Sete-Estrelo escrita por sabrinavilanova, Nathymaki


Capítulo 2
Capítulo Dois - Don't Stop Me Now




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A coisa toda era para ser simples: entrar, roubar a maldita relíquia e sair. Fácil, rápido e sem problemas. Num cenário ideal, Shouto não teria dificuldade alguma com esse tipo de tarefa, não era algo para se orgulhar – ou talvez, naquele mundo, fosse –, mas sua destreza era algo de que tinha orgulho. Ainda podia ouvir o ressoar das botas do Capitão percorrendo piso enquanto, com a sua voz grave recitava as linhas que seriam a direção para o tão falado teste, o som se propagando pela escuridão, os olhos, atentos à expressão confusa daqueles que detinham toda a atenção para si, como se ele emanasse algum tipo de poder com aquelas palavras.

Lá no profundo há um lugar, que dista / Tanto de Belzebu, quanto se estende/ Seu sepulcro: Ali não penetra a vista ― ele começou, sem fazer um movimento sequer ao deixar que aquelas palavras confusas saíssem. ― Revela-o som de arroio, que descende/ Por brecha do rochedo escavara,/ Em torno serpeando, e pouco pende.

Shouto suspirou, sentindo a tensão perpassar seu corpo até chegar a ponta dos dedos das mãos. O tom de voz sussurrado seguia seu caminho até às orelhas cálidas do rapaz como se fosse um encantamento, feito especialmente para levá-los até o fim da linha, até o fim de suas miseráveis vidas. Denki soltou uma risada baixa ao seu lado, interrompendo o que era dito e murmurando para os rivais ao seu lado alto o suficiente para o Capitão escutar:

― Pensei que tivéssemos vindo aqui para nos unir a uma tripulação, não para ter aulas de poesia. 

Nenhum movimento dele indicava o que estava prestes a acontecer. Houve apenas o assobio do aço cortando o ar e, no segundo seguinte, uma faca afiada cujo punho verde de couro se encontrava amaciado pelo constante uso, se cravou bem ao lado de sua cabeça, fixando-se na pilastra na qual se encontrava displicentemente encostado. Alguns fios do cabelo loiro caíram com suavidade até o chão e só então os olhos arregalados se voltaram para o braço estendido do Capitão. 

― Eu apreciaria se não voltasse a me interromper ou na próxima não serão apenas alguns fios de cabelo, mas quem sabe aquilo que está grudado em seu pescoço. ― Kaminari engoliu em seco e assentiu. Então, aquele era Izuku Midoriya. Não era alguém com quem pudesse brincar. Os olhos verdes percorreram os demais, constatando a postura rígida e cuidadosa que mantinham, apreciando o fato deles terem entendido que o aviso dado valia para todos, para então voltar a se concentrar no que vinha dizendo. Respirou fundo e declamou a parte que faltava, sentindo um prazer especial ao ditar aquelas que há muito eram suas palavras mais caras. ― Para voltar do mundo à face clara/ Nessa vereda escusa penetramos:/ De nós nenhum de repousar cuidara.

E, então, Shouto piscou os olhos algumas vezes, percebendo a sonolência misturar-se com a ansiedade que percorria o seu corpo. A fala lenta lembrava-o vagamente das histórias contadas em um tempo longínquo em conjunto com a maciez das mãos de pessoas do passado. Ali ele percebeu, conhecia aquela história. Sabia o que acontecia nos próximos versos e, por isso, as palmas de suas mãos começaram a suar. O sepulcro, o sepulcro. Ele lembrava, queria não imaginar o que tudo aquilo significava para aquela missão. Assim, pôs-se a escutar os últimos versos daquele poema, olhando diretamente para os olhos verdes do Capitão, como se fizesse perguntas que nunca seriam respondidas.

 Vírgilio e eu, logo após, nos elevamos,/ Té que do ledo céu as coisas belas/ Por circular aberta divisamos: Saindo a ver tornamos as estrelas. ― Ele terminou e o silêncio que se seguiu pairou sobre os três como uma nuvem ameaçadora. De onde estava, Midoriya os assistia piscar lentamente, emergindo do transe a que tinham se submetido. Era divertido observar, ver nascer naqueles olhos o desespero em busca da compreensão, a tempestade que varria para longe da consciência toda a esperança que pudesse nascer. 

Ao menos, era isso que esperava. Um deles permanecia estoico, olhar fixo no seu como se o desafiasse a perguntar. Os cabelos ruivos caíam sobre o rosto, lançando sombras sobre as formas bem marcadas, encobrindo a feia queimadura que o olho direito exibia, os lábios contraídos enquanto a mente voava a sua frente. Talvez o houvesse avaliado mal ou talvez aquela afronta deliberada não passasse apenas de pura e simples estupidez. Fosse o que fosse, os três ainda permaneciam parados nos mesmo lugar, seguindo cada um dos seus movimentos.

― Então, o que estão esperando? ― A sobrancelha se ergueu, fazendo com que a testa enrugasse. 

― Mas… ― Mineta começou, engolindo em seco ao se calar imediatamente por lembrar do aviso dado pelo Capitão sobre interrupções indesejadas. Não tinha o menor desejo de morrer tão cedo.

― Mas…? O que esperam que eu diga? Sigam as pistas e me tragam o que eu preciso. Se o fizerem, estão dentro, caso contrário, nem se deem ao trabalho de aparecer. Meu navio está ancorado no Porto da Viúva, vocês tem até a meia-noite para aparecer ou partiremos sem vocês. 

― E quanto às regras? ― Shouto se pronunciou, aguentando o olhar do Capitão mesmo quando seu interior fervia em alerta, incitando-o, ordenando-o a fugir.

― As regras, meu caro? ― O sorriso, aquele mesmo sorriso diabólico que enviava calafrios por seu corpo retornou e ele se aproximou, um passo após o outro, até que os dois estivessem frente a frente, olhos travados, os corpos tremendo com a proximidade. ― Não existem regras para um pirata, não é? Façam de tudo para trazer o que acharem para mim. ― Seu hálito fez cócegas em seu rosto e ele cerrou os punhos, determinado a não recuar, a não demonstrar nenhuma fraqueza que pudesse ser usada contra si no futuro. Izuku o estudou por mais alguns segundos, o sorriso crescendo no rosto ao estender a mão e dar um  tapinha em sua bochecha. ― Bom garoto. ― E afastou-se, voltando-se para os demais que ainda não haviam se movido. ― Pois bem, mexam-se! Vocês só tem até a meia noite.

 

⚙⚙⚙

 

Shouto correu.

Ignorou o resmungo irritado das pessoas nas quais esbarrava e apenas correu. Não sabia exatamente do que estava fugindo, se era dos comparsas do pai que àquela hora já deviam estar a sua procura ― desertores afinal não recebiam nenhuma cortesia em seu tratamento ― ou se era dos arrepios causados em seu corpo por aquele capitão de olhos enigmáticos e energia soberba. Ainda podia sentir o poder que eles exerciam, a atração deliberada com que prendera a todos, rendidos diante qualquer que fosse o feitiço utilizado.

Estava claro para si que o poema se referia a um túmulo e o nome... Vigílio, fazia-o lembrar das histórias de um passado distante, uma provável referência a quem a sepultura pertencia. Por isso ele agora atravessava as ruas cheias, com o Sol do fim da tarde banhando suas costas. O cheiro da fumaça que entrava em seus pulmões fazia com que ardessem, o fôlego se perdia facilmente naquela dança mal coreografada que seus pés faziam. Sentiu mais uma vez o alarme que acometia sua mente, como se ainda estivesse fugindo. E ainda estava. 

Engoliu em seco ao notar o crepúsculo ao longe, sugando suas energias e fazendo com que o barulho incômodo em seus pensamentos aumentasse. O tempo estava passando e Todoroki tinha a leve sensação em sua nuca de que estava andando em círculos. Deixou que o olhar desbravasse o mar de pessoas que andavam nas ruas, aquele era um dia de festa, afinal, os preparativos estavam sendo feitos. As crianças corriam e pisavam em seus pés, homens parrudos passavam carregando barris e mais barris de bebidas para o festejo, que aconteceria quando a tarde chegasse ao seu fim.

 Forçou-se a parar e pensar, não poderia continuar assim, como um cachorro perseguindo o próprio rabo, muito menos tinha tempo para se preocupar com o que seus adversários pudessem estar fazendo ou se ao menos haviam decifrado o poema. Isso, o poema. O túmulo. Precisava encontrar um cemitério. Seus olhos vasculharam os arredores, vendo além das decorações festivas e das bandeirolas que atravessavam as ruas, mas a cidade era um caos tumultuoso e barulhento. Preciso sair daqui, pensou, preciso ver. A resposta para isso também era simples: se precisava encontrar algo, tudo o que tinha de fazer era subir.

Determinado, encaminhou-se para um dos becos adjacentes, conferindo com cautela se estava de fato vazio, para então enfiar as mãos nas saliências abertas na pedra bruta e se içar pelo muro das casas, ora apoiando os pés nas sacadas que se estendiam para fora das janelas, ora recorrendo ao telhado das casas mais baixas. 

Quando chegou ao topo, seu fôlego estava curto e os braços queimavam pelo esforço, mas a vista que tinha agora suplantava quaisquer dores que pudesse sentir. Os olhos fixaram-se nas ruelas estreitas ao longe, no tráfego de pessoas e, principalmente, no tom escuro dos cabelos de um rapaz em específico. Todoroki riu em meio ao cansaço, esperava que aquele fosse o idiota em que estava pensando e, ainda mais, que ele trouxesse a resposta que precisava. 

Avaliou a construção onde estava apoiado, uma forma alta e maciça de paredes escuras. A cruz que a encimava não lhe deixava dúvidas, era umas das casas do senhor espalhadas por ali. Aquilo chegava a ser engraçado para o rapaz, um homem que havia se rendido aos pecados da carne, agora pisava em território sagrado, esperava que seu débito com o inferno não houvesse aumentado por aquilo. Mas, de certa forma, estava até feliz, não pela igreja e, sim, pelo que ela simbolizava: se havia uma igreja ali, era certo que haveria um cemitério. Aquele bastardo também já tinha desvendado o enigma e estava bem a sua frente. As botinas enlameadas escorregaram em cima do telhado molhado pela chuva de mais cedo e aquilo fez com que seu corpo pendesse e ele desequilibrasse ali em cima. 

Porém, como num passe de mágica, uma mão o segurou acompanhado pelo bufar de seu dono, que fazia Todoroki parecer um passarinho de tão leve. 

― Eu esperava mais do que uma morte miserável assim do homem que enfrentou o Capitão. ― Os olhos piscaram divertidos enquanto o puxavam de volta para a segurança. 

― Que porra? Eu não ia cair! ― exclamou Todoroki ao livrar-se dos braços daquele paspalho. 

― Oh, claro, você tem razão, apenas ia dar um mergulho para cumprimentar o chão, não é mesmo? ― E acenou para o piso irregular que os espreitava.

― Você tem algum tipo de problema ou o quê? E que merda faz aqui?

― Bom, diferentemente de você, querido, eu estou muito bem na minha busca ― debochou com um sorriso zombeteiro na face.

― Não é o que parece. 

― E o que exatamente parece?

― Que você está completamente perdido, sozinho e precisando de ajuda. ― Riu, sem que voltasse o olhar para seu rosto. ― Será que você tem alguma ideia do que estava procurando, Sr. Espertalhão? 

― Espertalhão? Senhor? Me sinto até lisonjeado, Vossa Alteza Real. ― O corpo de Shouto se contraiu ao ouvir o apelido e ele se voltou para o outro sem se importar com a altura ou a possibilidade de cair. Novamente.

―  O que você disse? Do que me chamou?

― Vossa Alteza? Não deixe isso subir a sua cabeça, muitos nobres já perderam a deles por menos. ― E riu consigo mesmo, os olhos brilhando de modo enigmático. ― Então, por onde nós começamos?

― Nós? Quem disse que há um nós? Não preciso da sua ajuda.

― Tenho certeza que você não está aqui por nada. Sabe, eu tenho uma teoria sobre você. Quer saber? 

― Não, eu não quero, definitivamente não. ― O outro semicerrou os olhos cruzando os braços ante o peito. 

― Você não sabe o que pode acontecer até o fim do dia. Tenho certeza que você vai mudar de ideia. Até porque, aquele baixinho traiçoeiro acabou de desaparecer. ― Apontou para o ponto agora vazio no qual Mineta estivera apoiado instantes atrás. Shouto se ergueu de súbito. Toda aquela conversa o havia distraído, retirando o seu foco da sua verdadeira missão ali. 

― Merda! Isso tudo é culpa sua ― ele resmungou contrariado, tentando não dar um soco naquele… naquele… bobalhão!

― Então, podemos ir? Ou a madame vai dar uma de estátua e ficar aí esperando até que ele pegue o que é nosso? 

― Ainda não é nosso! ― murmurou agora com menos convicção enquanto avaliava o movimento na rua diretamente abaixo deles.― Não tem nada nosso aqui, não até acharmos o cemitério. 

― Oh! Então, estamos procurando um cemitério, hm? Sorte sua que eu sou a pessoa certa para esse trabalho, pode confiar em mim. 

Todoroki revirou os olhos, sem acreditar que estava na companhia de alguém tão idiota. E, quando pensou que não havia como piorar, ele apenas o chamou com um movimento de pulso seguido de um fraco “Me siga!” e se jogou no vazio. Deu um passo à frente, o equilíbrio sendo testado, a tempo de vê-lo atingir o próximo telhado em segurança. Ele o observou com paciência, mesmo que só quisesse empurrá-lo daquela estrutura insegura. Então, preparou-se internamente para saltar e prendeu a respiração em seu pulo, aterrissando no telhado da casa menor sem que tivesse o destruído. 

― Fácil, não?

Shouto o ignorou e os dois prosseguiram naquela dinâmica, aproveitando-se do fato de que as ruelas eram estreitas e a chance de cair para a morte, significativamente menor. As telhas se quebravam sobre seus pés e os grunhidos irritados e xingamentos os acompanharam por todo o caminho. A enorme construção se avolumava a frente e ambos diminuíram o ritmo, passando a observar os arredores com cuidado, atentos para possíveis emboscadas e armadilhas. Deram um pequeno salto até a última construção daquela rua e esperaram até que o homem que convenientemente carregava uma escada passasse por ali, apenas para tomá-la de suas mãos e descer dali ao som dos gritos de reclamação de seu dono.  

A noite já caíra por completo, lançando suas sombras pela cidade e criando nichos úteis que eles usaram de esconderijo para se aproximar. Como Shouto suspeitava, havia de fato um discreto par de portões envelhecidos guardando a entrada para um pequeno ajuntamento de lápides. O mármore branco parecia reluzir a pouca luminosidade, quase como se emanasse luz própria. O vento soprava, ecos distantes de vozes perdidas. Todoroki não acreditava em histórias de espíritos ou mesmo almas torturadas que retomavam seus corpos ― àquela altura apenas esqueletos ― para punir os vivos, por isso, empurrou as grades sem muita cerimônia não deixando de reparar no primeiro olhar vacilante que havia captado em seu indesejado companheiro.

― Medo de fantasmas? ― brincou, recebendo um olhar sério que não esperava dele.

― Você também deveria. ― Foi tudo o que respondeu antes de segui-lo para o interior.

Os túmulos eram bem cuidados, com grama verde e viva crescendo diante deles e flores deixadas em memória da saudade. Franziu as sobrancelhas para tais gestos, constatando não pela primeira vez a discrepância entre aqueles que detinham o poder e todo o resto, até mesmo na morte.

― O que estamos procurando? ― Kaminari se pronunciou, olhando para os lados como se esperasse algo ou alguém chegar ali. 

― O lugar de descanso final de Vigílio ― respondeu, coçando a nuca. Sua cicatriz estava o incomodando, o que era algo até que incomum para o rapaz. 

― Amigo seu? ― Shouto lhe lançou um olhar duro. 

― Apenas fique de olhos bem abertos, não sabemos o que pode estar nos esperando aqui e muito menos onde o terceiro está. Não pode ser tão fácil.

― E aí está! Aquela frase que sempre insistem em dizer logo antes de tudo piorar. Me pergunto por que me juntei a você…

Shouto foi impedido de responder por um arranhar desesperado. Puxou Kaminari para detrás de um dos túmulos e os dois espiaram pela borda, os olhos se detendo na cena macabra que se desenrolava. Mineta estava ali, caído ao lado de um buraco recém cavado, um gorgolejar entrecortado saindo pelos lábios, as mãos estendidas, puxando a lápide para mais perto como se esta fosse uma tábua de salvação, as unhas arranhando o mármore, deixando para trás linhas de sua passagem. No entanto, nada daquilo pareceu adiantar quando uma mão cheia de cicatrizes puxou uma de suas pernas. E acima dele, uma risada acompanhada de uma silhueta alta em cuja mão havia um brilho de prata. 

Não durou muito tempo e Shouto não ousou desviar o olhar, já havia visto aquilo diversas vezes em sua vida, era quase uma rotina no navio de seu pai. As cabeças decepadas dos prisioneiros combinavam estranhamente com o convés daquela embarcação, pelo menos, no ponto de vista do velho Endeavor. Aquela situação não era diferente, já que, entre as lápides daquele cemitério, reconheceu o sorriso infernal do homem ali presente, com uma espada na mão e uma vítima ensanguentada a sua frente. Houve um risco no ar e o brilho desceu contra o corpo, acertando a garganta e manchando a sepultura de um tom carmim.

Não houve mais som além do bater alarmado do coração dos dois rapazes escondidos. Respiravam o mínimo possível, temendo que a menor mudança, o menor dos ruídos, pudesse atrair a atenção daquele que podia muito bem significar o seu fim.

― Shouto! ― a figura infernal gritou. ― Apareça seu bastardo!

Ele sabia, desde o momento que o reconhecera, sabia o que ele estava fazendo ali, qual era sua missão. Não descansaria até que sua cabeça não mais fizesse parte do corpo. Estranhamente, não sentia medo. Não havia nada além de uma resolução fria e determinada de cortar de vez qualquer vínculo com o seu passado se desejava agora ter um futuro próprio, só seu. E se isso significava enfrentar aquele filho da puta, era isso que iria fazer. Puxou Kaminari pela gola e sussurrou o mais baixo que conseguia:

― Eu vou distraí-lo. Pegue a pá e termine de cavar, o que quer que nós estejamos buscando deve ser o tesouro mais valioso daquela cova. ― Os olhos dele estavam arregalados no rosto, de certo considerando-o tão louco quando Shouto achava que ele era. ― E nem pense em me trair, ou assim que eu me livrar dele, envio você ao inferno para fazer companhia.

Kaminari engoliu em seco, assentindo sem hesitação. Sabia notar a seriedade nas palavras de um homem só pelo seu olhar. A roupa foi solta e tudo o que pode fazer foi acompanhar enquanto Todoroki endireitava a postura e saia detrás do esconderijo, expondo-se para a morte. Primeiro, não houve nada, nem movimento, nem som e então, quase como se todo aquele suspense convergisse em seu ápice, um urro de vitória cortou o ar:

― Finalmente te encontrei, seu traidorzinho de bosta. ― A voz era como uma lixa e combinava exatamente com a aparência de seu dono. ― Pensou que podia escapar assim, não é? Se juntando com esses seus amiguinhos imundos que não valem um tostão furado. Você, mais do que todos, devia saber que não se abandona Endeavor e se vive para contar a história. 

E Shouto assentiu, jogando a cabeça para o lado ao sorrir. Era verdade que havia aprendido a lidar com os bastardos cruéis pelo tempo que passou convivendo com os mesmos daquela estirpe. Mas não poderia negar que o frio que lhe acometia a espinha não era novo e, por isso, nunca deveria deixar a guarda baixa. Sabia muito bem o que acontecia com aqueles que não davam a atenção correta, na verdade, tinha um belo exemplo próximo aos seus pés. O som dos chiados de Mineta ainda pairavam no ambiente quando viu o homem se mover. E os olhos heterocromáticos o seguiram em cada passo, esperando o momento certo de sair dali. 

As botas faziam um som estranho quando em contato com a terra. Não sabia se eram pelo material vagabundo com o qual foram criadas ou se era o próprio chão que não tinha compatibilidade alguma com o peso dos demônios. Porém, não passou por sua mente que aquilo poderia ser um auxílio dos deuses. 

A faca faiscou em sua direção, acompanhando o movimento dos braços longos e fortes, avançando até que o metal frio estivesse bem diante dos seus olhos. Shouto esperava por isso, mas ainda assim, a rapidez do golpe o atordoou, não era a toa que a taxa de mortalidade dele era tão alta, que esperança tinham seus inimigos quando nem mesmo do menor golpe conseguiam fugir? Felizmente os deuses lhe sorriam naquele momento, e suas botas de baixa qualidade deslizaram no chão no exato momento que a faca passava assobiando por sua cabeça. Estendeu as mãos a tempo de suavizar o baque e se impulsionou para frente mantendo sempre uma distância entre eles, a espada em sua cintura deslizou para longe, deixando-o desarmado para enfrentar um inimigo que não preceisaria de muito mais que as mãos para matá-lo.

― Está perdendo a prática, Vlad? ― zombou, esperando ter toda a atenção do inimigo focada assim de modo a atraí-lo para longe, esperando que o cabeça oca do Kaminari fizesse o que tinha de fazer. Só precisava sobreviver até lá. E por que não aproveitar para se vingar um pouco, não é mesmo? ― Não te chamavam de O Degolador? Mas ora, veja bem, minha garganta continua intacta. Os anos estão mesmo cobrando o seu preço, não é mesmo camarada?

Vlad rosnou, os dentes raspando uns nos outros, e avançou um passo desejando apenas trucidar aquele pedacinho de merda tagarela. Shouto sorriu, provocando-o, os passos recuando à medida em que o inimigo avançava. Logo sentia o portão frio do cemitério as suas costas e o tamanho ameaçador do gigante a sua frente. Chutou o metal o qual se abriu com um rangido, ecoando o baque agudo ao atingir as paredes laterais. Não esperou para ver se o outro o seguia, apenas deu as costas e se lançou pelas ruas escuras e vazias, torcendo para Vlad morder a isca.

Sabia que era uma estupidez dar as costas a um adversário, ainda mais quando este era um pirata, traiçoeiro e enganador, nenhum pouco lisonjeiro e respeitador das regras de combate. Mas também, quem disse que ele próprio o era? Sentiu o tremor das pisadas o acompanhar e riu para a noite por ter seu intento completo. Estava tão ferrado quanto imaginava, mas em seu interior sabia: aquela ainda não era sua hora. 

O vento frio cortava sua pele a medida em que o rapaz de cabelos ruivos percorria as estreitas ruas da cidade, escutando os sons altos do festejo ao longe. Ele desviou de alguns bêbados, evitando ao máximo entrar em becos sem saída. Tinha em mente que sua estratégia não era das melhores, mas não restava muito para si, quando, em um golpe malquisto do destino, o jovem deixou sua espada para trás. Munido de uma coragem estranha, Todoroki andou calmamente, observando com atenção os lugares para onde poderia ir. 

Sentiu o ar pesado entrar em seus pulmões e os dedos reclamaram pela dor. Não era hora para descanso, por isso subiu na sacada de uma das casas por ali, verificando com pouco cuidado se havia alguém no quarto onde entraria. Não esperava no entanto que o grandalhão o alcançasse tão depressa, mas soube no exato momento em que teve a perna puxada para baixo que aquela havia sido uma péssima decisão. Ele segurou com força no parapeito, cerrando os dentes ao sentir o ardor percorrer seus músculos que reclamavam de dor. Porém, mesmo que pusesse toda a sua concentração naquela tarefa, Vlad era implacável e, certamente, muito mais forte do que ele. As mãos se soltaram e o corpo pairou no ar com leveza por alguns segundos antes de se chocar contra a parede. Todo o ar foi expelido de seus pulmões e a visão borrou ao ter seu pescoço apertado por uma das mãos calejadas do homem à sua frente. 

― Quem é o velho agora, hein, seu bastardo? ― O hálito fétido atingiu suas narinas e ele tossiu, a mente ficando em branco, enquanto as mãos tentavam em vão afrouxar o aperto que o impedia de respirar. Mesmo que quisesse, não poderia responder. Os dedos prensaram-se contra os pulsos de Vlad e, antes mesmo que conseguisse se soltar, recebeu um soco na altura da bochecha. Ficou zonzo mais uma vez e tentou puxar o ar com mais força, como se sua vida dependesse daquilo, e dependia. 

O homem se afastou do muro, ainda segurando seu pescoço, agora com mais força que anteriormente. E Shouto hiperventilou, sentindo as forças deixarem o corpo pouco a pouco. Não pôde deixar de contemplar as belas nuvens escuras do céu noturno, elas cobriam as estrelas, tirando toda a beleza daquela pintura que era a noite. Mas, estranhamente, a Lua continuava vagando imperiosa sem impedimentos. E foi para ela que sorriu quando escutou aquele ruído. E mais outro, e mais outro, e mais outro. O arrastar dos pés, o tilintar dos brincos. Mordeu o lábio quando um barulho alto ― algo que lhe lembrava estranhamente o ruído de um canhão ― que ressoou em algum lugar próximo dali, tirando a concentração do seu adversário. 

Shouto levou a mão direita ao braço do inimigo, segurando com força o seu pulso. Viu as sobrancelhas claras arquearem e mandou-lhe um sorriso debochado. E sentindo-o afrouxar as mãos, levantou o braço esquerdo para o alto, girando o corpo impulsivamente para o lado direito e trazendo os dois braços ante o abdome. Foi uma diferença de milésimos de segundos até que seu punho fosse ao rosto de Vlad, acertando-lhe a têmpora esquerda. O homem não teve tempo de urrar pela dor antes que o rapazote deferisse um chute entre as suas pernas. O enrijecer de dor que perpassou o corpo do inimigo foi o que precisou para conseguir a brecha que necessitava para escapar. Não parou. Mal os pés atingiram o chão e Shouto já se encontrava correndo. O ar entrando dificultoso e a dor que o aperto causava ainda presente, aquilo de certo deixaria uma marca por vários dias. Cortou pelo meio da multidão, desviado das crianças que corriam alegres, atordoado demais para refletir para onde estava indo e se aquela altura o maldito Denki Kaminari já havia conseguido o que quer que estivessem procurando. 

Tropeçou. O movimento das pessoas lançando seu corpo em qualquer direção. Esticou a cabeça para trás, procurando sinais de que Vlad ainda o perseguia, mas sem vê-lo em parte alguma. Não demorou muito para que ouvisse um assobio cortar o ar, quando em uma movimentação estranha, viu uma carroça atravessar as ruas cheias de pessoas. Engoliu em seco, cansado demais para saber o que era e dolorido demais para se mexer. Esperou apenas alguns minutos até que a tontura passasse e viu o fogo azul e laranja crepitar na fogueira disposta no centro daquele festejo. 

E, antes mesmo que pudesse observar o local, sentiu suas vestes serem puxadas com certa brutalidade. Deuses, não era o seu dia de sorte. Lambeu os lábios e girou os calcanhares ao cerrar os punhos em uma preparação mental para esmurrar o enxerido. Mas sua mão parou no ar quando, com aquele olhar brincalhão, Denki lhe sorriu. 

― Precisa de ajuda? ― a voz debochada familiar veio de onde sentava o condutor. Shouto ergueu a cabeça, afastando os cabelo suados do rosto, e se surpreendendo com a onda de alívio que sentiu ao vê-lo ali, piscando um olho para si enquanto estendia a mão para ajudá-lo a subir, abrindo espaço no banco ao seu lado para este sentasse.

― Você pegou? ― O loiro sorriu travesso e abriu o casaco puxando de lá um velho pedaço de papel de aparência velha e frágil, enrolado e amarrado com uma fita vermelha. 

― Que a caçada comece, meu companheiro. ― E apeou o cavalo, recebendo xingamentos da população que precisava abrir espaço para a carroça passar sob o perigo de ser pisoteada. ― Aqui, trouxe um presentinho para você não ficar tão chateado por não ter estado lá. ― Estendeu-lhe um pequeno objeto dourado e Todoroki o pegou sem hesitação. Ainda era um pirata, afinal. Não recusaria nada que fosse de valor para si em algum momento. E aquilo parecia valer uma boa quantia. 

― O que é isso? 

― Um dente. ― Kaminari riu com a expressão desgostosa em sua face, tentando concentrar-se porcamente na tarefa de controlar o cavalo. ― De ouro. Assim pode contar ao Capitão como eu majestosamente desenterrei e trouxe o tesouro que ele tanto desejava, enquanto você ficava brincando de pega-pega pelo festival. 

Shouto estalou a língua no céu da boca, recebendo um sorriso zombeteiro em troca. Kaminari se apoiou contra a carroceria, olhando para os lados e suspirando na espera infinita para que aqueles dois homens bêbados passassem. 

― O túmulo era bizarro ― ele mencionou, com o olhar distante, e tirou algo do bolso. ― Os dois foram enterrados juntos e tinha uma criança, acho que um bebê. E… bem, isto. 

Deixou que a corrente se esgueirasse por entre os dedos, mostrando um pingente, uma pedra com a mistura de tons de roxo. Não sabia se já havia visto algo assim antes. Mas pouco importava naquele momento, quando os olhos cravaram naquele objeto e os pensamentos começaram a bater contra as paredes de sua mente. Eram aristocratas, de certo. E esse pensamento fez com que ele engolisse em seco. 

Pegou o colar com rapidez, guardando-o no bolso. Observou Kaminari sorrir sereno, provavelmente pensando que era um ladrão. Àquela altura, a maior parte do festejo já ficava para trás, com eles se dirigindo para o porto onde o Capitão lhes dissera estar atracado o navio. Permitiu-se respirar por um momento e até mesmo ousou ter esperança de que eles haviam conseguido fugir e em breve se tornariam membros da tripulação. Porém, é claro que os deuses não facilitariam a vitória dessa forma e algo maior sempre apareceria para esmagar as esperanças formadas. E, nesse exato momento, um golpe forte atingiu a lateral da carroça, fazendo-os estremecer com a pancada. O ruído que se seguiu era o pior som possível para eles, um rachar de madeira que indicava que uma das rodas se partia. Pior do que isso, era a cara feia e a cicatriz em forma de “X” que se destacava no rosto ensanguentado de Vlad.

O demônio ressurgia para atormentá-los logo quando estavam tão próximos. Já podiam ver o enorme navio ancorado e, embora as velas negras estivessem recolhidas, parecia mais majestoso a cada passo que se aproximavam.

Com uma troca de olhares, os dois assentiram e se jogaram para fora da carroça, rolando pelo chão e iniciando uma corrida frenética. Um urro de puro ódio foi ouvido às suas costas e um pedaço da roda ― completamente quebrada agora ― passou voando por entre suas cabeças. Eles se afastaram, abrindo um espaço entre seus corpos e, pela segunda vez naquela madrugada, Shouto se viu em uma perseguição. Não sabiam o quanto mais seu corpo cansado e machucado aguentaria, mas supunha não ser muito. Estava cansado de correr, cansado de sempre estar fugindo, o tempo inteiro apenas correndo como um covarde faria. 

Decidido a não deixar aquele ser o seu fim, firmou os pés no chão e virou-se de lado de modo a puxar a espada que Kaminari trazia presa à cintura, ganhando um olhar arregalado e confuso em troca. Indicou com o queixo que ele continuasse, enquanto se posicionava de frente ao incansável inimigo.

― Venha! ― gritou com todo o ar que lhe restava nos pulmões. ― Venha me enfrentar se tiver coragem, seu desgraçado!

E ele foi. Avançou como um canhão desgovernado, todo força e fúria, a faca reluzindo em sua mão, cantando pelo sangue de Shouto. O rapaz ergueu a espada, não havia mais plano, não havia mais salvação milagrosa agora, não havia nada além dele e Vlad naquele minuto. O ínfimo minuto que poderia mudar sua vida.

O grito saiu de sua garganta, os dois próximos o bastante agora para se atingiram, enquanto a espada descia em um arco gracioso e mortal visando a garganta daquele que era conhecido como Empalador. Seria mesmo uma ironia do destino ser esta a causa de sua morte. Porém, seria uma ironia ainda maior, não ser Shouto aquele destinado a matá-lo. O golpe errou seu alvo e atingiu a barriga do oponente. Todoroki desviou e sentiu a faca penetrar em seu braço direito. Girou a espada e tentou reverter o movimento para cima, conseguindo abrir um bom talho na bochecha dele.  

Infelizmente, não foi o suficiente para vencer. Teve o pulso agarrado e puxado para a frente. Completamente imóvel, Vlad abaixou a cabeça para sussurrar em seu ouvido, arrancando a faca de seu braço e direcionando-a para o seu pescoço e para o fim daquele embate.

 ― É o fim, bastardo.

Shouto fechou os olhos, aguardando o cantar suave do metal e o sopro frio que diziam ser a morte.

― Tirou as palavras da minha boca. ― uma nova voz anunciou, mais suave e ritmada, com um quê de ferocidade deliciada que lançava arrepios por sua coluna.

Um único tiro foi ouvido e logo todo o aperto que o prendia se afrouxou, enquanto o corpo de Vlad pendia para trás sem mais se mover, um único buraco marcado na testa. Shouto levou a mão ao ferimento que sangrava e se virou sem acreditar em seus olhos ao encarar o homem, parado bem ali a soprar o cano de uma pistola estranhamente comprida, com o primeiros raios de sol a iluminá-lo. 

― Um passarinho me contou que vocês precisavam de uma mãozinha. ― Os olhos verdes faiscaram em meio as sardas que se espalhavam por seu rosto. ― Além disso, eu pensei ter dito que só tinham até a meia-noite.

Sentado em um barril, com uma perna jogada sobre outra, o Capitão Midoriya lhes lançava um sorriso cruel, deleitando-se com a visão do homem morto a sua frente. Os dedos ainda seguravam a arma, de onde saía fumaça pela pólvora. Estava mais que claro que aquele homem não se importaria em tirar a vida de um ou dois. Um verdadeiro pirata, Shouto pensou, piscando os olhos ao voltar à realidade cortante. 

― Vocês têm muita sorte, realmente ― outro alguém falou, enquanto Midoriya colocava a arma em algum lugar de seu colete. Shouto escutou Kaminari engolir em seco e girou os calcanhares para ver quem era a voz feminina que havia conversado consigo. 

A primeira coisa que viu foi a faca, brilhando ante o pescoço de Denki, o olhar assustado de seu companheiro mostrava que a proximidade daquele objeto não era nada segura, por isso, Todoroki não se mexeu, apenas semicerrou o olhar esperando para o próximo movimento da mulher. Não sorria, mas seus olhos sim, prova de que aquela cena era mais como uma sessão de divertimento para ela. As tatuagens em seus braços eram tão chamativas quanto as cicatrizes que se estendiam pelos mesmos, um conjunto de arabescos intrincados, uma mistura de linhas, ramagens e ondas que serpenteavam por sua pele, impossíveis de se deixar notar quanto mais de desviar o olhar.

Ela revirou os olhos com a atenção recebida e, num rápido movimento, enfiou a mão pelo casaco de Kaminari, explorando os bolsos ocultos a procura de algum pertence que a agradasse. Não foi de muita surpresa quando o objeto encontrado em questão fosse aquele papel antigo, o mapa que haviam achado. A mulher de cabelos castanhos o soltou, sorrindo zombeteira ao entregá-lo ao Capitão, enquanto este observava vagamente o movimento dos dois. O olhar satisfeito de Izuku fez com que o estômago de Shouto revirasse, percebendo qual o objetivo de toda aquela missão.   

― Vocês nos usou para fazer o seu trabalho sujo! ― acusou, encarando aquele sorriso satisfeito e os olhos verdes que ainda eram um território perigoso. Estes o analisavam agora sob um ótica fria.

― E eu consegui, não foi? ― Ele apenas riu, os dedos apertando o pergaminho em sua mão com um descaso deliberado. 

― Foi tudo parte de uma grande estratégia então? Havia mesmo um teste?

― Era um teste. ― A voz endureceu, mas os olhos logo se suavizaram ao apontar para o navio. Pessoas surgiam no convés, subindo dos cômodos inferiores para observar os recém-chegados. ― Bem-vindos a tripulação do Plus Ultra. Acomodem-se bem, espero que sua estadia seja longa, eu detestaria pensar que fiz a escolha errada.


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Notas finais do capítulo

Hello, marujos!

Bom, o que acharam do capítulo?

Kaminari tem uma pessima mania de ser palhaço nas horas erradas. E já podem imaginar quem é a moça da adaga?

Bom, espero que tenham gostado!

Até o próximo capítulo!

(Sabrina Vilanova)



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