Artemis escrita por Camélia Bardon


Capítulo 6
05. Reconhecimento




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Desta vez, eu já sabia o que esperar. Portanto, retirei minha blusa – aquela leve, pronta para suportar a brisa do final da tarde – e me permiti sentir o frio. Agora sim, eu poderia encarar aquele calor invasivo de queixo erguido.

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A pior parte de se conviver com pessoas de diversas culturas era manter a compostura diante de conflitos de criação. Por exemplo, era difícil escolher um almoço que todos concordavam, difícil de interromper alguma atividade em grupo quando era horário de algum costume, difícil de conversar sem parecer que estávamos pisando em ovos. No entanto, o que tornava tudo mais fácil era a disposição que todos tinham de aprender constantemente. Se havia algum preconceito, nunca era dito na frente da pessoa em questão. E, se dito pelas costas da pessoa em questão e fosse mais ofensivo do que aparentava, nos esforçávamos para corrigir nossos pensamentos. Em teoria, é claro; qualquer um pode fingir mudar de pensamento apenas para passar ileso pela roleta russa do julgamento.  Agora, falando na melhor parte de somente observar e ficar quieta: era divertidíssimo absorver os pequenos detalhes e manias individuais. Poderia listar com perfeição as ações de cada um deles se alguém me desse um tema aleatório. Veja bem:

Elevador! Todas as quartas e sextas-feiras nos reuníamos na Università para discutir ideias, progressos e sugestões. Isso incluía um horário marcado às 17h – quase como que uma hora do chá inglesa, mas com café, desespero e queijos variados – e pessoas que seguiam o horário à risca, pessoas que se adiantavam um pouco e outras que sempre chegavam atrasadas. Prince, como todo inglês que se preze, jamais se adiantava. Reid e Sariyah chegavam quase que no mesmo momento em que Mabel e Kiera, porquanto que usavam a escada e as duas não. Dava tempo de balancear o andar de diferença com a demora com que o elevador fazia sua linha reta infinita. Eu e Nora poderíamos variar entre “em cima da hora” e “com cinco minutos de antecedência”, uma vez que tudo dependia de nossa disposição óssea. Já Elio... Não havia sequer um dia em que todos nós olhávamos para a porta entre 17h05 e 17h10 até que ele aparecesse. Quanto às desculpinhas, essas sim costumavam variar; contudo o padrão era sempre o perdoarmos. Por que não? Ele era gentil e, afinal, quem ali ligava de perder alguns minutinhos a mais para compensar os do início? Sempre funcionava. Se nós começávamos com tensão, terminávamos rindo.

E por falar em risadas... As risadas! Mabel ria baixo, mesmo quando a piada era sensacional. Kiera e Nora comandavam as risadas escandalosas, mas uma roncava ao perder o ar e a outra gania. Prince sorria de lado e jamais ria. Reid e Elio geralmente eram os que contavam as piadas e perdiam a voz quando riam por cima. E eu... Ah, precisa mesmo que eu diga? Eu não passo da narradora, os protagonistas são eles. Ao menos, é assim que é a sensação. Não é necessariamente ruim, todavia. É apenas... Solitária, vez ou outra.

Entre idas e vindas para fins de pesquisa da parte de todos, eu e Nora decidimos que também precisávamos passear quando conveniente. No entanto, isso também ficava difícil quando na cabeça de todos Artemis era Nora e, portanto, se Nora estivesse aqui, Artemis estaria trabalhando e sendo produtiva. Então, Artemis, eu e Nora permanecemos ociosas enquanto os outros se divertiam. Porque, depois daquele surto de criatividade, nenhuma ideia adicional havia me visitado. O que fazíamos em nosso tempo livre, então? Maratonávamos filmes da Barbie para passar o tempo.

— Jamais eu vou me arrepender de ter dado a ideia de enfiar esse monte de DVDs na mala — Nora suspira em tom sonhador. — Olha, que paraíso: eu, você, sorvete e As Doze Princesas Bailarinas. Quer coisa melhor?

Não quero parecer exigente e ingrata, mas um chocolate quente iria bem... Se não estivesse tão quente — opino.

— Tem razão. Ah, eu amo essa parte.

Ela se refere à parte em que as princesas se refugiam no jardim mágico para fugir da condessa má, dançando até os sapatos ficarem gastos. Permaneço observando e chego até a me espreguiçar no sofá, porém nossa atenção é desviada em pouco tempo por batidas na porta. Eu e Nora nos olhamos, pensando quem poderia ser.

— A gente aposta hoje?

Gosto de surpresas. Eu abro?

— Bom, ‘tá na sua vez...

Você disse isso anteontem.

— Exatamente. E ninguém bateu na nossa porta ontem, bateu?

Reviro os olhos, mas tenho de dizer que sua lógica faz certo sentido. Mesmo brincando, não me incomodo de ir até a porta – por mais que faça isso com um tanto de preguiça. Destranco a porta e a abro, me surpreendendo por encontrar Elio parado em frente a ela, escorado no batente. Se a porta abrisse para fora, como a dele, eu certamente o nocautearia. Abro um sorriso para cumprimentá-lo, ao passo que ele o devolve.

— Oi! Tudo bem por aí?

Assinto com a cabeça energicamente, abrindo um pouco mais a porta tanto para sinalizar que Nora está logo ali do lado quanto para indicar que ele pode entrar, porém Elio nega com um grunhido de exclamação.

— Nora? Não, eu vim falar com você! — Daí, eu aponto para mim mesma, erguendo uma sobrancelha. — É, você! Quero te chamar para ver a Piazzale Michelangelo. Aprendi um pouco de linguagem de sinais e gostaria de treinar...

Pisco em confusão. Lá de dentro, Nora nos olha com um sorriso de escanteio. Quero urgentemente abanar os braços como um boneco de posto para pedir que ela pare, no entanto me contenho. Ainda assim, ela cantarola:

— E, também, é uma boa ideia me deixar trabalhar sozinha!

— Boa noite — Elio a cumprimenta, fazendo uma reverência engraçadinha. Ele é todo desajeitado, mesmo que pareça que está se esforçando fica um tanto tombado. — Bem, é algo a se considerar. O que me diz? Talvez eu entenda se responder bem devagarinho.

Rio em silêncio, trocando o peso dos pés. Por que não tentar uma vez, não é?

Por mim, claro! Quando?

— Viu só, olha. Entendi que disse que sim. Não é demais?

Olho para ele e de volta para Nora, atrás de mim. Ela ergue os dois polegares para mim, no entanto não posso deixar de sorrir com maldade enquanto Elio ainda aguarda por uma resposta. É claro que ele não está me convidando para sair daquele jeito, contudo ainda é alguma saída digna de nervosismo. Pessoas novas das quais não estão habituadas ao meu modo de falar... Ah, céus, não vamos sofrer por antecipação.

Quais são as chances de ele não ter entendido nada e só estar supondo que eu responderia que sim?

— Altas — Nora gargalha, acenando com a mão.

— Ei, eu ainda estou aqui! — Elio protesta, agitando uma mão no ar de brincadeira. — Depois eu descubro o que as madames estavam dizendo. Mas é um sim mesmo ou...?

Coloco uma mão em seu ombro e confirmo com a cabeça, gesto que Elio consegue compreender sem maiores dificuldades. Daí, para protegê-lo dos ataques de Nora, fecho um pouco mais a porta e sorrio ao me encostar na parede adjacente à que ele está.

— Legal! Eu venho aqui amanhã às... 15h30. Pode ser?

15h40? — brinco.

— Ei, essa eu entendi. Não faça piadas, é a porta à frente, mocinha. Não vou me atrasar, prometo.

Não resisto em rir, provando minha teoria de que ele e Reid são os piadistas de nós todos. Por sua vez, Elio finge que tem um chapéu de caubói e bate as botas – no sentido literal da expressão – e gira nos calcanhares para retornar para seu apartamento. Permaneço observando, como de praxe, até mesmo quando ele acena e me deixa apenas com a porta para fazer companhia. Aceno de volta mesmo assim, um tanto reconfortada de não ter nenhum olhar sobre mim. Posso apreciar esses segundos em paz, antes de retornar para Nora e As Doze Princesas Bailarinas.

— E olha só, a Ariel tem um encontro!

Entre amigos. Não comece.

— Ainda assim é um encontro — ela cantarola feliz da vida. — Ah, assim eu morro de orgulho. Minha criancinha está crescendo tão rápido, é difícil de acompanhar...

Em dois minutos, Nora atua como uma mamãe chorosa, me fazendo pensar que apesar de ser apenas dois anos mais velha ela tem certo papel materno – certo, pode trocar para fraterno – em minha vida. Por isso, apesar do drama, sei que está sendo sincera em sua declaração. Aproveito-me do momento para deitar a cabeça em seu colo e relembrar de boa parte do caminho que trilhamos para chegar até ali. Todo mundo tem uma história para contar, não é?

 

Lembro bem de quando contei para meus pais que planejava terminar o Ensino Médio e ir com Nora para Vegas. Ambos gargalharam de início, pensando ser alguma espécie de piada de mau gosto, no entanto quando permaneci os observando com intensidade entenderam que não era o caso.

Escutou o que ela disse, Daniel? mamãe ergueu uma sobrancelha para papai, desafiando-o a tomar algum partido. Apesar de se intitular “o homem da casa”, não chamávamos nossa mãe de Sargento à toa. Ela quer ir para Vegas. A cidade do pecado, com aquela loirinha diabólica. Eu disse que ela era uma má influência, mas alguém me escutou? Não.

Meu pai transitou o olhar entre a esposa e a filha aparentemente querendo organizar algum complô rebelde debaixo de seu teto. Quanto a mim, apenas mordi o lábio e agitei minhas pernas no ar, dando de ombros. Estudando cuidadosamente as palavras que usaria para não despertar o Monte Fúria, meu pai veio em minha defesa:

Ah, vá com calma, Doreen... A garotinha é gente boa. Não seja tão radical.

— Radical? Acha que eu estou sendo radical? — estupefata, ela parou em frente dele com as duas mãos na cintura. Vai entregar minha filha aos lobos? Ela não vai saber se virar no mundo lá fora!

O mundo lá fora não é problema. Diana já está no mundo lá fora desde que Sedona é Sedona e não tem lugares próprios com educação especial. E em breve ela será maior de idade, prefere que use a cartada do “você não responde mais por mim judicialmente”?

Mamãe ponderou a questão, me lançando um olhar fulminante como se tivesse sido eu a pronunciar aquela sentença. Teria de lembrar-se de agradecer ao papai mais tarde – ou, quem sabe, ficar atenta para ver se ele não estava blefando para me cobrar o favor depois...

Começa assim. Daqui a pouco está frequentando casinos, gastando todas as economias que salvamos para a faculdade dela, usando drogas e dormindo com homens casados.

— Mãe! — protestei, pensando que ela já havia passado o limite do ridículo. — Nora é uma pessoa ótima.

Não mesmo, você não conta rebateu ela, sem piedade. A pauta aqui é a senhorita.

— Eu não sou um réu, mãe...

Mas deveria. Donna, diz para ela.

Donna, que tomava café na cozinha ao lado, nada mais fez do que erguer as mãos em defesa. Já tinha passado da idade de se importar com os problemas de adolescente da irmã, ao passo que sua preocupação prioritária era continuar impecável no desempenho em seu novo estágio.

Mãe, ela já é grandinha. Se a Di for quebrar a cara, é até bom para aprender a tomar decisão sozinha.

Uau... Aquilo era um apoio ou uma crítica? Apenas Donna tinha a capacidade de deixar claro seu posicionamento de quem apenas queria ver o circo pegar fogo. Ainda hoje não sei o que penso dela. Foi com minha família que aprendi que amor fraternal nem sempre é incondicional – tenho a ciência de que eles não me odeiam, por assim dizer, mas creio que quando o amor é pleno um filho não precisa se perguntar se os pais ou os irmãos o amam. Eles apenas o sabem. Certo...?

Eu não peço mais opinião de ninguém nessa casa. Mas eu vou te dizer uma coisa, Diana: com aquela menininha órfã você não anda daqui para fora. Ela não tem base familiar.

— Mas, mãe... — choraminguei, ou ao menos tentei por meio das mãos.

Mas nada. Está dito e pronto.

Observei-a se retirar do ambiente, quase trovejando após um raio. Eu e meu pai permanecemos sentados lado a lado, e Donna acenou brevemente antes de partir para o serviço. Não me lembro de alguma vez ter me sentido tão pequenina, no entanto essa sensação foi abrandada pela mão de meu pai em meu ombro cuidadosamente. Lembro-me de olhar para ele com profunda derrota, sendo recebida por uma expressão compassiva e até amigável.

Não dê ouvidos a ela. Concordo com a negativa para Vegas, mas a sua liberdade a gente não pode tirar. Só... Tome cuidado com as caraminholas da sua cabeça, ‘tá bom?

Assenti com a cabeça, abaixando-a para encarar meus pés logo em seguida. Meu coração contraía-se dentro do peito, como se houvesse um elefante deitado sobre ele. Não consegui impedir que a fala de Sophie Hatter ecoasse em minha cabeça: “Um coração é um fardo pesado”. Sentimentos abriam oportunidades para feridas, era o que nos fazia humano.

Vamos lá, vou lhe dar uma carona para a escola. Depois de essa emoção logo pela manhã, já deve ter perdido o ônibus.

Falando assim, eu até poderia apreciar a ideia de discutir todas as manhãs para não pegar o ônibus.

 

Em meio à nova rotina, sinto-me honrada em poder compartilhar da simplicidade de observar o pôr-do-sol ao lado de alguém que vale a pena manter por perto. De onde estamos, é possível contemplar a visão do Duomo – apesar de contar com alguns mirantes pela borda das colunas de gesso, eu e Elio optamos por ficar apenas debruçados e analisar a construção a olho nu.

Apesar de já ter um conhecimento melhor do que nada, Elio ainda trouxe o bloco de notas para quaisquer frases que não fosse entender por completo. Sempre que eu terminava de dizer algo, ele repetia em voz alta para checar se havia entendido; se não fosse o caso, eu o complementaria com o bloco de notas. A tarde nos rende alguns gelatos, muitas risadas – sinceras e não constrangidas, graças aos céus – e uma sensação quentinha no fundo do coração.

Então, quando os raios de sol vão enfraquecendo aos poucos, ofuscando o brilho dourado que refletia em sua pele bronzeada, olho para Elio e sorrio. Notando que tenho algo a dizer, ele faz o mesmo.

Obrigada.

— Ué, pelo que? Não fiz nada demais, inclusive quem pagou o gelato foi você...

Nego com a cabeça, rindo fraco.

Reconhecimento.

Ele franze a testa, indicando que não conhece esse gesto. Daí, a escrevo no bloco de notas, entregando-o a Elio com cuidado. Quando ele a lê, abre um sorriso tímido para mim. Após viver a vida inteira em silêncio, sei exatamente o que Elio quer dizer com isso.

Está retribuindo o agradecimento. Eu apenas não sei, em seu caso, qual reconhecimento dei a ele. Contudo, irei esforçar-me para descobrir a partir de hoje.


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Notas finais do capítulo

Tá sendo boa a sensação de postar na data certa... e esses dois, aiai amo *suspiro apaixonado*
Em um nível de pais desnaturados, em que nível de 0 a 10 você classificaria esses? Porque, olha... eu surtaria. Não me surpreende que a Diana fugiu até a Itália xD
Até mais, bebês ♥



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