A Caçadora escrita por Janus


Capítulo 2
Capítulo 2




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Descia a escada em caracol daquela torre enquanto ponderava sobre o que estava realmente fazendo. Ela estava em outro mundo! Talvez nada do que conhecesse se aplicasse ali. Também não sabia a língua deles, apesar disto não a incomodar muito. Lembrava-se de um comentário que ouvira uma vez, sobre que não importasse o pais em que estivesse, em seis meses estaria dominando a língua nativa.

Ao fim das escadas precisou parar de andar pra não bater nas costas do cavaleiro, ou melhor, de Jota. A mulher que tinha o mesmo nome dela estava bem atrás, provavelmente para se garantir de que não se perdesse pelo caminho.

Aguardou enquanto Jota falava alguma coisa com uma pessoa que estava ali. Olhou essa pessoa melhor e sentiu-se um pouco preocupada. Jota e Silvia pareciam humanos, essa pessoa daí não. Sua pele era arroxeada, o nariz – se é que era isso – era arrebitado demais, quase uma caricatura, os dentes eram pontiagudos, mais lembrando a boca de um tubarão e os cabelos eram grossos como barbantes. Pensou que eram trançados a principio, mas observando bem teve a certeza de que não. Os “fios” de cabelo dele eram realmente absurdamente grossos.

Deu um passo para trás quando este a encarou. Pareceu medi-la dos pés a cabeça e disse algo para Jota. Este parecia ter concordado e recomeçou a andar. Ficou um tempo observando aquela pessoa – se é que era isso – esquecendo de seguir seu condutor, mas um toque da mão de Silvia as suas costas e lembrou disso. Andou rapidamente, quase correndo até ficar atrás dele e continuou seguindo-o.

Olhou ao redor para tentar se distrair e reduzir a ansiedade que sentia. As paredes eram simplesmente pedras colocadas umas sobre as outras, mas feito de tal forma que o encaixe parecia ser perfeito! Não viu quadros ou enfeites enquanto andava por corredores, apenas uma ou outra tocha – não tinha eletricidade? Como ia tomar banho? Melhor ainda, como ia arrumar seu cabelo?

Começou a sorrir enquanto se esforçava para não rir. Estava em outro mundo, com criaturas estranhas – que podia muito bem chamar de alienígenas – e pensava em como ia arrumar o cabelo? Devia estar louca ou ainda não tinha se tocado do que estava acontecendo.

Entraram em um grande salão onde parou de andar e olhou as pessoas – melhor dizer, criaturas – que estavam ali impressionada e com medo. Todos tinham forma humanóide, ou seja, todos tinham braços, pernas e cabeça, mas... era como se algum maquiador tivesse passado férias por lá. A barba de alguns eram como penugem de filhotes de gato ou de cachorro. Alguns dos olhos eram assustadores, mostrando veias inchadas como se tivessem bebido sem parar ou não tivessem dormido. E estranhamente começou a reconhecer algumas similaridades com certas lendas. Como orelhas pontudas – que por sinal era a única coisa que realmente podia comparar ali com o que conhecia – em alguns, mas... a forma da orelha, a maneira como se movia, era como a orelha de um cachorro. Ficava um pouco mais alta que a posição que estava acostumada a ver, mas era uma orelha. Arriscou a olhar para o rosto da criatura e viu duas presas saindo de sua boca para baixo. Parecia um tipo de vampiro ou até mesmo uma criatura com dentes de sabre.

Sentiu ser empurrada por trás e recomeçou a andar em direção ao cavaleiro que a aguardava. Será que isto eram as... como ele as tinha chamado mesmo? Não se lembrava, mas era algo parecido com quirbos ou coisa parecida. Ao menos se lembrava que era algo similar que ela conhecia como demônios.

Notou que era muito olhada por eles também. Um deles se parecia com aquele que tinha aparecido para ela da primeira vez. Seus cabelos pareciam barbantes grossos e eram da cor azulada. Haviam vários adornos de metal que saiam dos ombros, bochechas e até no nariz. E imaginou de uma forma insana que seus lábios azuis escondiam dentes muito escuros.

Andou por outro corredor e chegou a uma sala um pouco menor que a anterior, mas esta era diferente das outras. Viu uma tapeçaria nas paredes a esquerda e direita, um trono no alto de escadas diante dela e diante deste trono havia três homens com robes grandes e grossos da cor branca. No trono estava sentado uma criatura que a primeira vista ela acreditou ser o diabo em pessoa.

A pele dele era avermelhada, mas uma segunda olhada revelou que era na verdade uma penugem. O que tinha pensado que eram chifres era na verdade duas protuberâncias de sua testa grande. Os olhos eram azuis, com uma íris negra no centro. Não via nenhuma parte branca como nos outros. Não parecia ser muito alto sentado, mas não duvidava que podia chegar aos dois metros de altura, mas pensando bem podia ser mera impressão. Usava uma roupa aparentemente de tecido fino e talvez caro naquele lugar da cor preta com detalhes brancos. Suas unhas eram negras e não tinham ponta, e ficou surpresa de vê-lo calçando sapatos e não com patas em vez de pés.

Mas o que a deixou pasma foi que ele estava com óculos olhando uma folha de papel – ou coisa parecida – com interesse e ao mesmo tempo de forma cansada. Depois de alguns minutos ele abaixou o papel e olhou diretamente para um daqueles de branco diante do trono.

Ele falou algo me uma língua desconhecida – ela já estava se sentindo mal com isso. não conseguia entender nada do que falavam – mas parecia irritado. A pessoa a quem ele se dirigia respondeu de forma humilde, quase como se pedisse desculpas. Pelo que entendeu, ele estava nervoso com ele ou com algo que ele fez ou deixou de fazer, pois em seguida socou o braço do trono com força fazendo um eco na sala, ao mesmo tempo em que o homem que tinha respondido tinha pulado de susto. Novamente ele falou, mas agora com clara irritação. Fez alguns gestos com a mão enquanto falava e o homem apenas maneava a cabeça assentindo. Depois disto os três diante dele fizeram uma pequena reverencia e saíram.

Ela notou que os três eram humanos como ela. Ficou observando-os saírem da sala com tanta atenção que nem percebeu que Jota a chamava com movimentos da mão. Quando voltou a olhar para a frente ela notou a desfeita e se aproximou dele. Ele a conduziu para ficar diante da criatura do trono, que agora a observava franzindo o cenho e parecia que não estava acreditando.

- Senhor Severino – ela ouviu direito? – está é a candidata que o caçador tinha selecionado.

Severino?!

Ele a perscrutou com os olhos como se estivesse olhando para uma criança que tivesse feito alguma arte, mas nada disse. Levantou-se e se aproximou dela. Ele era mesmo alto, mas os dois metros que tinha imaginado era um exagero. Devia ser um metro e oitenta no máximo. Mesmo assim era mais alto que ela.

Ele disse alguma coisa naquela língua estranha, mas uma das palavras ela reconheceu vagamente como se fosse o nome que Jota tinha lhe dito antes, o nome daquele que tinha feito contato com ela da primeira vez.

- Ela ainda não conhece ojistone, senhor.

- O que reduz ainda mais o valor da mesma – disse ele agora na sua língua. Sua voz não era assustadora com tinha imaginado, era na verdade bem suave – quantos anos tem? Já está sexualmente madura?

Olhou para ele com os olhos arregalados. O que ele queria dizer com aquela pergunta?

- Ele quer saber se você é considerada... eu.. – ele olhou para a outra mulher que os acompanhava e que tinha o mesmo nome que ela e esta disse alguma coisa – adulta! Ele quer saber se você é adulta.

- Sou sim – respondeu ainda um pouco confusa. Sexualmente madura? Onde foi que se meteu?

- Não sei porque ficou assustada agora – disse aquele que parecia ser o manda chuva ou rei do lugar – mas por aqui, uma pessoa, mesmo os humanos apenas podem exercer algum trabalho quando estão sexualmente maduros. Se podem se reproduzir, é porque a sua natureza os deixou aptos em todos os aspectos.

Fazia sentido, exceto que humanos podem ter filhos já aos doze ou treze anos e ainda crescem até os vinte anos. Mas ela era adulta sim. Em qualquer sentido.

- É que... sexualmente maduro pode significar outra coisa de onde eu venho – respondeu ela ficando levemente corada.

Não pareceu que algum dos dois tinha entendido, mas o sorriso da Silvia lhe disse que pelo menos ela entendeu.

- Muito bem minha cara, como se chama?

- Silvia – respondeu.

Ele olhou para a outra mulher e esta apenas assentiu com a cabeça. Decerto queria confirmar se o nome delas era idêntico. Só queria saber como iriam fazer para chamá-las de forma diferente.

- E você sabe o que está fazendo aqui?

- Se eu entendi bem, eu me candidatei a um emprego, ou me ofereci para um.

- Exatamente. Muito bom – ele sorriu para ela e ficou surpresa dele ter dentes normais, sem pontas com tinha imaginado – Ghathikatode a selecionou como sucessora. Sabe o que isto significa?

- Eu... – olhou para Jota com os olhos arregalados – até agora ninguém disse o que eu iria fazer aqui. Sou sucessora dele?

Ele olhou para o cavaleiro que se encolheu de vergonha, depois olhou para a mulher que fez o mesmo.

- Sim, você é a sucessora dele. Não sei qual o tipo de oferta você fez, mas ele a avaliou e considerou que podia ser sua substituta. Por isso você está aqui agora. No entanto... – olhou para ela estreitando os olhos – bem, você não é a primeira que vem aqui para substituí-lo. Seu antecessor foi... creio que a palavra em sua língua que melhor define o que ocorreu é que ele foi um fracasso na função. Tinha o potencial, mas não a personalidade certa. Por isso há um teste de aptidão que você deve fazer antes de a aceitarmos.

- Aptidão? – lembrou-se do que tinham lhe dito antes, que ele era um caçador. Se era sucessora dele então... - Vou... caçar alguma coisa?

Ele a olhou um pouco intrigado.

- O termo caçador é mais devido a função executada – interveio Jota – as ações são a de um caçador que rastreia trilhas e localiza objetivos, mas também pode ser um trabalho de batedor. Chamamos de caçador simplesmente porque geralmente você tem um companheiro animal para isso.

Companheiro animal. Lembrava-se agora da coruja que tinha visto com aquela criatura da primeira vez.

- Uma coruja  branca?

- Vejo que conheceu Cloni – ele sorriu – sim, pelo menos por algum tempo. É cedo para entrarmos em detalhes. Meu senhor – ele se dirigiu ao... como ele tinha chamado-o antes? Severino! – qual prova de aptidão tem em mente?

- A necessária para alguém daquele mundo – ele respondeu de forma fria agora – leve-a para o subsolo e lhe explique o necessário. Silvia – dirigiu-se a ela – não é um teste propriamente, mas uma avaliação de como irá reagir ao que deve fazer. Faça o que realmente sente vontade de fazer, não o que precisa.

Após dizer isso ele voltou para o trono e se sentou, pegando alguns papeis de uma mesa do lado e falando algo na língua que não conhecia.

- Vamos Silvia – disse o cavaleiro tocando-a no cotovelo induzindo-a a andar – vamos fazer isso agora. E também servirá para você ver como vai ser sua vida aqui. Pelo menos a parte mais difícil dela.

- Difícil? – estava assustada novamente. Então conviver com criaturas que antes ela acreditava serem seres demoníacos não era a parte difícil?

Conforme o seguia foi notando que o local em que estava era mesmo grande, muito provavelmente um castelo. Ainda pensava sobre como faria algumas de suas necessidades básicas ali. Sem secador de cabelo, sem xampu, talvez sem sabonete... ugh! Sem sabonete? Talvez não tenha sido assim uma boa idéia aceitar sem saber onde estava se metendo, se bem que tinha ido lá justamente para conhecer a sua “vida nova”.

E tinha de concordar, qualquer que fosse, ia ser uma vida totalmente diferente.

Entraram em uma sala após descer vários degraus e nesta havia um homem velho também usando um robe – era um tanto monótono isso, todos os homens usavam robe por ali, apenas o cavaleiro usava calças. Mas era muito interessante ver que aparentemente alguns deles eram vaidosos, pois tinha ficado encantada com o desenho e detalhes de muitas daquelas roupas. Outra coisa que reparou também era que humanos não era propriamente minoria naquele lugar, mas estavam longe de ser a maioria dos seres. Seriam todos naturais dali ou como ela tinham vindo de outros mundos? Era uma pergunta para se fazer quando tivesse a oportunidade.

O velho conversou com Jota de forma animada e após este dizer alguma coisa ele a observou. Só que ela reconheceu aquele tipo de olhar. Ele olhava o seu corpo, não propriamente o seu físico. Bom, do que estava reclamando? Não podia realmente esperar que tudo ali fosse totalmente diferente do que conhecia. Aparentemente velhos tarados eram comuns em qualquer parte do universo.

- Então você pode vir a ser a nossa nova companheira – ele sorriu para ela. Sua voz falada em sua língua era um pouco elevada e parecia que ele cortava as palavras, como se tivesse um sotaque americano.

- Eu... acredito que sim. Talvez... – ela estava hesitando, já não achava assim tão interessante. Ou talvez estivesse apenas pensando no que teria de deixar para trás.

- Calma minha cara, deve estar assustada por conhecer várias coisas novas e perceber que quase tudo o que acreditava tinha sido uma grande confusão feita pelo seu mundo supersticioso.  Como se chama?

- Silvia – respondeu, já aguardando que este olhasse para a outra mulher. Mas para a sua surpresa não o fez.

- Meu nome é Leonardo – disse ele – sou do seu mundo também, pelo menos era há muito tempo atrás. E sou um mago.

- Mago? – agora estava ficando um pouco infantil aquilo. Um cavaleiro até que era fácil aceitar em um mundo medieval, mas um mago? Já estava parecendo que tinha entrado em um jogo de computador. Só faltava a mulher ser alguém que curava pessoas.

- Sim – ele abriu a mão e uma luz brilhou acima desta – porque duvida?

- Porque – ficou olhando aquilo impressionada – assim como fantasmas, eu acreditava que eram apenas histórias para crianças...

Ele riu levemente.

- Esses magos são sim historias para crianças. Elementos..  – ele bufou – um erro aceitável dado o conhecimento limitado das pessoas. Não minha cara, minha habilidade é mais mundana, não crio coisas do nada, apenas manipulo o que já existe. Deixe-me tentar explicar. Já foi em uma praia?

- Sim...

- Então viu a areia e em como ela parece ser feita de pedaços cada vez menores, e talvez tenha imaginado que no fim haveria um minúsculo pedacinho que seria indivisível...

- Átomos? – cortou ela sorrindo – não são indivisíveis, e nem sólidos.

Ele ficou surpreso.

- Você.. sabe disso?

- Ensinam na escola – respondeu ela divertida por vê-lo surpreso.

- E fica impressionada por eu dizer que sou um mago? Se aprendem na escola então já devem estar colonizando outras estrelas!

- Hã.. nem tanto assim – ela ficou atônita com isso – o máximo que chegamos foi na Lua...

- Que desperdício – murmurou ele – que desperdício de imaginação...

O cavaleiro disse algo para ele e o mago assentiu.

- Desculpe criança, nossa conversa terá de parar por aqui. Ao menos por enquanto. Jota me disse que você deve ser testada. Está preparada?

- Se eu soubesse que teste iria ser... – começou ela, tentando ter alguma informação sobre o que seria.

- Não posso adiantar isso.  Antes de mais nada, há algo que você precisa saber. Eu, Jota e a mulher que compartilha o seu nome não nascemos aqui, mas sim no seu mundo. Por isso conhecemos algumas das línguas de lá. Ocasionalmente vamos ali apenas para verificar como tem sido o seu progresso, e também aprendemos mais línguas. A sua por sinal é bem especifica, com misturas de muitas outras.

- Sou brasileira – disse ela.

- Sim, reparamos nisto – ele sorriu – de qualquer forma já faz mais de cem anos que não volto lá. Tenho sido muito impaciente aguardando o progresso ali.

- Cem anos?!

- Oh, nós vivemos muito aqui. Claro que não somos mais exatamente quem éramos. Mas creio que é melhor ir direto ao assunto – ele ficou mais sério – este é um mundo muito mais perigoso que o seu. As criaturas que vivem aqui são muito mais fortes e perigosas. Alguém como você que viveu em uma cidade toda a vida e nunca precisou caçar para sobreviver não deve saber o que seria isso.

Ela ficou em silencio. Onde tinha ido parar afinal de contas?

- Em resumo, seu corpo não tem a resistência necessária para sobreviver aqui, mas não é algo que não possa ser contornado. Ocorreu conosco, ocorreu com outros que vieram de lá. E os que não vieram nasceram aqui, aptos para sobreviver.

- O que quer dizer? Não vou mais ser humana?

- Dependo do que define como ser humana. De qualquer forma, caso se junte a nós iremos investir em você, deixá-la capacitada a sobreviver aqui e desempenhar suas funções. E antes que pergunte algo, o emprego não é vitalício, ou seja, depois do contrato inicial, pode fazer o que bem entender.

- E de quanto tempo é esse contrato inicial?

Jota o interrompeu e o mago anuiu.

- Já disse demais minha cara. Primeiro vamos ao seu teste. Felizmente já temos um perfeito para você que nos dará muitas respostas. Acompanhe-me, por favor.

Novamente recomeçou a andar agora com o mago entre eles. Desceram mais lances de escada em forma helicoidal até chegarem ao subsolo. Era bem fundo pelo que tinha reparado.

Ali as paredes não eram tão limpas como as salas acima. Pareciam na verdade úmidas e podia ver até mesmo uma ou outra mancha verde nestas. Sentiu que estava em uma masmorra ou calabouço. Sentimento que ficou mais evidente quando viraram em uma entrada e ela viu grossas barras em forma de uma porta. O cavaleiro bateu nas grades e uma pessoa usando uma pesada armadura – e bem mais alto que o cavaleiro – apareceu e abriu esta.

Após todos entrarem, a porta foi fechada novamente e ela pôde reparar melhor no outro cavaleiro. Ele tinha presas na boca como a outra pessoa que tinha visto antes. Ficou imaginando se este seria um troll ou ogro das fabulas seu mundo. Mas realmente não conseguia associá-lo a nenhuma imagem de contos ou lendas.

O mago conversou longamente com o guarda e este apenas balançou a cabeça confirmando algo. Ele entrou por outra porta dentro da sala em que estavam e desapareceu ali. Silva cruzou os braços pois estava sentindo um pouco de frio naquele lugar.

Foram dez minutos de espera em que ninguém tinha dito nada. Após isso o mesmo guarda voltou e acenou com a mão. Jota tocou novamente em seu cotovelo indicando para acompanhá-los.

Entraram por um longo corredor onde de cada lado haviam portas com barras. Ela devia estar na prisão do castelo, mas o que fazia ali? A que tipo de prova seria submetida? Teria que lutar contra alguém? Ficou com medo disto. Devia ter feito aquelas aulas de defesa pessoal quando teve a oportunidade.

Depois de andar por um tempo muito grande – talvez tenha andado mais de cem metros naquele corredor. Qual o tamanho do subsolo? E porque haviam tantas celas vazias ali? – entraram a esquerda em outra grande sala. Diferente das outras, esta não possuía uma porta na entrada. Olhou ao redor e viu palha nos cantos das paredes. Também havia um odor meio ruim ali, que lhe causava estranheza.

- Esta é a sala de execução – disse o mago – é onde fará o seu teste.

- Execução?! – como assim execução? O que pretendiam?

- Calma, não é você quem vai ser executada, caso tenha pensado nisto. Vê o arco ali?

Olhou para onde ele indicava e viu um arco negro que parecia ser feito de ferro ou outra coisa similar. Não era o tipo de arco que esperava encontrar naquele local, mais se parecia um pouco com um arco utilizado pelos atiradores de flecha olímpicos. Haviam também algumas flechas do lado deste.

- Sim – murmurou.

- Foi a arma de seu predecessor imediato – explicou ele – o teste é simples. Temos uma pessoa condenada a morte. Você deve ser a executora dele.

Abriu os olhos imensamente ao ouvir aquilo. Ela seria a executora?

- Mas nem sei usar essa coisa...

- É a curta distancia, não há como errar, e mesmo que erre, você tem flechas suficientes para tentar de novo.

Estava sem palavras diante daquilo. Este era o teste?

Ouviu um som de metal que conhecia bem pois o ouvira muito quando levava o carro ao mecânico. Eram correntes. Ao se virar para a porta viu dois guardas que entravam segurando correntes que estavam presas aos pulsos de uma criança! Uma menina que tentava inutilmente escapar daqueles braços fortes. Silvia acreditava que nem ela teria forças para isso, quanto mais uma criança.

Seria ela quem devia ser morta? Uma criança? Uma criança humana?

- Esta é a condenada – disse o mago sem emoções confirmando seus pensamentos – você só precisa pegar o arco, usar as flechas e atingi-la até que morra. Simples. Se não puder fazer isso, irá voltar para o seu mundo. Lamento, mas temos que fazer esta avaliação. Nós somos um grupo de elite a serviço do senhor Severino, executamos missões e tarefas especiais. Não sei se há o equivalente a isso no seu mundo, mas é o que somos. Para você se tornar nossa companheira deve ser capaz de fazer isso.

Ele disse algo para os guardas e estes puxaram a criança para perto da parede em frente a ela. A criança olhava para todos de forma assustada, talvez não entendendo o que ocorria ou talvez entendendo muito bem. Então foi a vez da mulher que tinha permanecido em silencio falar algo. Os guardas se afastaram um do outro deixando a criança entre eles que tentou ir para a frente mais foi detida pelas correntes. Ela chorava em desespero conforme os guardas esticavam seus grilhões de forma a forçar que ela ficasse com os braços abertos e totalmente indefesa para a execução.

Uma execução a qual ela deveria ser a executora...

- Isso não é um teste de moral – comentou de forma pausada o cavaleiro – mas de aptidão. Se não puder matá-la, você simplesmente volta para seu mundo e para a sua vida, e eu irei executar essa prisioneira. Mas você não partirá antes dela estar morta.

Virou-se lentamente para ele, os olhos levemente arregalados.

- Ela está condenada a morte e irá morrer, a você cabe apenas decidir se será por suas mãos ou pelas minhas. Qualquer que seja a sua escolha, você ficará aqui até que o corpo sem vida dela esteja no chão, para que saiba que não foi um teste simulado.

- Você precisará de alguns meses de treinamento e preparação para poder começar a nos acompanhar nas missões – interveio o mago - e não vamos mentir – ele fez uma pausa – em nossas missões quase sempre alguém morre. É melhor sabermos agora se você pode fazer isso do que descobrir depois.

- Leve o tempo que precisar para decidir. Mas não iremos tirar a decisão de você. Ou você dispara a flecha que irá matar a prisioneira, ou deve dizer que não pode fazê-lo.

Outro mundo, outros conceitos, outra realidade. Por algum motivo aquela criança foi condenada a morte. Talvez tivesse roubado comida para sobreviver, ou alguma jóia de alguém importante... ela não sabia, e eles disseram que ela não iria saber até depois da execução.

Do ponto de vista prático, nada podia fazer pela criança. Ela morreria de qualquer forma. Muito gentil da parte deles de deixarem isso claro. Sua verdadeira decisão seria a de embarcar de vez na nova vida que se abria a sua frente ou voltar a sua vida de sempre... trabalhar, fazer compras, assistir novelas, se desiludir com os homens, no futuro talvez casar, ter filhos, ser uma dona de casa gorda...

Ou deixar tudo isso em definitivo para trás e iniciar uma nova vida, coisa que muitos sentem vontade de fazer mas simplesmente não podem. Ela tinha uma possibilidade – que por sinal fora por sua própria escolha – de ter uma nova vida totalmente diferente de tudo o que tinha conhecido antes. E isso vinha com um preço bem alto.

Provavelmente nunca mais veria seus antigos amigos de seu mundo. Nem se despedir poderia. E teria que fazer algo que durante seu crescimento aprendeu que era errado.

Bom... errado naquela realidade, naquele mundo.

Ela não estava em seu mundo agora...

Ergueu o braço e pegou o arco sobre o pedestal. Pegou uma das flechas de ferro e lentamente começou a retesar a corda.

Os olhos da criança estavam cheios de lágrimas.

Controlava sua respiração e prestava atenção nos seus batimentos cardíacos. Seu coração batia muito forte e rápido, e não era para menos. Ela realmente estava apontando uma flecha para o peito de uma menina. Iria assassinar uma criança!

A menina abriu a boca mas não conseguiu dizer nada. Seu rosto era puro terror.

Uma execução, não um assassinato. Recebera ordens para matar a criança, isso é uma execução. Não que faça diferença como chamar isso. Quantas vezes pensou nos criminosos de sua antiga favela que mereciam morrer? Por mais apavorada que estivesse, por mais inocente que pudesse parecer, aquela criança era uma criminosa. Tinha feito algo que culminou na sua condenação a morte. Justa ou não, correta ou errada, não estava nas suas mãos deci7dir pela vida ou morte dela, mas se iria ser morta por ela ou por outro.

- Ela foi julgada? – murmurou para o cavaleiro que a tudo observava em silencio.

- Isso faz alguma diferença?

- Vocês disseram que vou ser uma caçadora, não uma assassina.

- E acredita que nunca irá ter de matar alguém que nunca viu antes? – ele riu-se – alguém cujo passado você nada sabe e que nunca irá saber? Não vou responder a sua pergunta. Tudo o que você sabe é que deve matar a prisioneira.

Apertou levemente os lábios. Não iriam dar nenhuma informação que pudesse ser útil para a sua decisão.

Uma vida totalmente nova em um mundo novo ou o retorno para a sua antiga vida. Uma vida que estava achando ser monótona agora.

Uma nova vida onde ela seria uma caçadora, onde mataria pessoas – ou como quer que aquelas criaturas podiam ser chamadas, já que humanos por ali pareciam ser minoria – onde faria parte de um grupo de elite destinado a missões elaboradas...

Ou ser uma professora de ginástica que não gostava muito de cozinhar e que passava pelo menos uma hora presa no transito entre o trabalho e sua casa. Onde a emoção maior era ir dançar, alguns programas de fim de semana, e no domingo ter que por a casa em ordem.

Claro, não teria férias por ali, nada de praia ou as diversões que conhecia. Nada de novelas!

A vida inteira ela procurou por mais do que podia obter onde vivia. Lutou para ir a escola, lutou para sair da favela, lutou para ter um emprego digno, lutou para ser reconhecida. E sabia que o futuro que poderia ter ali era o que o dinheiro poderia comprar para ela.

Mas agora, neste novo lugar apesar do dinheiro ainda ter o seu valor, não seria para isso que ela iria lutar. Não seria uma comerciante temerosa de fiscais corruptos. A oferta era para ser uma caçadora! Alguém com habilidades além do que podia imaginar.

Mais do que isso... não seria mais propriamente humana. Seu corpo não tem a resistência para sobreviver aqui, mas não é algo que não possa ser contornado. Eles iriam investir nela. Treinamento e desenvolvimento de seu corpo.

Tudo pela vida de uma criança...

Controlava sua respiração enquanto a criança novamente gritava de forma esganiçada. Um sacrifício...

Fechou os olhos e percebeu que não era isso. Não seria “sacrificar” aquela criança que iria mudar sua vida. Como já tinham dito, ela morreria de qualquer forma. Era só um teste de aptidão. Para saber se ela poderia fazê-lo.

Iria matar mais depois. Em combates, em tocaias e como seria uma caçadora, em caçadas. Essa seria a primeira.

Lógico, se ela fosse em frente.

Percebeu que o único motivo de ainda não ter disparado era devido a tentar achar algum motivo para aquilo. Porque uma criança? E porque uma humana? Não podia ser alguém de cara feia e claramente hostil?

Seria fácil demais se fosse...

A verdade era simples. Ou ela matava a criança e provava a todos – incluindo a si própria – que podia viver àquela vida, ou não a matava e assistia ela ser morta, e depois voltaria para casa, sem nenhuma segunda chance.

Na verdade, o teste era se fazia diferença ela poder matar a criança ou não.

Matar ou ver ela ser morta. Tudo se resumia a isso. Se ela quisesse mesmo se tornar uma caçadora ali, teria que mostrar que podia matar quando necessário. Se não fosse capaz disto, ela mesma teria de reconhecer que não poderia seguir em frente.

Mas mesmo depois de fazer aquilo, talvez não pudesse.

Seu coração estava calmo agora. Deixou sua face relaxar e surpreendendo a todos, soltou a mão da corda, o que fez a flecha ser lançada contra o peito da criança.

Os olhos da menina se arregalaram, seu grito emudeceu de repente, apesar de sua boca ainda estar aberta. A flecha atravessou o peito dela, atingindo a parede de pedra atrás de forma que a criança ficou pendurada ali. Os guardas soltaram as correntes logo em seguida.

Mas ela não morreu rápido como era esperado. Mais tarde ela aprenderia que se o sangue não fluísse em grandes jatos para fora do corpo, a vitima viveria um pouco mais, ou melhor, ficaria consciente um pouco mais. Em alguns casos, por vários minutos.

Viu ela mover os braços até o cabo da flecha, mas não conseguiu fechar as mãos ao redor desta. Seu corpo tremeu como se estivesse com frio, até que lentamente seus braços e pernas penderam para baixo, balançando um pouco e por fim parando totalmente.

Quase nenhum sangue saiu do ferimento devido a este estar vedado pelo corpo da flecha. Apenas uma pequena mancha se espalhava pelos trapos que eram a roupa que o agora cadáver infantil utilizava.

- Como se sente? – questionou a mulher que tinha o mesmo nome que o seu. Pelo que percebia era a primeira vez que falava algo em sua língua – arrependida?

A voz dela era suave, muito suave. Falava de forma casual e sem entonação emotiva. Sentiu-se um pouco estranha por ninguém ali ter uma reação mais propriamente de surpresa ou piedade pela criança morta.

- Nunca tinha matado alguém antes.

- Mas o fez sem pensar muito – tornou o cavaleiro – talvez quisesse uma razão aceitável para que esta criança merecesse morrer.

- E ela merecia?

- Ela foi condenada a morte. Empurrou uma outra criança do alto de uma casa. Ela morreu na queda.

Ficou em silencio. Aquela menina tinha matado outra criança?

- Ela não era inocente como você imagina. Por muito tempo ficou impune de delitos menores. Era uma pequena ladra que passou a roubar não só para comer, mas por outros motivos. Já estava usando facas e ameaçando pessoas idosas na vila de onde veio.

Muito parecido com os delinqüentes da favela onde nasceu. Crianças de dez anos ou menos entrando em contato com armas de verdade, com um mundo de crimes. Só se sai deste mundo com muito sofrimento. Crianças se adaptam fácil ao ambiente em que crescem. Ela teve sorte de ter um pai inspirador e sincero.

- Não existem... casas de correção por aqui?

- Não imagino sobre o que está falando. Quando se esta sexualmente maduro, a lei é aplicada. Essa menina não acreditava que não ficaria impune desta vez.

- Não me sinto melhor com isso.

- E não é para ficar. Não queremos uma amante de mortes. Precisamos de uma caçadora. Uma que faça o que for necessário.

- E agora, querida – novamente a mulher falava com voz macia – uma vez que você matou uma criança indefesa, possui meios de responder a nossa pergunta. Esta disposta a seguir com sua vida como caçadora?

Olhou para o chão, observando as sombras das pernas da criança neste. Tirara a vida de alguém. Não se sentia bem com isso, mas não estava propriamente horrorizada. Talvez pelo fato de ter crescido em uma favela e saber o que crianças de treze anos são capazes de fazer tenha retirado boa parte da culpa que pesava em sua alma. Agora sabia que a menina tinha o medo para agir como uma criança, mas tinha feito atos criminosos de adultos. Ela sabia como era isso.

- Estou – disse ela erguendo a cabeça.

- Ótimo – a mulher sorriu - então começamos de verdade agora. Primeiro, seu corpo. Você é humana e é muito frágil para muitos lugares que teremos que ir.

- Reparei nisso. Vou ter que usar uma armadura? - e olhou para o cavaleiro.

- Claro que não. Isso não ajuda uma caçadora que precisa ser ágil e furtiva – continuou ela – felizmente, basta alguns meses comendo os alimentos corretos que seu corpo ficará mais resistente e forte.

- Basta só comer a comida certa?

O mago riu-se um pouco.

- Qual é a graça?

- É que temos pouco tempo. O ultimo humano que vi se adaptando a nossos alimentos teve três anos para isso. Você tem alguns meses. Vai ter muita indigestão no começo.

- Indigestão?

- Vai doer – disse a mulher – após cada refeição você vai sentir fortes dores no começo. Vão melhorar em alguns dias. Em alguns meses poderá comer coisas que a matariam se comesse agora. Em um ano será quase como seu antecessor. Poderá cair de uma arvore e ficar apenas com alguns arranhões. Em dez anos todo o seu corpo será como uma nativa deste mundo. Mas vai ter a sua forma humana.

- Depois das cólicas que já tive... não acho que pode ser pior.

- Então vamos que eu estou faminta.


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