A Contenda Divina escrita por Annonnimous J


Capítulo 29
O Lado do Soldado




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/786912/chapter/29

Sem perceber, Mariah engole em seco e ajeita seu corpo com a tensão que começou a pairar no ar. Em seu interior, a curiosidade e o medo disputavam  espaço, ela se sentia a ponto de dizer para ele não se explicar, mas se manteve calada, com os lábios formando uma linha tensa, totalmente atenta.

Shura respira fundo, dando um tempo demorado para si de olhos fechados. Quando os abre, suas írises perderam o brilho, como se a sua mente tivesse viajado para outro lugar

— Lembra quando disse que confiança era o mais importante em uma dupla para que tudo corra bem? – Mariah assente, sentindo um peso grande se formar em seu estômago – se eu... lhe dissesse que matei meus melhores amigos... como reagiria?

Enquanto a olhava diretamente, os olhos de Shura subitamente brilham mesmo do lado contrário ao pôr do sol, um brilho feral, inumano, nada parecido com um semideus feito à imagem e semelhança de seus adoradores terrenos, Mariah só tinha visto isso no início da semana, quando se conheceram em meio a uma batalha. Seu sangue gela em um segundo, ela se sente diante de um lobo cinzento.

— Shura, - ela gagueja, sem saber se deveria mesmo responder à pergunta - eu não... não posso... acreditar.

— Bom, pois foi o que fiz – ele diz, com uma voz fria e distante, finalmente perdendo aquele olhar mortal.

— Mas... como? – pergunta a garota, com os olhos rolando de um lado para o outro e o queixo caído, incrédula. Subitamente suas mãos pareciam a incomodar – deve haver uma explicação... não é?

Shura assente, devagar.

— Mariah, quer realmente saber o que aconteceu comigo?

— Eu quero – responde ela da forma mais decidida que consegue, fazendo o possível para esconder sua surpresa.

Shura vasculha uma vez mais o lugar com um olhar perdido, como se procurasse as palavras entre as pedras que ainda restavam de pé naquele andar. Enquanto seu pomo de Adão sobe e desce, ele se inclina para frente e inicia sua narrativa, focando em algum ponto atrás da garota.

— Quando eu era vivo, - começa ele - fazia parte de um esquadrão de aviadores no lado ocidental da segunda guerra mundial. Na verdade, fui mandado para lá no final dela, mas vamos começar do início. Eu era americano, morava em Nova York e três anos antes de servir, me casei com uma descendente direta de japoneses, seu nome era Himiko.

Por um segundo, uma luz terna dança nos olhos de Shura e o calor no peito de Mariah retorna, pelo menos até suas aulas de história voltarem à tona em sua mente.

— Depois de alguns meses, tivemos uma filha linda chamada Asuna, - continua ele, entrelaçando dos dedos e aproximando mais o rosto de Mariah - mas ao contrário do que pensávamos, não conseguimos ir muito além de alguns meses tranquilos de casamento. Depois do ataque ao porto de Pearl Harbor eu fui chamado para servir na Europa e ela teve que fugir para o Japão com medo de represálias e de acabar nos albergues em que estavam enfiando os japoneses da época, a loja de seus pais chegou a ser destruída em um dos protestos.

— Shura, eu sinto muito... – diz Mariah, que é agradecida por um sacudir de cabeça de leve.

— Desde então, toda a notícia que eu tinha dela era uma carta que ela me enviou e uma foto com ela e a nossa filha, ainda em seu colo.

Mariah escutava tudo atenta, gravando cada expressão, cada palavra, cada movimento do rapaz enquanto ele contava o que acontecera, ela podia jurar que por um segundo o lobo se empalideceu. Ele continua:

— Com o passar do tempo, a saudade apertava cada vez mais e o medo de não voltar para elas... era enorme à medida que eu via meus companheiros sendo abatidos. Vou lhe poupar das lembranças que tenho, mas tente imaginar que um dia você acorda, vai comer em uma grande sala com dezenas de outros rostos amigos e na manhã seguinte, metade da sala tem cadeiras vazias viradas sobre as mesas.

Mariah nem respirava, escutando o que o homem lhe dizia e realizando tudo em sua imaginação, como em um filme. Nela, um Shura jovem, estranhamente parecido com o protagonista de Top Gun se gabava de suas proezas durante a manhã para uma grande mesa de madeira, com outros pilotos e no dia seguinte, o mesmo Shura Cruise se sentava em uma mesa vazia.

Nem mesmo seu bom humor interior era capaz de salvar a imagem.

— Graças a um ou dois feitos na Europa, - continua Shura, suprimindo o que para Mariah parecia um meio sorriso, agora ela se lembrara da capacidade do semideus de ler sua mente - eu ganhei uma indesejada promoção e com ela, uma mais indesejada extensão de meu tempo de serviço. Fui mandado para a Ásia, para conter a ofensiva japonesa por ali. Na viagem para o oriente, eu tentei contatar as duas novamente, mas sem sucesso. Isso se repetiu por semanas. – Shura suspira – Depois de muito tentar, me acalentei na ideia de que elas estavam escondidas na casa dos avós de Himiko no interior e por isso não podiam me responder. Porém, certo dia, saí para uma volta de reconhecimento em uma das ilhas vizinhas, era quase uma rotina voos assim, mas isso não era o pior. Assim que eu cheguei da missão, entrei em meu dormitório e percebi que uma carta fora colocada sobre meu criado mudo: sem remetente, sem nomes, apenas um envelope em branco, que dentro continha uma rápida carta em japonês, um tecido de duas cores e uma foto, para minha surpresa, de Himiko e Asuna. Eu olhei a foto por bons minutos, ela parecia bem, nossa filha estava um pouco mais crescida e elas estavam tão lindas como sempre, achei que ela me mandava boas notícias, mas quando li a carta... – ele faz uma pausa, ódio dançou em seu olhar e Mariah teve a nítida impressão de a luz do sol que banhava suas costas começou a tremular, como em uma superfície quente – agentes do regime imperial do Japão a tinham pego por ser casada com um americano e para que eles não a matassem eu deveria fazer algo que eles pedissem. Os desgraçados deixaram bem claro que possuíam espiões entre a população local e dentro de nossa base, se eu tentasse algo, saberiam e seria o fim delas.

Mariah se sentia culpada por algum motivo, sua cabeça ameaçava começar a doer e seu estômago revirava ao imaginar tudo, naquele instante, praguejou pela sua imaginação e sua empatia.

— Para mostrar que eu tinha entendido o recado e cooperaria, deveria amarrar o tecido vermelho e branco em minha janela. – Ele olha rapidamente para sua roupa e Mariah sente os dois tons a rodeando subitamente, indo parar nas vestimentas de Shura - Nunca odiei tanto duas cores como naquele momento. Uma tortuosa semana depois, chegou o pedido: derrubar minha esquadra para que eles pudessem atacar a nossa base sem maiores problemas.

O semideus engasga com as palavras e faz uma pausa para engolir o bolo que se formava em sua garganta, ele se lembrava bem do que ele fizera e tudo parecia voltar à tona, era como se ele estivesse naquele cockpit novamente. Ela o fitava aturdida e mal percebe quando ele volta a falar.

— O medo de perde-las não me deixou outra escolha, então aceitei o acordo. Tudo foi organizado e em um dia de chuva meu grupo foi mandado para patrulhar a ilha. Era a oportunidade perfeita. Eu avisei a inteligência japonesa secretamente pela frequência de rádio que os controladores americanos na ilha não conseguiam capitar e quando estávamos na parte mais longa da volta... – Shura para, com a garganta novamente oscilante, seus olhos estavam marejados -  eu atirei contra eles a sangue frio, por trás, como um covarde... como um maldito traidor. Cacei os que não consegui derrubar no primeiro ataque até que não sobrasse mais ninguém no ar, ninguém além de mim e aquela maldita chuva pesada.

Mariah se sentia mal por dentro pelo seu protetor, mas não sabia como agir, talvez nem ele soubesse.

— Sandy, James, Ryan e Marc. Eu vi seus aviões caindo um por um, eu escutei suas vidas acabando através do sistema precário de rádio que tínhamos uma por uma, lembro de cada vez que eu apertei o gatilho do manche, da vibração das metralhadoras, do som dos disparos, as linhas em espiral que eles traçavam na chuva, eu me lembro, de tudo...

— Shura, não precisa continuar – Mariah diz, se aproximando dele o suficiente para tocar as costas de sua mão que se entrelaçava na outra – isso... isso é muito... me desculpe por perguntar.

— Tudo bem – ele responde voltando a olhar para garota, seus olhos pareciam mais marejados que antes, mas era como se ele não se importasse – estamos juntos nessa, então eu acho que você merece saber, merece me entender um pouco mais, para que confie em mim como confia na Eyria.

Mariah sente seu rosto corar novamente e seus olhos ardem, não fazia ideia de como ele se sentia, nem como via a relação das duas. Shura envolve a mão da garota nas suas e as pressiona de leve sem mesmo perceber, era a primeira vez que a tocara com real ternura.

— Sabe o que é irônico? Eu me lembro de tudo, - ele continua, piscando para que lágrimas não caíssem - exceto o que meu último amigo tinha me dito enquanto caia. No fim de tudo, eu me agarrava desesperadamente à única coisa que me restava: minha família, na esperança de que agora estariam a salvo.

— Você sacrificou tanto por elas...

Ele ri, de forma amarga.

— Sim, mas essa não é a pior parte, garota – um calafrio percorre a coluna de Mariah - quem me convenceu a trair minha segunda família, também armou uma armadilha para mim. Assim que eu subi para me encontrar com eles como o prometido, eu levei tantos tiros que não sentia mais nada apesar de continuar consciente. Foi como um castigo imediato, um carma sinistro por tudo que tinha acabado de fazer, eu vi toda minha queda e senti toda a asfixia da fumaça e de meus pulmões perfurados, cheguei até mesmo a ouvir o som do impacto por um segundo antes de morrer de vez.

Mariah o olhava com atenção, ele parecia frágil, mas não derrotado. Caído, mas ainda enérgico, como alguém que sabia que tinha ido ao fundo do poço, mas ainda precisava terminar algo e não pudesse descansar antes disso. Talvez ele não fosse tão cabeça dura, afinal e sim apenas alguém que se agarrou desesperadamente a uma esperança, algo que o motivava mesmo após tudo isso.

— Mas... – ele fala, tirando a garota de um estado de contemplação – eu estaria mentindo se dissesse que isso fora tudo que eu presenciei na queda.

— Teve – Mariah sentia medo de perguntar, mas sua curiosidade era tão forte quanto era inconveniente – mais algo que você viu? Enquanto caía?

— Sim – Shura responde, sacudindo a cabeça – Minha queda, foi mais que literal, enquanto caía, era como se tudo que eu fosse, tudo que eu tinha sido e feito, fosse arrancado de mim junto com a chuva e a fumaça da minha máquina. Durante a queda, eu a vi Mariah, diante de mim e naquele momento, naquele maldito momento, eu percebi que tinha me condenado e a condenado desde o início. Ela não me deixaria fazer isso, ela teria me convencido de que estava bem e que eu deveria cumprir minha missão pelo meu país natal e pelo país que a acolhera. Ela faria isso mesmo sabendo que era mentira, só para não me deixar preocupado com ela. Eu não tinha a salvado, eu havia a condenado, condenado nós três. E aquilo, Mariah, foi pior que a dor que sentia, foi pior que ter assassinado meus melhores amigos, meus irmãos. Eu a tinha matado, junto com a minha filha, puxando o gatilho daquele manche, eu puxava o gatilho da arma que estava apontada para as duas. Eu matei meus maiores amores.

Mariah sentia sua boca seca, suas mãos pareciam suar e seus olhos ardiam mais ainda, ela podia quase tocar a dor do semideus de tão espessa ao seu redor e se assustava com sua força em não desabar, de fato, ele parecia mais determinado agora que contara sua história. Como se recordasse de seu objetivo de existir.

— E o que me motiva nesse torneio – continua Shura com a voz um pouco menos carregada - é a vontade de me desculpar com meus amigos e ir ao túmulo da minha mulher para vê-la pela última vez.

O coração da garota se aperta e ela finalmente deixa uma lágrima rolar pelo seu rosto, sendo rapidamente aparada pelo polegar áspero de Shura.

— Então... seu pedido é um dia na Terra só para fazer isso? – Pergunta Mariah.

O semideus seca uma segunda lágrima, dessa vez no outro olho, com uma das falanges do indicador e depois volta a repousar sua mão na de Mariah, que agora apertava um pouco mais forte a sua.

— Sim, - ele responde, simplesmente - eu não queria lutar mais quando cheguei aqui, sobretudo porque os desejos das pessoas que derrotamos aqui são igualmente fortes, mas já que tenho essa oportunidade quero pelo menos fazer de tudo para ter a chance de me redimir pelos meus erros com aqueles que foram tão importantes para mim. Por isso reneguei meu nome de semideus, Agni, para o nome de um demônio, Shura.

— Shura, eu...

— E o meu é rever uma pessoa muito importante – diz uma voz vinda do andar de baixo.

Shura por pouco não quebra o pescoço de tão rápido que o vira e Mariah novamente sentiu o medo correr pelas suas veias, mas ele logo passa assim que veem a figura que acabara de falar.

Abaixo deles, encostada na escada e de braços cruzados estava Eyria, ela não os encarava, mas era perceptível sua atenção na conversa. A semideusa estava tão maltrapilha quanto Mariah lembrava e sua postura um pouco torta, recostada na parede, junto com o leve brilho da magia de cura, mostrando que ela ainda não estava em sua melhor forma.

— Eyria? – Mariah estava surpresa pela furtividade da mulher.

— As suas vozes irritantemente altas me despertaram e eu acabei por escutar a conversa – a mulher os encara de soslaio, ela também parecia desconfortável – eu... não imaginava Shura...

Ele maneia a cabeça em condolência.

— Me desculpem por dividir esse meu passado sombrio com vocês – ele diz alternando o olhar entre as duas e gentilmente soltando as mãos de Mariah – mas já que vamos juntos até o fim, queria que me conhecessem bem. Sem segredos, sem especulações, sem mitos.

Mariah tenta pensar em algo bom para falar a ele, mas não encontra as palavras certas, então se limita em dizer qualquer coisa animadora. Eyria a acompanha à sua maneira.

— Enfim, já que estamos dividindo nossa conversa fiada, acho que devo minha contribuição, - ela continua, caminhando alguns degraus e parando a meio metro dos dois, onde se senta ainda apoiada à parede, como Mariah - o que me motiva é poder ver um antigo amigo o qual eu devo muito mais que a minha vida.

— Mas Eyria, você não o fez da última vez que ganhou? – Pergunta Mariah sem pensar.

A mulher enrijece o corpo e o gato agora desperto cora com a inesperada perspicácia da jovem. Por um momento, Mariah temia ter falado demais, mas logo depois a semideusa solta um suspiro bem-humorado, quase um sorriso de nostalgia e assente devagar.

— Eu o fiz, mas... – ela procura as palavras, constrangida - bom, não interessa agora, eu quero vê-lo de novo, lhe devo muito.

— Então foi mesmo você? – Pergunta Shura com um tom que beirava o bom humor, mas que ainda continha tristeza.

— Ela o que? – Pergunta Mariah sentindo uma boa história se formar.

— Como você...? Não ouse! – A mulher agora se vira em direção aos dois parecendo constrangida e fuzila Shura com o olhar e com o dedo em riste. O gato em sua face ficava com as bochechas em um vermelho cada vez mais vivo com o passar do tempo.

Mariah nunca a tinha visto constrangida assim antes, talvez seja um assunto que a balance bastante. Shura, por outro lado, tinha um sorriso tão largo no rosto que quase saía por detrás da máscara ao perceber que conhecia um ponto fraco da aparentemente inatingível semideusa da ilusão.

— O que foi? Me contem, droga! – Protesta a garota, deixada de fora da troca de olhares.

— Eyria pediu para ter um dia junto com seu amigo novamente, mas não conseguiu dizer uma palavra sequer durante o tempo todo. – Dispara Shura.

— O... tempo todo? – Ecoa a garota, estupefata.

— Todas. As. Vinte. E. Quatro. Horas – responde o homem, pausadamente.

— Seu tagarela desgraçado, - ralha a mulher virando o rosto e erguendo o braço em reprovação, com um gesto obsceno - se não tivesse me aliado a você eu mesmo o cortaria em fatias aqui e agora, a começar pela sua língua grande. -  Eyria agora tinha em seu rosto uma máscara completamente vermelha em um tom tão vivo que Mariah tinha medo que derramasse da máscara.

O som da risada de Shura diante da reação da mulher retumba e enche o lugar, já ela,  cruza os braços como uma criança, tentando esconder a vergonha.

— Eu só fiquei surpresa, nada mais – ela continua depois de uma pausa, Eyria sorri de leve por dentro da máscara e seu sorriso atravessa o objeto de madeira – na verdade... eu queria fazer tantas coisas com ele, dizer tantas coisas, foi tanto tempo desde que o tinha visto pela última vez, que eu travei... mas dessa vez eu quero realmente fazer valer, fazer de tudo o que meu coração pediu por tanto tempo.

— Fazer coisas com ele? – Pergunta a garota, fazendo aspas com as mãos.

Eyria revira os olhos.

— E eu lá tenho cara de quem sairia na mão com deuses por causa de um namorado, garota? – Pergunta Eyria, ofendida. Os outros dois riem e Shura guarda a próxima piada para si, sabendo que dessa vez realmente poderia ser a sua última.

Mariah sentia o tempo melhorar com o sol que se punha. Apesar de a semana estar acabando, o clima entre os três melhorava cada vez mais e isso poderia ser um bom sinal.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A Contenda Divina" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.