Rolê escrita por Sali


Capítulo 1
rolê


Notas iniciais do capítulo

Voltei a postar aqui depois de alguns anos. Vamos ver se consigo algum feedback ♥



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/787229/chapter/1

Nunca me incomodei com a ideia de ir desacompanhada a uma festa, desde que eu conhecesse os convidados. A não ser que fosse, bem, uma festa que envolvesse as pessoas da minha família. O problema, em si, não era estar sozinha. Era, entre vários outros, não ter ninguém pra compartilhar as piadas internas e escapar, pelo menos um pouco, de algumas situações desagradáveis.

Pelo menos era um casamento na praia, havia ótima comida e eu poderia beber à vontade, enquanto observava toda a festa no lugar privilegiado que eu havia garantido em uma das mesas por ali. Privilegiado o suficiente, inclusive, para ver a aproximação da tia Martha, a segunda das três irmãs do meu pai. Ela era legal, com seu jeito carinhoso e seus presentes caros; sua falta de tato e delicadeza, porém, nem tanto.

— Lua, querida! Quanto tempo!

Coloquei meu copo de mojito na mesa e abri um sorriso ao vê-la. Cumprimentei-a com carinho, e bastou que eu perguntasse como estava a vida para que ela começasse um pequeno (porém longo) monólogo sobre o que ela vinha fazendo nos últimos tempos: as viagens, os contratempos e, inclusive, notícias de pessoas que eu apenas não conhecia.

Isso, porém, não era um incômodo para mim. Era até divertido ouvi-la falar. O problema, na verdade, era…

— Mas e você, Lu? Eu vi no Facebook que você terminou com aquele rapaz, Felipe, né? Mas que coisa, eu gostava tanto dele!

Por um breve momento, eu apenas travei. Felizmente, o nome de Felipe já não me causava o mal estar de alguns meses atrás, quando nosso relacionamento, de fato, chegou ao fim. Mas, ainda sim, as opiniões… 

— Pois é, já faz inclusive um tempinho, tia — decidi responder, talvez tentando pôr um fim no assunto.

Não deu certo.

— É uma pena mesmo. Esse é o problema com os jovens de hoje em dia. Mesmo quando arrumam uma pessoa que trata eles bem…

Meu único impulso foi me levantar de uma vez, antes que aquela conversa nos levasse a caminhos que acabassem com o clima da festa ou, pior, meu humor. Ela me olhou, surpresa; abri um sorrisinho para disfarçar.

— É… olha lá! Acho que vi um conhecido. Vou lá, e aí depois a gente se fala, ok? — remendei a única desculpa que me veio à mente no momento e dei um curto aceno de cabeça, feliz pela mobilidade que a festa na praia, com o dress code que envolvia chinelos, me proporcionou para sair dali.

Enveredei-me pelo deck de madeira até o salão fechado por portas de vidro, onde a música era mais alta e algumas pessoas arriscavam uns passos — era provável que, à medida que a bebida fosse subindo, o salão ficaria mais cheio —, e onde uma das minhas primas menores, Lydia, estava. Logo que me viu, ela me chamou para dançar, e considerei aquilo fuga suficiente.

— Ai, Lua… cansei — Lydia suspirou então, após três ou quatro músicas, e jogou-se numa das poltronas elegantes do local, na qual não alcançava o chão, com suas pernas de 8 anos.

Naquele casamento em plena primavera tropical, eu não estava muito diferente dela, e só queria uma bebida gelada. Só nesse momento, então, é que percebi que meu mojito havia ficado, esquecido e derretendo, sobre a mesa, logo ao lado das opiniões cheias de razão da minha tia. 

Suspirei, sobretudo ao ver o bar de drinks lotado. 

Sem meu lugar estratégico e um copo de álcool, eu já começava a duvidar que ficaria até o final da festa. Encostei-me a um dos pilares próximos ao bar e me detive, percorrendo a festa com o olhar. Os primos de quem eu gostava mais moravam longe demais para comparecer. Assim, entre os convidados, havia apenas familiares desconhecidos e alguns que, mesmo com um maior laço sanguíneo, me olhavam torto — talvez por causa das tattoos aparentes, o black volumoso, meus piercings… sem falar da bissexualidade, que, convenientemente, mesmo os parentes mais próximos faziam questão de esquecer.

Não era à toa que ainda insistiam no Felipe.

— Ah, Lua! Ótimo te achar aqui…

Dessa vez, não consegui prever, e foi uma surpresa ouvir a voz de uma das minhas primas mais velhas tão perto. Abri um sorriso polido e me voltei para ela, com um pé atrás: tradicional, meio conservadora e um tanto chata, ela e eu não tínhamos tanta proximidade assim, mas ela gostava de forçar. 

— Ei, Liza! Tudo bem por aí?

Correspondi ao abraço formal que ela insistiu em me dar — pois, aparentemente, apenas um cumprimento verbal não parecia o suficiente —, enquanto ela garantia como seu filho pequeno e o maridão estavam ótimos, e então apenas me mantive diante dela, aguardando o assunto importante que ela parecia querer tratar comigo.

— Na verdade eu estava indo ali, pra pegar um drink pra mim, mas foi ótimo te encontrar por aqui, porque eu tava conversando com um amigo meu agora mesmo… — e ela se interrompeu para alcançar, na bandeja de um dos garçons, uma taça de espumante. — Davi, o nome dele, você conhece?

Balancei a cabeça, em negativa.

— Ah, uma pena, ele é ótimo. Você ia gostar dele, inclusive! Vocês têm os mesmos papos, gostam dessas esquisitices, têm essas tatuagens em todo lugar… 

Ergui as sobrancelhas, simulando interesse. Liza não apenas estava tentando forçar uma apresentação, considerando-se o próprio cupido, mas também parecia nem se esforçar para disfarçar o desprezo pelas minhas características. 

— Hmm… Que legal! — emiti, então, torcendo para que, se eu fosse legal o suficiente, ela se desse por satisfeita.

— Não é? Eu pensei a mesma coisa! — ela riu, e com a taça já pela metade em sua mão, eu começava a pensar que ela não estava muito sóbria. — E, inclusive, que sorte! Olha só quem eu estou vendo ali… 

Não deu pra fugir. Estoicismo é uma das palavras que eu usaria pra descrever toda a paciência que eu precisei ter para não correr dali quando Liza começou a gritar o nome do rapaz e, em questão de segundos, ele estava próximo da gente.

Aí, sim, eu tive que segurar a risada.

O rapaz perto de nós poderia até realmente gostar das minhas esquisitices e ter várias tatuagens — inclusive, muito bonitas, algumas. Eu só duvidava muito de que ele pudesse ser qualquer coisa próximo de heterossexual.

Fomos apresentados. E Liza, parecendo muito satisfeita com seu trabalho, se despediu com um aceno e a frase "vou deixar vocês dois aí, trocando figurinhas" — que, para minha surpresa, me encheu de alívio.

— Sem querer ofender, mas… uau — Davi soltou, com um sorriso que pontuava uma covinha apenas do lado esquerdo, assim que Liza estava distante.

Dei uma risada, que soou como um pedido de desculpas.

— A gente não escolhe a família, né?

Consegui arrancar um riso dele. A verdade é que Davi era interessante; o cabelo de cachos pequenos, raspado dos lados, a pele apenas um pouquinho mais clara que a minha, aquele humor meio afiado. Fiquei dividida entre a curiosidade — como ele e Liza se conheciam? — e, bom, não sou de ferro: um certo interesse.

Mas era claramente unilateral.

— Mas então, Lua… foi bom te conhecer! — ele abriu outro sorriso, gentil. — A gente se esbarra por aí —  completou, com um meneio de cabeça, e só naquele momento eu percebi que ele tinha uma câmera fotográfica na mão e uma bolsa preta a tiracolo, além de estar todo vestido dessa cor; ele era fotógrafo, afinal.

Só de não ser um convidado da minha família, já ganhava minha simpatia. Dei uma risadinha para dentro e voltei a me encostar ali, perto do bar.

— Uau… noite difícil, hein? Margarita?

A voz desconhecida inicialmente me surpreendeu, mas o pequeno susto foi amenizado em instantes; atrás do balcão, uma das bartenders tinha um sorriso lateral, de leve, nos lábios, e uma taça gelada e tentadora em uma das mãos. 

— Pra mim?

A moça riu pelo nariz e eu senti meu rosto esquentar no automático. Que pergunta idiota. Me indaguei, por um momento, por que eu me tornava uma ameba diante de mulheres bonitas.

— Eu vi sua… tia? Prima? sei lá, enfim, ali com você, batendo um papo meio chato. Minha família também é bem assim às vezes… tequila sempre me ajuda a lidar.

Dei uma risadinha e aceitei a taça, erguendo-a em um breve cumprimento antes de beber um gole.

— Caralho, tá muito bom!

A bartender abriu outro sorriso lateral e voltou a organizar as garrafas e utensílios no balcão. Distraída, encostei a taça nos lábios, observando-a: o uniforme padronizado, com colete preto e uma gravatinha-borboleta bordô, os cabelos escuros, naquele corte da moda, raspado nas laterais e com um topete bem-feito. Ela tinha tattoos nos dedos, piercing no septo e um labret vertical no lábio inferior.

E eu sabia que o calor que descia por mim não era por causa da tequila.

— E seu nome é?

Ela ergueu os olhos para mim e abriu outro sorriso de lado. Sua expressão parecia dizer “finalmente”, mas de um jeito divertido.

— Milla — declarou, as duas sílabas saindo apressadas, porque a fila do bar já havia crescido de novo.

Voltei a me encostar no pilar de madeira, bebendo com calma a margarita, tirando com a ponta da língua o sal que grudava no lábio inferior.

Talvez a festa não estivesse assim tão desinteressante.

— Lua!

Era Lydia que abria espaço entre os adultos, sorrindo, empolgada, e já sem seu laço prendendo os cabelos.

— Vamos dançar de novo? Lá dentro tem coxinha… 

Dei uma risada com a tentadora oferta de suborno e segurei a mão dela, me deixando ser puxada até o salão.

Outra enorme vantagem de festas na praia é o horário. Para aproveitar o sol e momentos específicos da luz, os noivos, na maioria das vezes, decidem por uma festa diurna. Assim, como tinha começado antes do pôr do sol, a festa foi encerrada — e o local que a recebia esvaziou — antes das onze horas da noite.

De volta para a minha pousada, no banco de trás do SUV do meu tio, eu sentia minha cabeça flutuando um pouco, devido ao mojito e a margarita e taças de espumante. Mas, ainda bastante consciente dos meus arredores e acontecimentos, eu só lamentava não ter falado mais algumas coisas — além de alguns sorrisos — nas outras vezes em que voltei ao bar.

— E aí, Lua? Curtiu a festa? 

Era Liza, que inclinava-se na minha direção em um equilíbrio bêbado. Seu hálito era claramente alcoólico, e o marido estava ao lado dela, preocupado apenas com a tela do celular.

— Uhum. Foi boa.

O álcool prejudicava ainda mais sua já afetada capacidade de compreensão do outro. Ela deu uma risadinha da minha resposta.

— Uma pena que você e Davi não deram certo lá… — soltou um suspiro — quando eu conheci ele, achei que era tudo a ver com você.

Ergui as sobrancelhas para não revirar os olhos diante das frases que ela já havia falado antes. Eu apenas acenava com a cabeça; já havia experienciado Liza bêbada outras vezes, e sabia que seu entendimento dos limites alheios também ficava abalado. Por isso, uma pequena parte de mim tinha receio do que ela poderia dizer em seguida.

— Mas também não dá pra gente fazer o trabalho todo… eu vi você se enchendo de comida com a Lydia. E você não tá podendo, né?

A ponta dos seus dedos estava fazendo pressão no meu braço quando ela fez a última indagação, suas unhas entrando levemente na minha pele enquanto ela procurava apontar algo relacionado ao meu peso.

Ainda em silêncio, tentei me afastar, apesar dos limites de espaço do carro.

— E você já não é muito do tipo que atrai os caras, né, Lua… 

Bufei. Talvez dali a algumas horas eu conseguisse a resposta perfeita, mas, naquele momento, só me passava pela cabeça uma coisa. 

— Tio, você pode me deixar aqui no centro mesmo? Eu vou pra pousada depois… 

Ele parou o carro rente a uma calçada, diante de algumas lojas.

— Obrigada — destravei a porta e abandonei o carro, para longe da risada bêbada da minha prima.

Felizmente, ainda estava cedo, e a pequena cidade, movimentada. Eu gostava de passear pelo centro, observar os cafés, bistrôs e bares e os turistas que movimentavam as ruas calçadas com pedras. Assim, mesmo não sabendo muito bem o que fazer ali, já era melhor que estar na pousada, remoendo os elogios de Liza. Embora eu estivesse acostumada, vivendo naquela família desde sempre, nunca era agradável receber esse tipo de coisa.

Em pouco tempo, me distraí com as lampadazinhas âmbar espalhadas em alguns dos bares, a decoração bonita e tropical, a brisa fresca que soprava meu vestido, aliviando parte do calor noturno.

— Ei, você! Ei! Margarita!

A voz, pouco conhecida e distante, demorou uns bons instantes para penetrar minha distração — e, na verdade, foi só a última palavra que realmente me despertou.

Franzi a testa, procurando o chamado com os olhos, e uma risada surpresa me veio aos lábios quando vi Milla sentada à mesa de um dos pequenos bares, com dois ou três amigos ao seu redor, uma garrafa de cerveja sobre a mesa e um sorriso muito mais descontraído nos lábios.

No instante seguinte, ela se levantou e aproximou-se, antes mesmo que eu pudesse questionar se o chamado era direcionado a mim.

Mantive o sorriso.

— Você por aqui?

Ela encolheu os ombros.

— O trabalhador também tem sua hora de relaxar.

Meneei a cabeça e ri; eu não podia reclamar da resposta se minha pergunta tinha sido absolutamente idiota.

— Lua, né? Você tá com alguém? Tá de boa? Quer sentar ali com a gente?

Fiquei um pouco surpresa.

— Tô sozinha… e… seria ótimo.

Milla abriu de novo aquele sorriso lateral.

— Então vamos.

Conheci Clara: cabelos ondulados, longos, com as pontas azuladas e franjinha, um delineado perfeito nos olhos. Ela abriu um sorriso gentil e calmo e apertou minha mão.

É un placer.

— Ela é minha irmã mais velha — Milla emendou, com seu sorriso descontraído, enquanto Clara acenava com a cabeça, em sua tranquilidade que parecia característica. — Ela é argentina, mas sempre vem nas férias.

A outra pessoa na mesa era Davi.

— Oi de novo — ele meneou a cabeça, um sorriso divertido.

Senti meu rosto corar no instante em que ele surgiu no meu campo de visão.

— Desculpa de novo pela viagem da minha prima… 

Ele riu e encolheu os ombros; era assunto passado.

— E agora que você tá aqui… — Clara começou a propor, animada, e seu sotaque bonito atravessava suas palavras, dando-lhes um tom floreado. — pode ajudar na nossa votação. Você viu Bacurau?

Fiz que sim com a cabeça, enquanto Milla pedia ao garçom mais um copo e uma nova garrafa de cerveja.

— Então… estamos aqui votando: qual é a melhor cena? Pra mim, é a volta do Lunga.

Milla voltou sua atenção para a conversa.

— Pra mim é a do psicotrópico.

Davi encolheu os ombros.

— A da cabana.

Clara olhou para mim.

— E você?

— Hmm… — Torci os lábios, pensativa. Os três me observavam, com expectativa, e eu entendi que esperavam algo como um desempate. Uma parte de mim desejou concordar com Milla, apenas pela curiosidade de observar a reação dela. Mas eu gostava mais de discordar. — A cena da limpeza do museu, no final.

Me deliciei com a expressão de quebra de expectativa em cada um dos rostos diante de mim. Eu podia até ser tímida, nas relações sociais em geral, mas gostava de pequenas polêmicas.

— Ah, Lua… achei que você era minha amiga! — Milla, que estava ao meu lado, voltou o olhar para mim, com um sorriso brincando nos lábios.

Dei uma risadinha e me virei de frente para ela. 

— Nós estamos sob efeito de um poderoso psicotrópico, e você vai morrer — determinei, no meu tom de voz mais firme; ainda que só conseguisse perceber que, sob os reflexos das luzinhas âmbar, seus olhos eram redondos e castanhos, com pequenas raias esverdeadas e cílios longos, que os emolduravam.

O breve silêncio que veio depois se quebrou quando nós quatro explodimos em risadas. Eu voltei a relaxar na cadeira e dei um pequeno gole na cerveja gelada, que já havia sido substituída.

No entanto, ainda conseguia sentir meu pulso um pouquinho acelerado dentro dos meus ouvidos.

Ao redor da mesa, Bacurau foi apenas o primeiro tópico. Sobre outras duas garrafas de cerveja, eu descobri mais sobre a família meio brasileira meio argentina de Milla e Clara e o boy em quem Davi estava interessado, apesar de que, depois de uma transa, ele estava receoso de voltar a mandar mensagem. Além disso, aparentemente consegui gerar interesse ao falar sobre meu curso de História e sobre alguns filmes que eu havia gostado bastante.

— E o que fazemos agora? — Davi trouxe a pergunta, a certo ponto.

A conta havia sido dividida, e Milla, de pé, espreguiçava-se, esticando o corpo todo, aumentando um pouco o espaço entre seu cropped preto e os shorts, expondo um pouco da pele bronzeada.

Clara também se levantou, ajeitando as alças do vestido leve.

— Mirante — decidiu, enquanto colocava a pequena mochila nas costas. — Você cohece o mirante, Lua?

Bom, eu não havia estado, na cidade, em lugar nenhum além de duas pousadas, umas praias e os barzinhos do centro. 

— Não. Mas adoraria.

Clara abriu um sorriso; Davi aprovou a ideia, e Milla comemorou, me fazendo imaginar se sua empolgação era só porque ela gostava muito do lugar.

Enfim, começamos a caminhar. As ruas ainda estavam movimentadas, ainda que menos, e a proximidade com o mar envolvia a cidade toda com uma brisa suave e morna, com cheiro de maresia. Com as luzinhas âmbar dos bares, as calçadas de pedra e as risadas do meu pequeno grupo, a cada passo eu me sentia um pouco mais dentro de uma realidade ligeiramente alternativa, em que o ar era mais leve e eu parecia poder sair voando a qualquer momento, como um passarinho livre da gaiola.

— Lua? — logo que entramos em um beco curto, composto por casinhas coloridas, Clara me puxou de volta para a Terra, e eu desviei meu olhar pra ela. — Tá pronta pra uma das visões mais lindas da sua vida?

Ergui as sobrancelhas. No entanto, mal tive tempo para responder, porque havíamos chegado ao fim do beco, que terminava em uma rua perpendicular. A via, calçada de pedra e estreita como todas as outras, era contornada, de um lado, por bistrôs bonitinhos; e, do outro, por um deck de madeira comprido, que descortinava a enorme lua cheia no céu e uma boa faixa do litoral, com o mar azul-escuro, a areia clara, as falésias e as árvores e coqueiros que preenchiam a paisagem.

Perdi o fôlego.

— Lindo, né? — Milla sorria ao meu lado, e só então eu percebi a presença dela ali, o ombro quase encostado ao meu.

Abri um sorrisinho também e confirmei com a cabeça. Com a proximidade, eu sentia a brisa fresca do mar dentro do meu estômago.

— Gente! Achei um lugar mais vazio pra gente ficar — a voz de Davi surgiu, subitamente, junto a Clara.

Assim que se aproximou o suficiente, ela jogou o braço sobre meus ombros, enquanto caminhávamos pelo deck.

— E aí? — indagou. — O que você achou?

Sorri.

— É lindo. De verdade.

— E a lua tá linda — Clara observou, olhando para o céu.

Milla deu uma risadinha e, por um breve momento, seu braço tocou o meu.

— Tá mesmo — respondeu, ainda com o riso nos lábios, como se estivesse divertindo com alguma coisa que só ela sabia.

Um arrepio breve se desenhou pela minha nuca, e meu coração voltou a disparar.

Enfim, nos sentamos no chão, num dos cantos do deck. Davi encostou-se no gradeado de madeira, as pernas esticadas, e Clara cruzou as suas, com uma postura digna de bailarina. Milla, por sua vez, enfiou as pernas no espaço entre as barras de madeira, deixando-as penduradas no vazio. Decidi imitá-la.

A brisa, ainda que um pouco interrompida pelo gradeado, soprava cabelos e roupas, refrescava o calor. Por alguns instantes, apenas ficamos assim, num silêncio confortável.

Eu me distraí com o mar quebrando na areia, os reflexos distorcidos da lua na água, os dedos finos e compridos de Milla no gradeado, com os traços em preto levemente desbotado das tattoos, as unhas curtas e limpas, de formato alongado. Na pele bronzeada do braço, os pelinhos claros refletiam com suavidade o brilho da lua, e as tattoos por ali tinham as cores mais carregadas. Junto ao cropped preto sem mangas, o bíceps era delgado, embora um pouco sombreado com os músculos sob a pele. A orelha esquerda era pontuada por argolinhas prateadas, delicadas, e o lóbulo carregava um pequeno plug preto.

— Gente… — o tom de Davi era suave, como se não quisesse assustar-nos ao interromper o silêncio.

Eu, Clara e Milla voltamos o olhar para ele automaticamente. Em seus lábios, brincava um sorrisinho.

— Eu trouxe um beck.

O rosto de Clara se iluminou ao ouvir as palavras mágicas; sua irmã também comemorou, e eu apenas sorri.

Os próximos movimentos foram rápidos: Clara tirou o isqueiro da mochila, pois Davi havia esquecido o seu; as duas ajudaram a barrar o vento, e, em segundos, uma pequena nuvem de fumaça subia.

— Você fuma? — Milla indagou, o olhar voltado para mim.

Hesitei.

— Fumei uma vez. Mas não sei se bateu.

Ela inalou devagar, tragou e virou um pouco o rosto para soprar a fumaça de forma que não me atingisse. Depois sorriu.

— Quer tentar de novo? — ergueu uma sobrancelha, a voz um pouco rouca. — Sem pressão. Só se você quiser.

Pensei um pouco. E então, encolhi os ombros e sorri. Já que estava ali…

O beck rodou algumas vezes antes de ser apagado. Eu não sabia exatamente dizer se era ou não culpa da maconha, mas, olhando para a praia, a lua e as árvores, lá embaixo, eu me sentia flutuar um pouco. E sorria muito.

— No que você tá pensando?

A voz de Milla entrou na minha cabeça com suavidade, e eu olhei para ela e ri um pouquinho. As palavras saíram da minha boca antes que eu pensasse nelas.

— Parece que eu vou voar. Quero dizer, não voar… não é pular aqui e começar a voar, mas… voar.

O fato de que eu havia repetido a palavra “voar” tantas vezes era tão divertido que, ainda olhando para Milla, eu comecei a rir. Ela também deu risada.

— Na verdade é que eu tô feliz de estar aqui. Aí parece que eu vou flutuar.

Milla ainda olhava para mim, e eu para ela. Assim, consegui ver a curvatura dos seus lábios quando ela deu uma risadinha, mas bem mais sutil, como se estivesse apenas feliz pelo que eu disse. Ou foi essa a impressão que eu tive.

— Ai, não… — Clara suspirou, então, dando-nos um pequeno sobressalto.

Todo bien? — Milla indagou, quase automaticamente, e eu abri um sorrisinho involuntário ao ouvi-la falar.

O diálogo que se seguiu foi todo em espanhol, rápido e meio confuso para minhas habilidades monolíngues. Entretanto, eu consegui entender que Clara havia esquecido algo no bar e queria voltar para buscar. Milla se ofereceu para acompanhá-la, mas a irmã declinou a oferta.

— Davi vai comigo — indicou o rapaz com a cabeça, e ele deu um aceno com a mão.

— Ok. Tenham cuidado.

Pouco depois, distraída, acompanhei com o olhar Clara e Davi se afastando.

— Seu cabelo…

Milla me puxou da minha distração e eu me voltei para ela, a testa franzida.

— O quê? Tem algo de errado com ele?

Ela riu baixo, pelo nariz, e balançou a cabeça.

— Não, ele é bonito. E tá muito cheiroso. Posso tocar?

Também dei uma risada. Milla, talvez por efeito da maconha, parecia mais aérea, e pequenas coisas a distraíam. Fiz que sim com a cabeça e ela começou a brincar com um dos meus cachinhos, ao que parecia, esticando-o gentilmente.

Rompi o silêncio que se sucedeu com outra risadinha.

— O que foi?

Tombei a cabeça na direção de Milla, o olhar totalmente voltado para o reflexo da lua no mar.

— Nada. — Fiz uma pausa. Uma voz no fundo da minha cabeça parecia querer me alertar a não dizer o que eu estava pretendendo. Mas ela estava tão baixa e tão distante… — É que quando eu te vi na festa eu te achei tão gata que esqueci como falava… e agora eu tô aqui fumando maconha com você.

Milla começou a rir, e eu voltei meu olhar na direção dela. O sorriso esticava seus lábios e fazia pequenos vincos em suas bochechas e, por algum motivo, não parecia um riso de escárnio. Ela só estava se divertindo.

Pouco depois, o riso passou, e ela olhou pra mim.

— Eu tinha visto você desde o início da rua, no bar. Mas não tive coragem de te chamar. Foi a Clara que me convenceu. 

Foi a minha vez. Tombei a cabeça para trás e ri, achando, subitamente, muito divertida aquela confissão. Milla riu junto comigo.

— Coragem? Você precisa de coragem? — ri pelo nariz, ainda olhando para a lua. — Você é toda extrovertida e de boa. Você não precisa de coragem.

— É claro que eu preciso de coragem… — ela ainda ria, mas, logo que terminou a frase, também parou de rir.

Franzi a testa e virei a cabeça. E, com só um pouco de surpresa, vi o rosto de Milla perto do meu, perto o suficiente para que eu pudesse sentir a mistura de cheiros que vinha dela e observar seus lábios levemente empalidecidos, meio secos, mas nem por isso com um desenho menos bonito que antes.

Senti a aspereza da madeira quando tirei a mão do gradeado, e o contraste com a suavidade do rosto de Milla quando o toquei. E então a gente estava se beijando, e toda a minha pele se arrepiava com o toque da sua mão no meu cabelo, nas minhas costas e no meu rosto. E meu corpo parecia estar perto do ponto de ebulição.

O beijo foi breve, mas eu estava ofegante quando terminou. Dei uma risada e coloquei uma mão na testa, esticando um pouco o rosto para sentir a brisa contra a pele meio suada.

Milla também sorriu e olhou pra mim.

— O que foi?

— Eu tô muito chapada. 

A gente explodiu em risadas de novo.

— Será que a Clara ainda vai demorar? — indaguei, e meu olhar apenas se fixava nas palavras que saíam dos lábios de Milla.

Ela encolheu os ombros.

— Espero que sim — e riu.

Comecei a beijá-la outra vez.

Quando Davi e Clara voltaram, eu e Milla apenas conversávamos, rindo de bobagens, olhando para a lua e o reflexo dela no mar. Nos levantamos, ainda meio flutuantes, meio que aguardando o próximo destino.

Olhamos para a irmã de Milla.

— Tô com fome — ela encolheu os ombros e nos encarou de volta, como se perguntasse por que nosso interesse em olhar pra ela.

— Quer ir pra algum lugar? Ainda tem a lasanha da minha mãe em casa… 

A sugestão de Milla, no entanto, foi como engolir um cubinho de gelo. Casa, provavelmente, significava que o rolê estava perto de acabar; e eu queria voltar para a pousada e para minha família tanto quanto queria abandonar os três e perder a oportunidade de ficar de novo com ela.

Aguardei a resposta de Clara.

— Vamos pra casa, então… — Ela ergueu a cabeça e olhou para a irmã. — É bom que a gente pode esticar o rolê com mais privacidade.

Por dentro, senti um lampejo de alívio. Milla olhou para mim e Davi.

— Vocês animam?

Davi encolheu os ombros.

— Seria legal.

— Lua?

Abri um sorrisinho de lado.

— Eu animo.

Milla e Clara comemoraram.

No caminho, descobri um pouco mais sobre as duas irmãs: o pai delas, argentino, administrava uma pousada nos arredores do centro e, além disso, era dono de um dos chalés dela, que alugava para um rendimento extra. Assim, quando Clara vinha visitar, tinha estadia e privacidade garantidas.

Foi assim que, após passar por uma piscina enorme, com uma pontezinha, e um jardim muito bem-cuidado, fomos parar em um chalé elegante, com portas de vidro cortinadas, piso laminado, uma sala ampla com sofá e TV e dois quartos espaçosos — ambos com camas box queen size e dossel.

— Alguém quer lasanha? — Clara atalhou, logo que adentrou o chalé, já na direção da geladeira.

Eu e Davi negamos.

— Toda sua, gata — Milla se jogou no sofá e tirou o celular do bolso. — Vocês querem ouvir música? Algum pedido específico?

Para minha surpresa, ela colocou um tipo de jazz brasileiro suave. Não era algo que eu esperava fazer parte do seu gosto musical, mas era agradável.

Sentados no chão, ao redor da mesinha de centro, fizemos companhia para Clara em seu jantar, bebendo latinhas de Coca e ouvindo música. Era um pequeno momento de calma na noite, e também foi uma boa oportunidade para apenas ficar um pouco no celular, já que havia algumas horas que eu nem via o meu.

Pouco depois, porém, meu foco mudou, e eu me levantei apenas para olhar, pelas portas de vidro, para a área comum da pousada.

— Caralho, a piscina é linda — comentei, meio para mim mesma, mas ouvi Milla rir baixo atrás de mim.

— É muito, mesmo. Nesse calor a gente quase mora nela.

Dei uma risada pelo nariz.

— Queria. Ainda não entrei numa piscina esse ano… 

Milla olhou para mim, as sobrancelhas erguidas.

— Sério? Nesse calor?!

Dei uma risadinha sem jeito e encolhi os ombros, diante da expressão ainda surpresa dela, que aos poucos transformou-se em um sorriso empolgado.

— Então vamos?

Franzi a testa.

— Quando?

— Agora, ué. 

Eu ri. Ri como a reação a uma piada, porque, por mais que eu quisesse entrar numa piscina, e não me importasse se fosse naquele momento, eu sabia que aquilo devia ser só um impulso bobo meu e que ela estava brincando.

— É sério, você não falou que queria? Então vamos! — ela abriu a porta, parou e voltou seu olhar para a mesinha de centro, a voz num tom mais alto: — Vamos pra piscina, gente?

Clara ainda comia; ergueu a cabeça e sorriu.

— Boa! Podem ir vocês, eu vou depois. E o Davi… —  ela voltou o olhar para o amigo, que estava concentrado no celular. — Parece que ele tomou coragem de mandar mensagem e o Gabriel respondeu, então…

Milla riu.

— Então sucesso pra vocês. Eu e Lua esperamos lá! — ela exclamou, em um tom de despedida, e no instante seguinte já havia me puxado pela mão para a beira da piscina.

Meu coração estava disparado em meus punhos, mas o friozinho na barriga me dizia que era empolgação. Deixei escapar uma risada pelo nariz.

— Não precisa se preocupar — ela piscou para mim, enquanto chutava os chinelos para longe. — A água não é gelada. — completou, em um tom de voz tão natural que me deixou com um sorriso nos lábios.

Àquela altura da minha vida, eu já sabia que, bom, corpos eram apenas corpos, e, sobretudo numa cidade de praia, nenhum grau de nudez (ou semi) deveria ser motivo para alarme. No entanto, tive que fazer a escolha racional de não agir de uma forma muito esquisita quando Milla largou o cropped e os shorts jeans numa das espreguiçadeiras e se dirigiu para os largos degraus internos da piscina com seu conjunto preto de top e calcinha.

— E aí? — ela ergueu as sobrancelhas, as pernas submersas até os tornozelos, me olhando.

Dei uma risada e deixei meu vestido e os chinelos na espreguiçadeira. Prendi meu cabelo em um coque abacaxi — felizmente, havia um elástico no meu pulso — e então, sob aquele céu escuro e estrelado, estávamos as duas flutuando na água fresca, enxergando os rostos uma da outra através dos reflexos ondulantes das luzes azuis da piscina; e conversando.

— E foi por isso que eu quis dar rolê depois do casamento — expliquei, enquanto brincava com a água entre os meus dedos.

Milla fez uma careta.

— Família é uma merda. E eu não acredito até agora que ela tentou te empurrar pro Davi.

Dei uma risada e encolhi os ombros.

— Pelo menos eu consegui esfriar a cabeça… 

— E conheceu três pessoas maravilhosas.

Inclinei a cabeça em concordância.

— E fumei um beck.

Milla riu.

— E ficou chapada.

Concordei de novo.

— E entrei numa piscina de madrugada.

— Sem roupa de banho.

Dei uma risadinha.

— E fiquei com alguém na piscina.

Ela franziu a testa.

— Ficou?

— Não sei… Fiquei?

Milla riu.

E me beijou mais uma vez.

Contra as palmas de minhas mãos, a cintura dela era delgada, sem muitas curvas, e a ponta dos meus dedos percorria com suavidade o sulco delicado de sua coluna vertebral. Agora sua boca tinha gosto de Coca e tudo tinha cheiro de cloro, e não estava frio o suficiente para justificar todos os arrepios pelo meu corpo.

Milla fez uma pequena pausa e sorriu; seus dedos longos estavam na lateral do meu pescoço, por vezes chegando ao meu rosto, e, por vezes, na curva do ombro. Quando voltei a beijá-la, era difícil ignorar o contato: meus seios, meu abdome, minhas coxas, pressionados contra seu corpo; sua mão esquerda em meu rosto, no pescoço, fazendo uma pressão que parecia acidental, mas que deixava meu corpo ainda mais quente; sua mão direita na lateral do meu torso, percorrendo-o. Minhas mãos traçando seus traços firmes e angulosos. E eu sentia como se fosse entrar em ebulição dentro daquela piscina.

E já não tinha qualquer noção do tempo.

— A Clara disse que tava vindo — mencionei, ofegante, a certo ponto.

Milla riu, em meio à respiração pesada.

— Verdade… — e mordeu o lábio, seu piercing labret brilhando.

Antes que eu pudesse raciocinar sobre a lógica das minhas próprias palavras, estava beijando-a outra vez.

Nos movemos pela piscina. O frio dos azulejos foi um pequeno choque térmico contra as minhas costas, mas a sombra que a ponte projetava sobre nós era interessante. De qualquer forma, agora o corpo de Milla estava por completo contra o meu, inclusive suas pernas nuas tocando as minhas, entre as minhas, e eu conseguia sentir meu pulso em vários lugares do meu corpo.

Eu não sabia dizer se estava concentrada no que estava fazendo ou absolutamente dispersa em relação a todo o mundo ao meu redor. Por isso, quando uma janela bateu com um pequeno estrondo, meu susto foi grande o suficiente para me fazer saltar.

Nos afastamos um pouco, rindo em meio à respiração falha.

— Caralho… — Milla suspirou, o sorriso brincando nos seus lábios.

Eu também ria; tombei a cabeça para trás, na borda da piscina. Meu coração batia nos meus ouvidos, e a água parecia ao mesmo tempo fria e quente contra a minha pele. Abri a boca para dizer algo, mas apenas tomei um pouco de ar e voltei a rir.

Quando me endireitei, rindo um pouco menos dessa vez, olhei para Milla. Ela ainda parecia ofegante, seu cabelo estava desalinhado, e gotinhas de água percorriam sua pele toda. Mordi o lábio. E sabia que, se eu me desse mais alguns segundos, acabaria voltando a beijá-la. Olhei na direção do chalé.

— Então…

Milla riu pelo nariz.

— É, né…

Com certa relutância, abandonamos a piscina. A brisa da madrugada em meu corpo molhado me deixava com um pouco de frio. Por dentro, porém, eu ainda estava quente o suficiente para não me importar com isso.

Milla conseguiu-nos toalhas. E então voltamos para o chalé, onde Clara e Davi, sentados no chão, assistiam a um filme, tão concentrados na trama que, quando abrimos a porta, os dois tiveram um sobressalto.

— Sem a gente? Sério? — Milla ergueu a sobrancelha, fingindo-se de traída.

Clara revirou os olhos.

— E você tava na piscina sem a gente — respondeu, num tom que, momentaneamente, me fez enrubescer.

Milla, porém, não se afetou e também virou os olhos.

— Porque vocês não quiseram vir.

— Com certeza! — Clara exclamou, uma nota de ironia na voz, e Milla riu, mas, logo em seguida, soltou um bocejo.

Só aí lembrei que ela havia trabalhado toda a festa e devia estar exausta.

— Aproveitem o filme de vocês aí… eu acho que já vou dormir — Milla bocejou outra vez e então se voltou para mim. — E você vai dormir aqui, né, Lua? Tá tarde pra você ir pra casa.

Voltei meu olhar para Clara, que era quem deveria decidir isso, em teoria.

— Claro que vai! — ela exclamou, sem tirar os olhos do filme. — Sem chances de você sair essa hora, Lua!

Encolhi os ombros e olhei para Milla. Ela riu.

— Ah, eu preciso de um banho e dormir. Como vai ser a organização?

— Eu fico no sofá, de boa… meu sono é pesado — Davi atalhou, erguendo a latinha de Coca que segurava.

— Você divide sua cama comigo, gata? Aí eu dou a minha pra Lua — Milla tombou a cabeça na direção de Clara, que riu.

— Se você não puxar o lençol…

— Fechou. Vou tomar banho. Ah, e Lua… só tem um banheiro, mas prometo que vou ser rápida. Enquanto isso, você pode pegar a blusa azul que tá em cima da cômoda pra dormir, se quiser… eu já volto.

O banho de Milla de fato foi rápido, e, instantes depois, ela saía do banheiro, com os cabelos úmidos e um cheiro bom.

— Todo seu.

Mesmo tendo descansado um pouco mais que ela, eu também estava com sono. E, assim, quando o filme de Clara e Davi terminou, e eles também se recolheram, eu já estava deitada na cama de Milla — cujos lençóis e travesseiros tinham um cheiro que me lembrava muito o que eu senti nela, quando a beijei.

Esticada ali, com os olhos fechados e imersa naquele cheiro, eu só conseguia pensar em tudo que havia acontecido naquele dia — e o quão irreal ele havia sido, em cada detalhe. Sem muito esforço, eu conseguia até sentir novamente cada toque de Milla em meu corpo. E precisava me lembrar de seu cansaço para não me consumir em chamas pensando que ela estava a metros de distância.

Perdida nesses pensamentos por tempo o suficiente para virar na cama várias vezes, eu acabei desistindo de dormir. E, assim, estava desperta quando ouvi meu celular vibrar, me avisando que a bateria estava morta.

Continuei deitada, com preguiça de me movimentar, ainda que acordada. Eu podia fazer alguma coisa em relação a isso, com todo mundo dormindo? Pensei mais um pouco.

E então, lembrei que havia enfiado um carregador na pequena bolsa que eu levara para o casamento. E lembrei que ela estava em algum lugar da sala de estar do chalé.

Virei um pouco na cama, com preguiça de me levantar. Por outro lado, parecia meio idiota passar a noite com o celular descarregado, tendo um carregador tão próximo.

Suspirei e, enfim, decidi ir até lá. Liguei apenas a pequena lâmpada de cabeceira, o suficiente para iluminar mais ou menos meu caminho, e peguei também o celular; seria mais rápido voltar a deitar se eu ligasse numa tomada que eu já havia visto mais cedo.

Obviamente, o processo não foi tão fácil quanto eu imaginei. No entanto, após alguns pequenos esbarrões e uma certa demora, tomando cuidado para não acordar Davi, no sofá, enfim encontrei o carregador e, depois, a tomada. De forma que eu estava conectando as duas partes do processo quando a luz de uma lanterna de celular me iluminou, e eu tomei um susto.

— Oi — Milla falou, a voz baixa meio rouca de sono e o cabelo bagunçado, mas um sorrisinho nos lábios.

— É, oi — também sorri de leve, me levantando, meio desajeitada. Eu também falava baixo. — Vim colocar o celular pra carregar — emendei, como se precisasse de uma justificativa.

— Vim beber água — ela encolheu os ombros, também se justificando, como se fosse necessário. Eu estava só com a blusa dela, que era grande, e, de súbito, me senti bem consciente das minhas pernas descobertas, iluminadas pelo facho de luz.

Mesmo tendo dormido — eu estimava — apenas umas duas horas, e ainda ser madrugada, Milla parecia tão desperta como se tivesse tido uma noite inteira de sono. Ela usava shorts de tactel curtos e um top diferente do da piscina.

— Você também tá morrendo de calor? Ou eu tô doida? — ela indagou, com uma risada breve, logo que abriu a geladeira. 

Também ri e observei seu processo de encher um copo de água e me oferecer outro. Aceitei.

— Não, tá muito calor mesmo… eu tava até com dificuldade pra dormir — confessei, enquanto me aproximava.

Ela sorriu, me olhando com aquele entendimento mútuo de um problema, e por alguns segundos os únicos sons que ecoaram na sala foram os da água e dos copos de vidro. E então, sua voz rompeu o silêncio, meio do nada.

— Mas tem ar-condicionado.

Franzi a testa.

 — Como?

— Ar-condicionado. No quarto. Desculpa, eu esqueci de comentar… vamos lá, vou ligar pra você.

De volta ao quarto, Milla alcançou o pequeno controle num lugar que eu nem havia visto, e eu sentei na cama. Ela esticou uma mão, para testar o ângulo do ar.

— Tá bom assim? Eu gosto dele frio… 

Estiquei a mão também.

— Pra mim tá ótimo. 

Milla sorriu e então hesitou, com o controle ainda na mão. Em teoria, agora ela deveria deixar o controle comigo e voltar a dormir, ou algo assim. Mas eu não queria isso — e, aparentemente, ela também não.

— Obrigada.

Minha voz tinha um tom mais baixo e eu percebi que ela demorou alguns segundos para entender o que eu tinha falado. Sob a luz da luminária, olhei para as minhas pernas e as dela, que faziam um contraste, mesmo que sua pele fosse bronzeada.

— Como?

Abri um sorriso lateral.

— Por me chamar pro rolê. Foi divertido. Eu tava precisando de algo assim, se não acho que… ia ficar doida.

Milla riu baixo ao meu lado. Torci os lábios, pensando na minha sinceridade meio sem lugar, sobretudo com uma pessoa que eu havia literalmente acabado de conhecer.

— Foi um ótimo rolê. — ela cortou meus pensamentos. — Só faltou a gente ir pra praia…

— Relaxa… — ri baixo — ouvi dizer que praia é melhor de ir quando tem sol.

Milla deu uma risada alta. E então me beijou de novo.

E, dessa vez, com a sua mão na minha cintura, sob a blusa, eu não conseguia me impedir de suspirar contra seus lábios.

A cama estava perto o suficiente para que qualquer outra decisão fosse idiota.

Quando a blusa que eu vestia sumiu, meus piercings brilharam sob a luminária, e Milla sorriu antes de tocá-los, seu labret me espalhando arrepios pelo corpo todo.

Ela, por sua vez, não tinha piercings escondidos; mas, eu descobri, suas tatuagens se espalhavam pelo abdome e pelas coxas, inclusive sob os shorts de tactel.

E, assim, quando eu finalmente me estendi na cama, sem nenhum fôlego e ainda rindo um pouco, com Milla largada ao meu lado, percebemos que, enquadrado pela janela, o céu estava num tom cada vez mais claro de lilás — e o sol, prestes a nascer.

Ela virou na cama, pousou uma das mãos no meu rosto, me beijou e sorriu.

— Você já viu o sol nascer na praia?

Ergui as sobrancelhas, surpresa.

— Na verdade, não.

Milla se espreguiçou na cama, como um gato, e a leve claridade me mostrou as cores de suas tattoos. Me distraí por alguns segundos.

— Quer ver?

Ergui os olhos para o seu rosto.

— Você não tá com sono?

Ela riu e encolheu os ombros.

— Eu posso dormir depois. Você quer?

Mordi meu lábio. Depois do mirante, do beck e da piscina… 

— Seria legal.

Milla comemorou. E então saltou da cama, e eu, sentada, apenas admirei por algum tempo as formas do seu corpo de costas, antes de começar a procurar a camiseta que ela havia me emprestado mais cedo.

Percorremos o pequeno caminho da pousada que levava à praia vestidas com camisetas largas e shorts de tactel de cores destoantes. O assunto entre nós era uma série de TV que ambas gostávamos, e apenas lembrar algumas das cenas era o suficiente para nos fazer rir muito.

E então, chegamos à praia.

Milla esticou uma canga e nos sentamos nela, sentindo a brisa fresca no rosto. A maré estava baixando, as ondas quebrando em camadas e camadas de espuma sobre a areia úmida. Um pouco mais acima, a areia seca e fofa tinha sido esculpida pela água e pelo vento durante a noite, e agora até mesmo ela parecia ondular muito delicadamente. Ainda que muito fina, era áspera sob meus dedos dos pés. Ali, nossa única companhia eram pequenos siris muito brancos, que escapavam de seus buracos para logo em seguida esconderem-se de novo, assustados.

E então, diante de nossos olhos, o sol começou a surgir, todo o seu reflexo como uma trilha dourada sobre o mar, alongando-se até onde a vista alcançava. Eu respirei fundo por alguns instantes: tudo cheirava a sal e maresia, aquele cheiro que era como uma pedra rolando nos dentes.

Era um cheiro bom.

Sem preocupação, pelo menos naquele instante, apenas permitimos que o tempo passasse. O movimento das ondas do mar coincidia com a minha respiração, e eu acabei sorrindo ao ver, ao meu lado, Milla de olhos fechados, inspirando e expirando.

E então, quando o sol já havia nascido, e o céu, completamente azul, brilhava, eu a vi soltar um bocejo.

Dei uma risada baixa.

— Hora de dormir?

Ela também riu e se rendeu.

— Acho que sim.

— Vamos lá. Eu também preciso voltar pra pousada, em algum momento.

Nos levantamos, e Milla olhou para mim.

— Não quer que te leve lá?

Revirei os olhos.

— Quero que você descanse. 

Milla voltou a rir, e agora, enquanto voltávamos para o chalé, sua expressão era como a de uma criança pega fazendo algo errado.

— Posso pelo menos ir com você até o portão, então?

— Se você conseguir, sem cair de sono na piscina… — provoquei, com uma risada, e Milla virou os olhos para mim.

No chalé, eu voltei a me enfiar no vestido do casamento e devolvi as roupas emprestadas, após recolher tudo que era meu e que eu havia deixado espalhado. E então, ainda rindo de bobagens, atravessamos outra vez o jardim, agora na direção da saída da pousada.

Logo que chegamos ao portão, nós paramos.

Ergui os olhos para Milla.

— Eu sei que já falei isso, mas… obrigada pelo rolê.

Ela sorriu.

— Eu que agradeço. Foi um bom rolê.

Dessa vez, porém, não hesitamos. Eu me estiquei, e, com outro pequeno sorriso nos lábios, Milla me beijou. E espalhou um arrepiozinho pelas minhas costas.

Nos afastamos instantes depois.

— A gente se vê — ela piscou para mim, enquanto eu atravessava o portão.

Eu dei uma risada.

— Bom descanso!

Ela meneou a cabeça.

— Vou garantir isso.

E então eu estava andando pela rua, sob o sol muito claro da manhã, os olhos ardendo de sono, e, mesmo plenamente consicente de que eu estava voltando para toda a minha família, não conseguia parar de sorrir.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!