Artemis escrita por Camélia Bardon


Capítulo 4
03. O som do coração


Notas iniciais do capítulo

Bom dia, boa tarde e boa noite procês ♡ como vão?
Hoje a gente termina de conhecer todo o pessoal, aí já passamos para os desenvolvimentos das tretas e subtretas. Ansiosos? Porque eu estou muito HEHEHEH
Boa leitura!



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Ao chegar mais perto, rodeei o filete e aproximei minha mão dele. Qual não foi a minha surpresa em ter sido acolhida por um calor tão forte que me chegou a ser incômodo.

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A primeira manhã em Florença nos agracia com um clima fresco e sol suficiente para aquecer e não ficar insuportável de viver. Eu e Nora nos arrumamos com ânimo redobrado após Kiera nos interfonar informando que havia uma cobertura no apartamento, pequena e confortável. É lá que nos reuniremos hoje, para conhecermos os ganhadores restantes do concurso. Sinto que será um grande reality show de escritores desesperados, e isso me deixa sinceramente animada para ver o circo pegando fogo.

Preparamos um café fresco e o guardamos na garrafa térmica que trouxemos de Vegas, com um adesivo divertido de "adoçado com sangue", e separamos alguns copos descartáveis que encontramos no armário da cozinha. Temos de tirar um pouco de pó da embalagem, visto que não sabemos há quanto tempo o último morador abandonou as instalações. Daí, concordamos que não vamos usar o elevador com medo de ele cair ou quebrar enquanto estamos lá dentro, e subimos as escadas para a cobertura.

A primeira coisa que vemos não é o cabelo cacheado enorme de Kiera, mas sim uma massa de cabelos ruivos até o ombro e, ao seu lado uma garota com o rosto parcialmente coberto com um hijab. Mabel está recostada sob a parede de tijolos, e acena para nós animadamente. Depois, ela bate com as costas da mão de leve no braço da pessoa de cabelos ruivos, que viemos a descobrir que era um homem apenas quando este se vira. Rio sozinha quando ele quase cai no processo.

― Bom dia, meninas! ― Mabel sorri, com as bochechas coradas pelo esforço de ser social. ― O que é isso aí?

― Trouxemos café ― Nora diz em tom de propaganda. Os dois indivíduos sentados na ponta do prédio se viram para nós e também retribuem o sorriso. ― Olá, vocês, quem são? 

A morena com o hijab acena com a mão e espera o ruivo auxiliá-la a levantar. Quando o faz, caminha até nós e coloca a mão em um ombro de cada.

Assalamu alaikum ― diz ela com um sorriso de orelha a orelha. ― Significa "paz seja convosco". Estávamos ansiosos em conhecê-las. Não é, Reid?

― Mas é claro, madame! Sempre estamos ansiosos para conhecer garotas bonitas por essas bandas.

O ruivo finge que tem um chapéu de cowboy e o tira de mentira para nós. Eu e Nora rimos, felizes pela boa recepção. O choque de cultura entre nós é quase palpável, mas não nos tira o privilégio de nos sentirmos bem-vindos e queridos. 

― Muito obrigada! Café, cowboy?

― Só se for para agora, moça bonita.

Observo seu rosto corar, então troco um olhar bem-entendido com a nova mulher. Ela também ergue uma sobrancelha para mim, captando a eletricidade do momento. Nora se dá conta do deslize que cometeu e solta um leve pigarro e dá um passo atrás para abrir a garrafa e oferecer café para o cowboy. Mabel se diverte em seu próprio canto, e anuncia:

― Essas são Nora e Diana. Está de frente com Artemis, querida.

O rosto da morena se ilumina, e reparo que ela também lê meus textos. Sorrio automaticamente com o pensamento que me passa como uma nuvem, até que me lembro que esse papel é de Nora agora.

― Que prazer imenso! Eu sou Sariyah. Minha bolsa é para design.

― O prazer é todo nosso, Sariyah ― Nora sorri, e nos sentamos todos na beirada do telhado. ― Que legal, e vocês, o que vieram estudar em Florença?

É verdade! Estávamos tão animadas que acabamos nos esquecendo de perguntar o básico. Por sorte, Nora tem um sorriso irresistível e uma presença de espírito cativante. Donna diz que qualquer um se dobraria para fazer suas vontades, se ela quisesse; e eu não poderia concordar mais.

― Poesia ― Reid sorri, tomando um gole do café.

― Preservação histórica ― Mabel contribui para a exposição. ― Eu e o de arquitetura fechamos uma parceria, vamos estudar o Coliseu juntos. É um pouco clichê, mas cá estamos. E você, Nora, já tem algum projeto em mente?

Nora olha de soslaio para mim. Não faço muito mais do que piscar algumas vezes em negativa, então ela dá de ombros de maneira divertida.

― Por enquanto não, estou esperando alguma inspiração divina ou uma música aleatória aparecer na playlist. Não tem coisa melhor que música aleatória dando ideia para escrever.

Ei! Bem, isso é verdade, mas falando assim parece ofensa.

― Além de que Diana é minha fonte eterna de inspiração aleatória ― finaliza ela, se deitando em meu colo.

Sorrio e dou uma piscadela para ela. É inevitável lembrar do dia em que nos conhecemos.

 

No que retornei à Terra das Rosas Selvagens, para comprar a minha tão falada "tinta especial", encontrei o senhorzinho aguardando no balcão. Confesso que fiquei um tanto decepcionada por ele não estar atrás de uma cortina de fumaça dando uma de Mestre dos Magos novamente, mas minha decepção passou com o sorriso enorme que ele abriu ao me ver.

― Boa tarde, dona quietinha! Como vai hoje? Cuidando bem da maquininha?

Acenei positivamente com a cabeça, procurando meu celular na bolsa. Ele colocou os óculos quase caindo do nariz para ver o que reservava; quando mostrei a foto que tirei da produtividade de Rosas Selvagens ⎼ apenas as folhas de papel, porque eu não ousaria mostrar mais do que isso ⎼ pude observar seus olhos brilhando.

― Ah, eu sabia que 'cê iria cuidar bem dela. Que bom que 'tá dando certo. E eu encomendei sua tinta, chegou anteontem. Quer dar uma olhadinha?

Assenti, indo para trás do balcão para que o senhor me ensinasse como trocar a tinta da máquina quando ela acabasse. Pensei ser mais complicado, porém nem tudo que era antigo era um bicho de sete cabeças. Prestei toda atenção possível e fiz as anotações de manutenção, me perguntando como que uma pessoa poderia guardar tanta informação dentro de si. Quando me dei por mim, eu queria passar um dia inteiro na loja. Ficar escutando aquele senhorzinho tagarelar sobre tudo era meu novo passatempo favorito ⎼ agora, um bem-vindo! 

Me oferecendo um café no escritório, ele foi me contando:

― Minha neta tem a sua idade, sabe? Ela é que nem eu: fala mais que a boca, mas é boa gente. 'Tá lá nos fundos, estudando. Eu teimo com ela que ela precisa estudar e sair dessa cidade o mais rápido possível, aí ela faz tudo direitinho. Nora?

Acabo me escondendo atrás dele enquanto ele abre a porta dos fundos. Me deparo com uma cabeleira loira perfeitamente alinhada e lisa, diferente da bagunça que meus fios costumam ser, e olhos azuis cristalinos quase escondidos atrás de uma franja reta. A garota, Nora, ergue a cabeça para mim e, em seguida, lança um olhar desconfiado para o avô.

― Oi, vô… passei café fresco. Oi moça, 'tá bem?

Sorrio para ela, olhando para o senhor com uma expressão típica de "me ajuda aqui, por favor". 

― Ah, ela é quietinha assim mesmo. Acabou que eu nem perguntei como era seu nome, não é?

Rio sozinha, e engulo em seco. Nora nota o meu desconforto, até que faz a pergunta que vale um milhão de dólares vivos:

― Ai, vô, ela não é quietinha. Ela é muda, só! Pode falar, que eu entendo. A gente tem aula de linguagem de sinais em literatura. Eu explico pra ele o que você quer dizer, fica tranquila.

Todo o peso se esvai de meus ombros com a afirmação. É bom ter alguém que me entenda fora minha família e os professores. Olho para o senhorzinho com ânimo redobrado, anotando "Diana Davies" na nota fiscal com a marca d’água de rosas. O senhor analisa e assente com a cabeça.

― Muito bem, então… eu me chamo Garrett Fox, senhorita Diana Davies.

Meu coração se aqueceu.

Aquela foi a primeira vez que me senti em casa e bem com quem eu era.

 

― Que amor ― Mabel ri, acenando com a cabeça. ― Ah! Olha, aí vêm a Kiera e o Prince. Eles não se batem muito bem, é engraçado de assistir. Escutem só.

De fato, dá para escutar alguém se aproximando apenas pelo tom alto da voz. Imagino que Prince seja "o de arquitetura", visto que ninguém conhece o último integrante. Viro minha cabeça de leve para olhar, e posso distinguir Kiera revirando os olhos com um fervor inabalável.

― O que estou dizendo é que não precisa falar comigo como se eu fosse um cocô do chão, criatura. Eu só te perguntei se precisava de ajuda para tirar o lixo.

― E eu respondi que não precisava, onde é que você enxergou que eu falei com você como se fosse um cocô? ― Prince rebate, erguendo uma sobrancelha desafiadoramente. Kiera imita sua expressão comicamente, o que o faz abanar a mão num gesto de ignorância. ― Ah, vá catar coquinho, Kovu.

Todos nós rimos, e os dois se voltam em nossa direção. A discussão estava tão acalorada que mal repararam que estávamos ali. De certa forma, consigo imaginar uma amizade florescendo em algum momento do semestre que passaremos juntos. Kiera nos dá bom dia, faz as apresentações para Prince e se senta ao lado de Mabel.

Compartilhamos conversas triviais ⎼ afinal, ainda estamos nos habituando uns aos outros e à cidade ⎼ e, uma vez finalizado o café da manhã, descemos as escadas para explorar nossos escritórios na Università. Olho tudo ao meu redor, assimilando como até mesmo o ar daqui é diferente do de Sedona. Mesmo entre estudantes atarefados e correndo de cima à baixo, sinto a calmaria invadindo todos os meus poros.

Annabella nos cumprimenta de longe, acenando para que esperemos antes de subirmos para os escritórios no terceiro andar. Espero que pelo menos aqui tenha um elevador, porque meus joelhos daqui a algum tempo vão pedir socorro absoluto… 

― Bom dia, meus bilhetes premiados ― Annabella sorri exageradamente, me lembrando as mulheres das propagandas de venda de cintas modeladoras. Santo Deus. ― Como vão hoje? 

― Vamos bem ― Mabel responde por todos nós. Eu que não seria, né? ― E você, Annabella?

― Muito bem, florzinha. Antes que subam, eu queria dizer encontramos o atrasado! Ele acabou de se acomodar no quarto. Algum de vocês poderia ir buscá-lo, por favor? Aí vocês voltam e eu mostro o caminho de novo.

Como estou mais atrás, me voluntario. Não é como se eu fizesse parte dos escritores, aparentemente, então só estou de vela na coisa toda. Nora me olha com cuidado, então sorrio para mostrar a ela que está tudo bem. Giro nos calcanhares com meus tênis gastos favoritos e volto pelo caminho que fizemos.

Percebo que reclamei muito cedo dos meus joelhos, porque escuto o elevador ao longe. Resmungo, subo todos os andares a pé e me rendo ao elevador na volta. Se bem entendi, os apartamentos ficam por ordem de chegada, então deve ser o de frente com o nosso. Bato na porta e aguardo. 

Penso que deveria ter aguardado mais longe quando a porta vem de encontro a mim, com força. Sou atingida bem no nariz e, apesar de ele não ser tão grande, dói para um santo caramba. O indivíduo ⎼ que já começo a me arrepender de ter vindo buscar ⎼ emite um "ai meu Deus" em profundo desespero. Afago meu nariz com cuidado; por sorte, não sangrou nem nada.

― Moça, me perdoa ― o garoto pede de imediato, me fazendo olhar para cima perdida sobre quem eu sou ou o que vim fazer ali. ― Machucou? Quer um gelo?

A nova figura tem traços físicos semelhantes aos meus: pele bronzeada, olhos castanhos brilhantes e um cabelo que tenho a impressão de precisar de um pente. A barba está por fazer, e os olhos inchados de sono, mas algo em sua expressão me passa confiança. Por isso, nego com a cabeça.

― Não para "não machucou" ou "não perdoo"? ― ele ri de nervoso, coçando a nuca.

Para o primeiro. Não machucou. 

Eu até tento, mas sua expressão é de constrangimento. Não o constrangimento por ter sido encurralado e não saber o que fazer, está mais para o constrangimento de estar frustrado. Esse eu jamais presenciei. Normalmente as pessoas não conseguem falar comigo e não se importam que isso possa ser antiquado em pleno 2017. Ainda temos muito a caminhar, e tudo bem.

― Ah, desculpe… eu não falo linguagem de sinais… só estou dando gafes hoje, não é? 

Rio de sua reação, e sinalizo para que ele me arranje alguns papéis. Ele escreve, isso não é impossível de se arranjar. Nora diz que para tudo dá-se um jeito, menos para a morte. O garoto volta para o apartamento com a mesma velocidade com que me atingiu com a porta no nariz, com um bloco de notas e uma caneta. Aprovo com a cabeça e, enquanto vou escrevendo o que quero repassar, ele dá um pigarro.

― Meu nome é Elio, mas não como em Me Chame Pelo Seu Nome ― ele ri da própria piada, arrumando os cabelos com a ponta dos dedos. ― Só… Elio. E você?

Anoto isso no final. Viro o bloquinho para ele. "Annabella me pediu para vir, ela está mostrando os escritórios. Diana, mas não como em Mulher Maravilha. Olá!"

― Ah! Claro, aquela mulher é pura energia, é difícil acompanhar cheio de sono… muito prazer, Diana ― Elio sorri, mais confortável. ― Podemos ir indo? 

Assinto com a cabeça, sinalizando com o dedo para que ele espere um pouco. Abro minha bolsa com o resto do café na garrafa e ofereço a Elio. Seus olhos brilham como se eu tivesse oferecido um bilhete premiado, e não dá para não achar graça de seu desespero em matar a bebida como se fosse um shot de tequila. Guardo a garrafa sorrindo, feliz por ter sido útil alguma vez.

― Obrigado, era exatamente isso que eu precisava. Olha, eu… juro que aprendo a entender o que você está dizendo. 

Ele me devolve o bloco, e eu mordo meu lábio inferior ao raciocinar no que posso responder.

"Não tem problema, eu tenho uma tradutora".

― Mas não é a mesma coisa ― Elio rebate, insistente. ― Eu quero falar com você, não através de uma tradutora. Não estamos brincando de telefone sem fio. Sem ofensas para a tradutora, é claro. Ela deve ser… muito legal.

Dou de ombros, mas sorrio em confirmação. Vamos andando, e eu praticamente imploro para irmos pelo elevador. Sei que estamos com pressa, mas hoje estou com um corpo de uma senhora de 90 anos.

― A propósito… as pessoas dizem que eu falo demais. Se for o caso, me avise, sim?

"Bem, e as pessoas dizem que eu não falo nada. Estamos quites?"

Elio gargalha, abafando o som sinistro do elevador de madeira. 

― Nossa, eu não deveria rir disso… que errado. Então está bem. A propósito, quem é você na fila do escritor desesperado? 

Com certeza, a mais desesperada. "Só acompanhante. Vim com a Artemis". Ele arregala os olhos.

A Artemis? Caramba, que massa! Mas acho que agora é um tanto solitário, não? Quer dizer… não é por ofender nem nada, mas… imagino que fica chato para você ser "acompanhante da Artemis" aqui, e não a Diana, né? 

Olho para ele, pensativa. Eu mesma pensar nisso é uma coisa, agora ter esse fato enunciado por uma pessoa de fora é diferente. Por toda a adolescência me acostumei a ser "a amiga da Nora"... talvez seja alguma espécie de sina. Por fim, opto por assentir a cabeça, desviando o olhar para a estrutura de madeira do elevador. Já Elio pigarreia, desconfortável.

― Enfim, eu vou… me esforçar para não precisar mais disso aqui ― ele finaliza, indicando o bloco de notas. ― É o mínimo. Veja pelo lado bom: agora eu não vou ter sucesso em pedir fofocas do pessoal restante, vou ter que comprovar tudo por mim mesmo.

Rio sozinha, pedindo o bloco para anotar uma última coisa. "Tem uma frase que gosto, que diz: 'suas atitudes falam tão alto que eu não consigo ouvir o que você diz'. Acho que serve, certo?". Daí, ele lê e tamborila com os dedos no papel e guarda o bloco de notas no bolso da calça. Por fim, anuncia olhando para mim:

― Tem toda razão. Ficarei feliz de escutar o som do seu coração, então.


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Notas finais do capítulo

~autora se fazendo de doida~ E no final, quem deu o palpite que ela fosse muda ganhou o jackpot. E cá vamos nós: quis colocar as falas em itálico para não escrever "gesticulou" toda hora. E também para lembrar que a característica principal da Diana não é ser muda. Isso é apenas uma condição, não uma limitação.

Dito isso, o que acharam dos outros escritores? E o que pensam sobre o jeito que a Diana e a Nora se conheceram? Me digam tudo, eu amo bater papo com vocês ♡
Até o próximo!



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