do brilho original quando o tinha roubado duas estações atrás de um comerciante de roupas finas. Olhou para o cinto de seda e fez uma careta quando percebeu que a mulher costurou a abertura que ela deixava neste para esconder seus apetrechos para abrir portas. Mas era fácil corrigir o que a prendada mulher tinha feito.

Quando terminou de se vestir seguiu até a tina para observar seu reflexo na água e ficou satisfeita. Era só pentear o cabelo e prendê-lo em um rabo de cavalo e estaria pronta para conhecer melhor o taberneiro e as informações que sabia que podia conseguir com este.

Mas precisava se lembrar que tinha apenas vinte e duas moedas agora.

Olhou ao redor procurando por algo que ajudasse a arrumar seu cabelo. Como não conseguiu resolveu usar a água ainda levemente morna que estava na tina. Umedeceu o cabelo com a água usando o lençol para ajeitar e secar o cabelo ao mesmo tempo. Quando terminou, apesar de não estar como gostaria, estava aceitável. Pelo menos estava melhor que os cabelos de muitas mulheres que viu por ali.

Deu uma última olhada ao redor da sala, apenas para marcar bem como era o local e saiu pela porta. Olhou para as outras duas portas no corredor do sótão e rejeitou a idéia de ver o que elas continham. Decerto eram os quartos da mulher e seu marido ou mais depósitos para suas coisas. A mulher sabia que ela era uma ladra, e com certeza estaria atenta para qualquer coisa que faltasse por ali. Se a punição por roubo seriam serviços forçados, ela podia muito bem entregá-la para que fosse forçada a trabalhar para ela de graça.

Desceu o primeiro lance de escadas até o corredor do segundo andar. Este tinha seis portas e era bem mais extenso. Mas não quis também ver o que poderia ter atrás das portas. Aquelas escadas faziam muito barulho quando se andava nelas, e a mulher devia estar ouvindo ela descendo.

Finalmente chegou ao primeiro pavimento e ficou um pouco surpresa ao ver vários guardas por ali sentados nas mesas e bebendo – e comendo também – com relativa tranqüilidade. No balcão estava um homem alto e forte, típico de tabernas para poder cuidar de brigas. Devia ser a marido da mulher. E por falar na mulher, viu esta a olhando e sorrindo levemente. Depois disto pegou um prato no balcão e levou até uma das mesas onde tinham soldados. Pelo que pode entender os guardas e soldados dali faziam suas refeições na taberna. Ao menos durante o dia.

Bem, ela estava em um excelente lugar para conseguir informações, bem como um monte de boatos. Assim sendo seguiu em direção ao taberneiro, percebendo pelo canto dos olhos os soldados a observarem e com certeza imaginarem coisas com ela. Mas ficou levemente ofendida de não ter ouvido nenhum comentário destes. A disciplina ali era mesmo eficiente.

- Ora, ora... bom dia, minha bela dama. O que deseja? – disse o taberneiro a observando com um sorriso meio de malandro e meio de alguém atendendo um cliente.

Ayesha o observou melhor. Tinha os cabelos também grisalhos e parecia ser cego do olho esquerdo, pois mantinha a cabeça de lado com o olho direito sendo o centro de sua visão. Havia algumas cicatrizes nos seus braços e umas menores no rosto mostrando brigas passadas. Devia ser taberneiro há muito tempo.

- Algo para saciar a sede – disse ela olhando ao redor e observando os guardas atacarem a comida – e talvez algo para comer mais tarde. Vende cerveja por aqui?

- Lamento, apenas vinho. Uma caneca por um quarto.

Um quarto? O que seria isso?

- Então me arrume uma caneca – disse simplesmente.

- Longe de mim querer ser ofensivo, mas... eu não a conheço. Poderia ver os seus valores primeiro?

Ela pegou uma das moedas de um dos bolsos internos de sua roupa e a colocou no balcão, mal olhando para ele. O taberneiro a pegou e sorriu satisfeito, pegando algo que estava abaixo do balcão. Logo depois se ergueu e uma grande caneca de ferro – era enorme! Duas vezes maior que a maior caneca de barro que já tinha usado para beber – e a colocou no balcão. Afastou-se por uns momentos e voltou em seguida depositando três moedas junto a caneca. Ayesha pegou uma das moedas e a observou. Era idêntica as que tinha, exceto que era um pouco menor e tinha os dizeres quarto bem no meio desta.

Era a quarta parte de um crate. Por isso a chamavam de quarto. Satisfeita, pegou a caneca e um pouco surpresa com o peso desta, experimentou o vinho.

Não chegava a ser ruim, mas era de consistência um pouco rala para o que estava acostumada. Mas iria servir perfeitamente enquanto planejava como começar suas perguntas.

Ficou de costas para o taberneiro e de frente para os guardas que comiam por ali. Dois deles a observavam, e não eram com olhos de desejo. Não demorou muito para imaginar se não seriam os mesmos que a arrastaram pelo castelo para diante do rei. Se fossem estariam curiosos com o porque dela estar ali. Não fazia diferença. Não iria dar a ninguém motivos para que fosse presa novamente. Ao menos esperava ser habilidosa o bastante para isso.

- É um vilarejo interessante, este dentro do castelo.

- Concordo – disse o taberneiro prontamente, disposto a conversar como a maioria dos que tinham esta profissão – é quase uma cidade perfeita. Bem vigiada e com comerciantes e mercadores constantemente fazendo negócios. E confesso que as vezes sinto falta de agitação por aqui.

- Mesmo? – ela virou o rosto para trás de forma a encará-lo e fazendo seus seios ficarem mais proeminentes para os guardas que a observavam – acho estranho você dizer isso.

- Nem tanto – ele riu um pouco – mas estou ficando mole e flácido – ele puxou a pele do braço esquerdo mostrando sua elasticidade – há dez anos haviam músculos aqui – disse ele com um sorriso um pouco triste – mas é o preço das melhorias. Agora com os guardas sempre comendo por aqui e com os súditos menos abastados do lado de fora, tem sido muito tranqüila a minha vida. Até penso em me aposentar em mais alguns anos.

Ele estava falando muito para quem mal a conhecia. Ficou um pouco mais prudente com a forma de falar com ele.

- E quem cuidaria dos seus negócios? Seus filhos?

- Não – ele grunhiu algo como se fosse um asco – meu filho mais velho foi preso por ser um idiota, e minha filha... prefiro não falar a respeito. Eu acho melhor vender o estabelecimento. Conheceria alguém interessado?

Então era por isso que ele estava falando tão abertamente. Queria um comprador. Uma pena, mas mesmo que estivesse interessada aquele lugar era muito arriscado para que começasse um negócio fixo.

- Não, lamento. Mas prometo comentar a respeito quando seguir viagem.

- Eu agradeço – disse ele olhando para a frente e parecendo ficar mais divertido – parece que você está chamando a atenção.

Ela olhou para a frente e agora percebeu que todos os guardas a olhavam. Pelo menos não tinha perdido seus dotes naturais, e todos os homens dali ainda se interessavam pelo básico em uma mulher - muito bom saber disto - Ela se virou para ficar de frente ao balão – já tinha feito seu teste, e não precisava continuar com ele – e tomou outro gole do vinho. Mesmo fraco, gostou muito dele estar bem frio e fresco.

- Acredito que você deva conhecer quase todos os que moram e andam por aqui.

- Conheço muita gente – ele olhou-a um pouco de lado – mas isso não quer dizer que saiba muita coisa.

- Bom... com certeza deve ouvir histórias de seus clientes.

- Sem dúvida. A maioria são meras invenções, mas algumas podem ser interessantes.

Perfeito! Ele devia estar pensando que ela queria informações sobre algum comerciante fazendo negócios ou coisa parecida. Agora era o momento de se arriscar um pouco.

- Eu gostaria de saber se ouviu algo de alguém chamada Aramasta.

Ele ficou subitamente em silêncio, apertando um pouco os lábios.

- Ouvi uns guardas comentando sobre ela e fiquei curiosa – continuou tentando aparentar tranqüilidade.

- Aramasta, heim? – ele parecia um pouco mais expansivo agora

- Ouviu falar dela?

- Apenas histórias de bêbados – disse sorrindo e olhando de uma forma um tanto confidente para ela – mas dois guardas hoje de manhã comentaram algo sobre uma condenada a morte que escapou misteriosamente.

Ayesha começou a sorrir também. Aquela taberna parecia ser um bom lugar para obter informações. Apenas algumas horas depois do fato e já haviam comentado alguma coisa por lá.

- O que eles disseram?

- Não lembro bem... – disse com o olhar meio aéreo.

Ela apenas balançou levemente a cabeça e apertando um pouco os lábios por perceber que o taberneiro era um profissional naquela arte de receber e passar cochichos, colocou mais uma moeda sobre o balcão. Ele a pegou e a observou por algum tempo, ponderando se era o suficiente ou não.

- Deixe-me ver... – ele se debruçou um pouco no balcão e fez algumas caretas com os lábios – Sim... acho que me lembro... era uma mulher que tentou assassinar o rei na noite de ontem. Alguns dizem que é uma bruxa.

- Bruxa? – Ayesha ficou mais surpresa com isso do que saber que ela tinha tentado matar o rei.

- Sim – confirmou ele muito sério – ninguém sabe como ela entrou no palácio. E tudo indica que nenhum guarda foi capaz de detê-la. A sorte do rei é que parece que alguém de sua corte também conhece alguns feitiços, o que serviu para proteger o rei e para aprisioná-la. Mas acho que a cela dela não era assim tão protegida magicamente como se esperava.

Ela evitou de ficar um pouco ruborizada. Mal tinha acabado de chegar a cidade e além de ser pega em sua primeira tentativa de roubo – amadoramente como foi comunicado ao rei – ainda ajudou uma bruxa a escapar. Já tinha uma boa história para contar aos seus netos.

Se é que iria viver o bastante para ter filhos dada a profissão que possuía. Pegou a sua caneca de vinho e bebeu mais um gole, pensando se perguntaria mais alguma coisa sobre aquilo ou não. Colocou a mesma no balcão e olhou para o taberneiro, que parecia estar esperando para dar mais informações.

- Muito interessante... – sorriu maliciosamente – sabe de mais alguma coisa?

- Só histórias de bêbados. Quer ouvir?

- Não tenho nada melhor para fazer mesmo...

- Bem, alguns falaram de uma certa Aramasta que tinha tentado obter um livro que deveria estar na biblioteca do castelo. Outros comentaram que ela era descendente direta de uma poderosa bruxa que atormentou este reinado há muitas décadas atrás. E também houve um, acho que foi antes de eu fechar a taberna ontem... bom, ele comentou que ela e a rainha são irmãs, e que tinha sido a rainha quem a tinha impedido de matar o rei – nesse ponto, ele se aproximou de forma a falar em voz baixa – mas a história mais estranha era de um guarda do palácio que comentou que esta mulher era uma enviada das próprias profundezas do inferno.

- Quanto boato! - Ayesha estava impressionada com aquele monte de histórias desconexas. Muita coisa se espalhou em apenas um dia, isso se Aramasta só tinha aparecido por lá na véspera – na verdade... boato demais. É muita história para se espalhar em tão pouco tempo.

- Eu disse que eram histórias de bêbados. Quando a pegaram ontem a noite aqui ficou cheio de idiotas jogando conversa fora a respeito. Um querendo mostrar que sabia algo mais impressionante do que o outro.

- Sei – ela levou a caneca a boca mais uma vez.

Ela conhecia o mecanismo dos contadores de vantagem. Iguais em todos os locais que já tinha freqüentado. Bastava um evento muito interessante ocorrer na cidade e várias histórias surgiam daquilo de forma a ser impossível saber quem tinha comentado um fato e quem estava inventando lorotas. Mas havia algo em comum em todos estes eventos, e que até se encaixava na experiência que tivera em primeira mão com Aramasta.

Bateu a caneca no balcão enquanto pensava nisso. Aramasta estava presa em sua cela, e obviamente não tinha como sair. Ela tinha aberto a porta entre as duas celas, mas foi só isso. Quando estava diante do rei ouviu claramente que ela tinha fugido pela grade do seu lado, e não do dela. Aquelas grades deviam ter o mesmo sistema de tranca. Se podia abrir o seu lado também poderia abrir o outro. Porque não o fez?

E todas estas histórias comentam dela ser uma bruxa. E se tentou matar o rei, era mais do que lógico que fosse condenada a morte por isso – principalmente por decapitação – Assumindo que realmente fosse uma bruxa... e as grades de sua cela possuíssem algum feitiço para impedir que pudesse usar algo místico para abri-las...

Isso faria sentido. O feitiço – caso existisse - não impedia meios mais convencionais de abertura. Coisa que ela o fez quando acreditou que era a condenada a morte. Foi enganada direitinho! Ela cuidou para que tentasse primeiro abrir a porta de ligação entre as celas, afirmando que o corredor da sua dava no patíbulo. Será que valeria a pena se vingar dela caso cruzasse o seu caminho novamente?

- Só mais uma coisa... – ele já estava se afastando – sobre esse comentário de enviada do inferno...

- Sim? – questionou curioso ao se aproximar dela.

- O que mais a pessoa que disse isso comentou?

- Você não acredita...

- Tenho contas pessoais a tratar com esta mulher – disse apertando os olhos – quero saber se vale a pena ir a forra ou não.

Ele ficou subitamente sério, podando qualquer expressão amistosa que tinha demonstrado antes.

- Se quer um conselho – olhava diretamente em seus olhos enquanto falava – esqueça que ela existe!

Ficou de boca aberta. Não esperava por um conselho tão sincero de alguém que não devia se incomodar a mínima com os seus clientes, exceto o de que pudessem pagar suas contas.

- Por que diz isso?

- Essa mulher esteve aqui ontem a noite – confessou ele - antes de ir até o palácio. Eu a vi. Servi vinho a ela.  Ela também andou fazendo algumas perguntas, mas diferente de você ela queria saber como se pedia uma audiência com o rei. 

- Ela estava com uma roupa amarela?

- Sim – confirmou - Amarela com faixas brancas nas mangas e duas faixas negras na gola. Bem, enquanto ela esteve por aqui uns vagabundos tentaram fazer gracinhas com ela. Acho que conhece o tipo.

- Sem dúvida – respondeu. Claro que conhecia. Já tinha enfrentando tais representantes da ralé humana, normalmente se livrando deles cortando uma orelha - quando eram poucos - ou fingindo interesse para assaltá-los.

- Bem, ela elegantemente se livrou deles com um belo chute certeiro.

Nada mal! Doravante talvez ela começasse a fazer isso.

- E depois?

- Ontem a noite durante as conversas de bêbados sobre a prisão dela, uma conversa que não parecia ter nada a ver com o assunto chegou aos meus ouvidos. Acharam o que sobrou deles. Só foram reconhecidos pelas cabeças estarem razoavelmente intactas.

Ayesha estreitou os olhos novamente.

- Segundo o companheiro de bebidas deles, o resto do corpo foi recolhido com uma pá. Ele acrescentou que os coveiros que fizeram isso... bom... ele era um dos coveiros... bem, eles ficaram sentindo náuseas por horas.

- - exclamou involuntariamente. Se um coveiro sentiu náuseas, então não foi uma boa visão não. Aquilo reforçava a sua impressão de que era melhor deixar Aramasta para lá.

- Se quer minha opinião, não importa se ela veio do inferno ou não. Ela provou que é muito perigosa. E não acho que você ou qualquer pessoa comum possa ter alguma chance contra ela.

Ela também achava isso agora. Devia ser uma bruxa mesmo. Faria sentido. E o pior! Se ela tentou matar o rei e não conseguiu, iria tentar de novo. Era melhor sair da cidade antes disto. O problema era ter que esperar até a noite para tanto. Isso se tivesse a permissão para partir. Maneira muito inteligente de manter controle sobre quem entra e sai dali.

Ali estava ela, em uma vila meio nobre dentro de uma cidade cheia de ricos moradores e do bom e do melhor – até aquela taberna era mais parecida com uma adega real do que qualquer taberna que tinha visto - e era ainda praticamente uma prisioneira. Quanta ironia...

Olhou a posição do sol pela janela e achou que já devia estar no começo da tarde. Entornou o resto de seu vinho goela abaixo – deixando um filete do líquido escapar pelo canto da boca – e a colocou com cuidado no balcão. Não tinha muitas moedas ainda. Precisaria de mais. A essa hora já deviam haver mais servos do palácio retornando as suas casas para se alimentar. Provavelmente com ouro ou moedas nos bolsos.

A suave brisa entrando pelas janelas abertas trouxeram novamente o odor de maresia. Isso a lembrou de um dos muitos motivos de ter ido até ali além de molhar a garganta e cavar algo sobre Aramasta.

- Taberneiro!

Ele olhou para ela por um instante. Parecia um pouco desconfiado – coisa comum para alguém que lhe disse tudo aquilo. Terminou de limpar a caneca que tinha em mãos e se aproximou. Viu a caneca dela vazia e seu rosto ficou novamente simpático.

- Deseja mais alguma coisa? Outra caneca, talvez?

- Talvez mais tarde. Eu queria saber se há um porto por aqui.

- Um porto? – olhou surpreso para ela – há quanto tempo está na cidade?

- Um dia – respondeu com um sorriso – ou seja, não conheço nada por aqui ainda.

Ele riu daquilo. Não devia estar acreditando muito.

- Se é nova na cidade, como conseguiu entrar aqui? – fez um movimento largo com o braço direito – dentro da vila do castelo?

- Eu estava presa. Satisfeito? Só vão me deixar ir embora a noite.

As vezes era útil ser sincera. Mesmo porque alguns dos guardas que estavam ali nas mesas bebendo deviam saber a seu respeito. Ou então estavam achando que poderia diverti-los a noite. Seriam as únicas explicações para a observarem com tanto interesse.

- Não precisa ficar nervosa. Sua vida não me interessa. Há um porto aqui sim, ao norte da cidade. Saindo pelo portão interno siga em frente pela rua principal e vire a esquerda na primeira picada que encontrar. É o caminho para a igreja. Ele passa por um pequeno desfiladeiro, bom, na verdade é uma antiga passagem aberta para transportar o minério de cobre. Contorne a igreja e siga o caminho até chegar ao porto. É um pouco longo e em declive

- Obrigada – ela ficou um pouco mais pensativa se tinha perguntando tudo o que queria. Massageou as moedas no bolso e observou o homem que ainda não tinha se afastado – parece que você é a melhor fonte de informações por aqui.

- Dependendo do para que e quem me faz as perguntas... – ele sorriu – posso ser útil.

- Bem... – ela colocou duas moedas no balcão e ele claramente ficou preocupado, imaginando que ela perguntaria algo muito importante ou talvez até perigoso de ser dito – o que sabe a respeito de uma mina de ouro lacrada recentemente?

A reação dele foi inusitada. Ele levou a cabeça para trás e gargalhou com gosto, chamando a atenção de todos dentro do salão. Ayesha ficou um pouco constrangida e colocou a mão sobre as moedas.

- Guarde suas moedas – disse ele ainda divertido – não há segredo algum sobre esta mina. Foi lacrada há muito tempo e quando tentaram reabri-la, descobriram que uma fonte de água está correndo pelas frestas de seus túneis. Se tentarem cavar mais, podem causar um desmoronamento.

Tinha sido isso o que tinha ouvido da conversa entre a mulher e o ferreiro. Mas talvez o taberneiro soubesse de algo mais útil.

- Essa mina é conhecida há muito tempo?

- Ouço histórias dela desde que era criança. Faz parte das lendas daqui.

- Gostaria de saber mais destas lendas – ela sorriu enquanto tirava as moedas do balcão e em seu lugar colocava um quarto sobre este – gosto de histórias para contar por ai.

- Bem... – ele sorriu observando a moeda e a pegando logo em seguida – já que insiste.

Ele se afastou um pouco para pegar um banquinho e colocá-lo diante de Ayesha, atrás do balcão. A história seria um pouco comprida, pelo visto.

- Vejamos... – ele batia o dedo nos lábios enquanto procurava uma forma de começar – quando eu era criança, ouvi muitas histórias sobre uma mina que ficava embaixo do castelo.

- Embaixo do castelo? – Ayesha ficou surpresa. Ela estaria assim tão próxima?

- Sim. Parece que na época do rei Argus, quando o castelo foi construído, acabaram encontrando uma mina de ouro enquanto faziam as fundações. Este local pode parecer ser um platô agora, mas era um morro antes, e bem escarpado. Quando acharam a mina o rei ao invés de simplesmente explorá-la decidiu fazer o castelo por cima desta e explorá-la com tranqüilidade e cuidado depois. Quantos reinos podem dizer que foram fundeados em ouro? – ele piscou o olho para ela.

- Acho que só esse – ela sorriu de volta – com certeza não devia ter problemas para saber se estava sendo roubado pelos mineiros.

- Os soldados eram os mineiros. Meu avô disse que foi graças a esta mina que este reino chegou a dominar toda esta grande ilha onde estamos. Não era preciso grandes impostos quando se está sentado em uma mina de ouro, literalmente falando. Seja como for, depois de anos explorando esta ela acabou se esgotando como ocorre com todas as minas. Ainda segundo o meu avô eles a fecharam e nunca mais se comentou a respeito. Alias, ainda hoje é crime fazer comentários sobre a mina dentro do castelo. Felizmente não estamos dentro do castelo agora.

- Crime? – Ayesha ficou surpresa agora – porque é crime falar sobre uma mina esgotada?

- Nem imagino – murmurou ele observando o teto da taberna por alguns momentos.

- Agora que começa a parte das lendas? – instigou ela.

- Exatamente – ele sorriu divertido. Parecia mesmo gostar de contar estas histórias, principalmente sendo pago para isso – vejamos... umas destas lendas é típica de ser contada ao redor de uma fogueira estando acampado em uma floresta escura. Dizem que o rei da época em que a mina se esgotou enterrou a própria esposa dentro da mina, para poder estar livre em suas saídas noturnas sem ser incomodado, e que enquanto a mina foi explorada, o seu espectro podia ser visto no reflexo do ouro que estava sendo trabalhado na fundição.

- Reconheço que este é original.

- Eu também. Já ouvi falar de fantasmas assombrando minas, mas aparecendo no reflexo do ouro... isso é algo contado só nesta região. Outra lenda desta mina é sobre um lorde vizinho que teria ficado com inveja do rei que estava em cima de sua própria mina particular, e amaldiçoou todos os que nela trabalhavam transformando-os em zumbis. A rainha que gostava de tocar o ouro bruto também teria sido atingida, e isso explica o porque de ter sumido misteriosamente na época.

- A... – Ayesha ficou um pouco mais interessada – rainha desapareceu? Me diga.... na época deste rei, do rei Argus, correto?

- Creio que sim, mas pode ter sido a de seu filho.

- Bom, nesta época a rainha realmente desapareceu?

- Sim – ele ficou menos sorridente agora – uma rainha desta terra desapareceu misteriosamente sem nenhuma explicação. Não me lembro exatamente de qual reinado seria, mas pode descobrir lendo as crônicas do reino na biblioteca real.

- Hum... acho que não seria assim fácil.

- Há uma cópia desta na biblioteca da igreja. A mesma igreja que fica a caminho para o porto que lhe expliquei antes. Mas com exceção da rainha que desapareceu, todo o resto são apenas histórias contadas pelos mais velhos para assustar as crianças.

- Certamente conhece mais destas.

- Sim, mas estas são as mais interessantes. Outras falam de ladrões que se esconderam por um tempo na mina e que acabaram se entregando desesperadamente aos guardas. Um deles até se matou em agonia. Há ainda um comentário sobre a mina ter sido usada como cripta por magos, sobre terem feito altares no interior desta para cultuar demônios e coisas do tipo. Mas estas são mal contadas e raramente fazem sentido.

Ayesha sorriu divertida com as histórias. Como a mulher disse, havia superstição a respeito da mina, e bem provavelmente ela foi fechada devido a fonte de água próxima. Essa história sim faria sentido.

- Sabe onde ficaria a entrada desta mina?

- Claro que não. A maioria do povo aqui duvida sequer que esta mina tenha existido, ao menos que tenha existido debaixo do castelo. É mais provável que fosse apenas uma caverna com morcegos que ao saírem a noite assustavam a população medrosa. Assim eles ficavam inventando histórias, como estas para explicar o desaparecimento da rainha do rei Argus. Ou de seu sucessor - corrigiu ele logo em seguida, indicando claramente que não sabia em qual reinado ocorreu o desaparecimento - Bem, é essa a história. O que achou?

- Bem interessante. Já sei o que contar na próxima vez em que estiver acampada em uma floresta escura – terminou ela sorrindo levemente.

- Gosto de contar estas histórias. Me lembram quando era um menino. Mas... é hora de voltar a ser adulto.

Ele se levantou e colocou o banquinho novamente embaixo do balcão. Seguiu pelo corredor atrás deste e retirou duas canecas de uma tina de água, onde devia deixá-las para amolecer a sugeria antes de limpar melhor.

- Eu vou seguindo o meu caminho – disse ela se levantando e andando em direção a saída – obrigada pelas histórias. Sendo verdade ou não estes contos sobre uma mina abaixo do castelo, vocês possuem um reino bem próspero, pelo pouco que vi.

- Realmente temos. Mas como eu disse as vezes é um pouco monótono.

Sem dizer mais nada Ayesha saiu do local. E ao contrário do que esperava, nenhum guarda a seguiu. Isso foi bom pois tinha acabado de ver uma mulher andando muito distraída na direção oposta ao qual seguia. E ela precisava de pelo menos mais algumas moedas. Sorrindo, olhou para baixo e seguiu caminhando em direção a mulher. Quando estava a dois passos desta abaixou-se de forma brusca para arrumar sua sandália e ficou pulando em um pé só enquanto a mulher desviava desta. Foi nesse momento em que perdeu o equilíbrio e esbarrou na mulher de leve.

- Desculpe! – disse ela se recompondo.

- Tudo bem – disse a mulher – não foi nada.

Ayesha sorriu divertida logo depois, satisfeita por aumentar sua coleção de belas moedas coloridas. A mulher sequer percebeu o que houve e iria demorar um pouco para perceber. Pelo menos agora tinha o suficiente para pagar o ferreiro pelo serviço. Mas era melhor continuar andando para ter certeza de que ninguém a viu.

Andou por vinte ou trinta metros, até que teve a certeza de que realmente ninguém a estava seguindo agora, nem mesmo o capitão da guarda que tinha trombado antes.  

E nem seria necessário pois não havia forma de sair dali que não fosse pelo portão que era bem vigiado por um guarda. Não tinha muito o que fazer agora senão esperar. Pensou em verificar se as coisas que pediu para serem feitas estavam prontas, mas achou melhor esperar um pouco mais. Em vez disso começou a andar em direção a uma casa em que viu frutas serem vendidas. Estava ficando com fome e sabia que no momento o melhor a se comer seriam frutas, para o caso de precisar fazer um movimento rápido – como uma fuga ou uma luta – não ter problemas com o seu estomago depois. Já tivera muitas experiências desagradáveis nesse sentido em sua vida antes.

Não precisou andar muito. A casa em questão ficava bem do lado do caminho para se chegar a ilhota no centro do lago dentro do castelo. Ela aproveitou para dar uma olhada e as crianças não estavam mais lá. Melhor assim. Conseguia se dar bem com crianças, mas agora que não precisava mais de informações que julgava essenciais, não tinha interesse de testar a sua paciência com estas. Olhou para as mesas levemente rústicas em que estavam expostas as frutas e quase passou a língua nos lábios. Ver aquelas maçãs bonitas e grandes lhe abriu o apetite. Olhou em volta da casa e não viu ninguém que estivesse vendendo estas. Um pouco indecisa, pegou uma maçã e gritou chamando por quem quer que as estivesse vendendo.

Pouco tempo depois ouviu a porta da casa ser aberta e uma mulher, ou melhor, uma menina saiu desta. Tinha tranças no cabelo e usava um vestido simples da cor branca, que quase se arrastava no chão.

- Sim? – disse ela no seu jeito ainda infantil de falar.

- Queria comprar algumas maçãs – ela sorriu para a menina – é você quem as está vendendo?

- Não, mas posso vender. Quantas quer?

- Isso depende de quanto custa.

- Hum.. espera!

Ela desapareceu dentro da casa novamente, com certeza para perguntar para a mãe ou para o pai quanto custava as maçãs. De uma certa forma a lembrava quando tinha a mesma idade. Não por ter feito isso quando criança, mas pelo ar de independência que tinha. Momentos depois ela voltou a aparecer na porta da casa um pouco ofegante pois devia ter corrido.

- São cinco maçãs por um quarto – disse ela sorridente.

- Tudo bem... acho que vou levar dez.

Era um preço caro por maçãs. Tudo naquele lugar parecia ser mais caro comparando com o valor daquelas moedas em ouro. Mas ela percebeu que as pessoas pareciam receber mais por seus serviços, o que equilibrava as coisas. Pelo jeito assaltar um comerciante por ali iria render bastante.

Ela pegou as dez maçãs que a menina prontamente enrolou em um pano e entregou as duas moedas de um quarto que ainda tinha. Satisfeita, Ayesha seguiu pela trilha bonita e cuidada que separava aquelas casas da vila até ficar novamente em frente a casa de madeira que tinha examinado antes, e que sabia que estava vazia. Sentou-se na soleira da porta e com tranqüilidade ficou comendo as maçãs.

Realmente eram tão deliciosas quanto pareciam, ou ela estava com muita fome. Ficou quase uma hora comendo lentamente as maçãs, apreciando cada mordida e observando com extremo cuidado a movimentação de pessoas ao redor.

Aquele era um lugar bom para prestar atenção em tudo. Viu senhoras muito bem vestidas desfilando vindas de uma grande porta que dava no castelo e andando calmamente pelas trilhas. Também viu soldados e guardas andando a esmo, chegando a pensar que estavam fazendo alguma patrulha, mas depois mudou de idéia quando percebeu que eram sempre soldados diferentes.

Também viu soldados indo para onde ficava o ferreiro, e algumas vezes saiam carregando caixas pesadas. Sem dúvida deviam ser armas para o arsenal do castelo.

Quanto terminou a última maçã já tinha uma visão razoável do lugar e das pessoas – e suas possíveis posses – que circulavam por ali. Também percebeu que os guardas constantemente andavam pelo local, portanto deveria tomar cuidado se fosse agir.

Ela juntou os pedaços que não comeu das maçãs no mesmo pano que recebeu da menina e começou a andar em direção ao ferreiro. Já que era um local bem cuidado, não queria ser presa por jogar lixo por ali.

Assim que entrou no lugar, olhou em volta e viu uma tina ao lado da porta com pedaços de madeira, panos velhos e até sobras de rebarba de metal. Percebendo que o ferreiro estava ocupado batendo em um pedaço de metal, ela discretamente deixou o pano com as sobras das maçãs cair dentro da tina e seguiu calmamente para o balcão, gritando para ele para que ouvisse acima do som de marteladas que fazia.


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