A Contenda Divina escrita por Annonnimous J


Capítulo 25
Passado obscuro




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Vagarosamente, Ah-Kum Huo se volta novamente para Mariah, girando o pescoço sem mudar a direção do corpo, quase como uma coruja. Quando os dois pares de olhos se encontram, Mariah vê os olhos negros tremeluzirem e uma névoa daquela maldade voltar a infestá-los. Não sabia como, mas a garota sentia no fundo de sua alma que a sua inimiga voltava a cada segundo. Longe dali, Eyria sente o lampejar do poder divino de Huo balançar as estruturas da ilusão e rilha os dentes xingando em pensamento, precisava pensar rápido.

Porém, dessa vez a sorte lhes sorriu. Da maneira macabra de costume.

Um disparo ecoou pelo pequeno vale um pouco mais baixo que os arredores, o homem que estava cortando uma das carnes tombou em um grito e Huo desviou o olhar de Mariah, que sentia que seu disfarce tinha desmoronado. As crianças logo abaixo reagiram ao estampido ecoado e ao grito, mostrando que a memória continuava, a ilusão ainda não havia caído por completo.

Um frenesi desesperado começou a tomar conta dos poucos moradores à medida que mais disparos eram feitos e os atiradores começaram a aparecer no alto da colina fora dos limites do pequeno vilarejo. Eles trajavam roupas esverdeadas, usavam rifles antigos e chapéus cheios de protuberâncias, pareciam tão asiáticos quanto os camponeses que agora tentavam se esconder.

Mas duas coisas chamavam especial atenção mesmo à distância, a braçadeira vermelha e a estrela de mesma cor no chapéu. Mariah sabia o que era das aulas de história, era o Exército Vermelho Chinês, Huo não era tão velha quanto pensava.

O pequeno regimento entrou correndo no vilarejo e Mariah se forçou a sair de seu caminho, se escondendo atrás da cabana a qual estava de pé. Huo desaparecera no seu momento de distração e o caos estava instaurado, não restava dúvida do que matara a garota, ou a mudara para sempre, bastava escolher o momento certo.

De longe, Eyria faz sinal para Mariah, que retribui com um aceno de cabeça e como se fossem companheiras há anos, entendem que era hora da caçada.

***

Correndo por entre os poucos moradores do vilarejo, que pareciam desesperados com suas casas agora em chamas pelos coquetéis molotov dos soldados, Eyria e Mariah se encontram no meio da confusão, procurando por Huo, que desaparecera.

— Ela me viu, - fala Mariah tentando ser ouvida pela gritaria generalizada e o som dos disparos – ela descobriu a ilusão.

— Não – diz a semideusa em igual tom – ela quase descobriu, se esses caras demorassem mais um segundo pra chegar teria tudo sido em vão.

— Temos que achar ela então – declara Mariah e Eyria assente.

— Vamos nos separar de novo, ela é pequena nessa lembrança, então até você deve ter força para matá-la, mire na nuca – fala a mulher, percebendo a faca ornamentada nas mãos da garota, nem mesmo Mariah percebera que a tinha empunhado novamente em meio ao inferno.

Correndo cada uma para um lado, as duas começam a procurar pela garota, esbarrando em ilusões sólidas o bastante para que o impacto as ferisse, mas que não mudavam de trajetória e nem pareciam ligar para a presença das duas invasoras por lá. Mariah já estava sem fôlego, suas pernas doíam pelo esforço desde o início do dia, aumentado pela neve espessa da ilusão, seus ouvidos latejavam pelos estampidos dos fuzis e pelos gritos dos moradores.

Um cabelo negro e tremulante na altura do estômago de Mariah vira a esquina de uma das cabanas, a garota se esforça e corre em sua direção, virando abruptamente para achar o pequeno corpo olhando pela quina todo o caos que acontecia. Sem pensar e com o estômago fundo de pesar, Mariah engole seco e vai em sua direção, sabendo que quanto mais hesitasse, maior eram as chances de falha da missão. Sentindo o peso de cada passo apressado, a distância entre as duas rapidamente desaparece e Mariah levanta a lâmina sobre a cabeça assim que para logo atrás da garota e fechando os olhos com a certeza de que acertaria a base da nuca da menina, Mariah coloca toda sua força na lâmina, que entra pela pele até a empunhadura, mas depois disso, nada.

Como se não ligasse, a menina apenas olha para toda a confusão chorando baixinho, então faz menção de sair de onde estava, mas um soldado a encontra e grita com ela em uma língua parecida, mas em tom incisivo.

— Isso é... – Mariah tenta procurar uma palavra para descrever o que via, mas não consegue encontrar.

Pelo menos não antes de outro estampido ecoar vindo da arma do soldado e a pequena garota estremecer e tombar para frente, se soltando da adaga de Mariah e caindo de rosto no chão segurando a barriga, que agora já manchava a neve de vermelho. Na base do pescoço nem mesmo um pequeno corte.

— Isso é da ilusão... – completa a garota, admirada com o quão brutal era a memória de Huo e o quanto precisa era a ilusão de Eyria.

Ao longe, Mariah escuta uma voz conhecida gritando, um grito de arrepiar a espinha e se vira em sua direção, passando por cima da pobre garota morta. No fundo, Mariah esperava que a menina estivesse em um lugar melhor agora, mas conhecendo o outro plano, não tinha tanta certeza.

***

— Merda - pragueja Eyria enquanto tromba contra um soldado que acabara de ser atingido por uma faca nas costas e cambaleou para frente do casebre, se estatelando no chão. – Devia ter feito essa merda de ilusão intangível.

Mas era tarde para lamentações, ela corria atrás de uma garota que habilmente fugia dos soldados que que a perseguiam por um tempo antes de mudarem sua trajetória para matar algum outro aldeão. Durante alguns minutos, a perseguição continuou, com a semideusa tomando cuidado para que ela não fosse vista e nem tivesse escolhido a criança errada.

Virando a primeira esquina, Eyria viu apenas o cabelo da garota flutuando atrás de si, já virando na outra cabana, entrando pela porta.

— Odeio crianças – praguejou novamente a semideusa, agora tomando a forma de um soldado. Sua roupa de costume deu lugar a uma pesada vestimenta militar e seu leque se transformou em um fuzil com baioneta na ponta, igual aos que os soldados usavam. Deveria dar para o gasto.

Virando a segunda esquina para entrar na cabana, Eyria tromba com dois soldados, que agora prendiam a garota dentro da construção e pelo sorriso no rosto dos dois...

Sua alma pesa por inteiro, seu corpo enrijece entendendo o que estava para acontecer e ela segura seu leque com mais força esperando o momento certo para abrir espaço entre os dois e matá-la antes que o que estivesse para acontecer, acontecesse.

— Malditos... – ela pragueja sozinha em tom baixo, é quando ela escuta um som atrás de si.

Se virando, Eyria dá de cara com outra criança, era uma menina, estava com o rosto sujo de fuligem, os cabelos cortados de uma forma irregular, como se ela tivesse os cortado para escapar de algo, a pequena faca estava em sua mão e ela olhava para a semideusa disfarçada com olhos arregalados, olhos negros. Ela ouvira a semideusa falar, falar em outra língua, falar com uma voz feminina, falar contra o que os próprios companheiros soldados iriam fazer. O cérebro de Ah-Kum Huo demora alguns segundos para processar tudo, até sua cara se contorcer em ódio puro e genuíno, um ódio que era invisível em seus olhos negros e em seu rosto coberto pela máscara de coelho, um ódio de quem foi obrigado a rever o pior momento de sua vida e pela primeira vez, ela sentiu que não mataria por necessidade ou diversão.

Ela mataria por vingança.

***

Mariah, de alguma maneira, sentiu uma onda de choque estremecer tudo a sua volta quando ela correu na direção do grito. O grito de ódio que ouvira só poderia significar uma coisa: problema e dos grandes. Literalmente.

A garota corria a plenos pulmões, ignorando dor sob as costelas como se elas fossem sair de seu corpo e a dor nas pernas que ameaçavam desmoronar a qualquer momento. Seu coração estava acelerado, sua respiração pesava uma tonelada e a faca em sua mão dormente pelo frio da ilusão parecia a ponto de levar a mão da garota consigo, mas ela continuou correndo de onde estava. Virando a primeira esquina e desviando de um soldado que brigava com um homem que parecia estar quase arrancando a arma dele. Virando a segunda ela se assustou com um disparo vindo de dentro de uma cabana, quase se jogando no chão instintivamente um segundo antes de se lembrar que era uma ilusão, inofensiva a ela, exceto pelo alvo que agora parecia desperto.

Virando a terceira esquina a garota encontrou o centro do vilarejo agora quase todo em chamas. Corpos se espalhavam, com roupas de ambos os lados, mas a maioria ainda em pé era de soldados. Quase sem fôlego, Mariah chega ao outro lado da vila e se embrenha novamente entre as cabanas.

Correndo como se não houvesse um amanhã, dando tudo de si, Mariah corre para a direita e sente novamente uma corrente de poder fazer toda a ilusão tremular e seu coração se aperta, quase não bombeando sangue o suficiente para suas pernas. Segurando a adaga com força o suficiente para os nós dos dedos ficarem da cor da neve, a garota dispara na direção de onde parecia ser a fonte do tremor e ao virar para a esquerda, na direção de onde um dos casebres formava um beco sem saída, ela vê.

Ah-Kum Huo, agora em sua forma adulta, segurava Eyria pelo pescoço com os dois braços. A semideusa se debatia, mas as manoplas se mantinham eretas na horizontal e o corpo mal se mexia com os chutes.

A ilusão novamente tremulou e dessa vez começou a se desfazer. Aos poucos, os arredores rochosos e nevados começavam a dar lugar para as altas coníferas, os casebres eram substituídos por pedregulhos, morrotes e árvores caídos, ou mesmo pelo vazio e como se voltasse para a dona, a ilusão convertia para Eyria, começando a ficar inerte nos braços de Huo.

Mariah se esforçou para pensar e o fio de conversa que tivera com a semideusa logo antes veio à tona “mire no pescoço”. Mas agora o pescoço da mulher estava a quase dois metros de altura do chão, não havia como acertar, a menos...

Um dos aldeões corre de um soldado a seu encalço e cai de joelhos diante do beco, alguns metros do final da ilusão, que já estava mais da metade desfeita, a medida que Eyria perdia a luta contra a inconsciência. Sem pensar, Mariah corre, calculando o movimento em sua cabeça na velocidade em que seu coração agora batia, como se fosse sair pela boca ali mesmo.

Alcançando o limiar da ilusão, Mariah sentiu novamente o peso da neve imaginária, mar forçou mais ainda suas penas, correndo o mais rápido possível, fugindo da borda que separava os dois mundos e rezando para que o aldeão aguentasse mais um pouco enquanto se arrastava sobre os cotovelos.

Como se tudo ficasse em câmera lenta, a jovem acelera o máximo que pode e obriga uma das pernas a projetá-la para frente, alcançando altura o suficiente para se apoiar nas costas do aldeão prostrado, que parece não sentir o efeito de seu peso, no exato momento que o soldado atira novamente, o fazendo cair de vez. Mas já tinha servido a seu propósito, pois no momento em que o tiro atingiu o homem, Mariah já se lançava com as duas mãos esticadas para cima, tal qual um jogador de basquete para uma enterrada.

E com a mesma destreza de um, a lâmina atinge a base do pescoço de Huo, que em sua gana de matar Eyria, não ouvira nada a seu redor. A adaga crava fundo no pescoço da mulher, despontando por pouco do outro lado.

Ah-Kum Huo grita e um espasmo a faz soltar Eyria, que cai no chão duro da floresta no momento em que a ilusão se dissipa por completo, tossindo e segurando o pescoço. Mariah, ainda presa ás costas da gigante, tenta cravar mais ainda a adaga na semideusa, mas como se tomasse consciência de que tinha uma passageira indesejada nas costas, Huo alcança o que restou da blusa de frio de Mariah e a arranca de suas cosas, a jogando no chão a poucos metros, fazendo a base se quebrar no movimento, tornando a retirada da lâmina impossível.

Ainda caída de costas, contando mentalmente quantas costelas poderia ter quebrado, Mariah olha na direção de Eyria e percebe algo ao mesmo tempo que a semideusa que agora se levantava, ainda com uma das mãos no pescoço marcado pelos dedos da mulher. A lança de Huo estava no chão. Novamente com apenas um olhar, as duas garotas combinaram uma estratégia desesperada de ataque, um último movimento sincronizado, apenas rápido e forte o bastante para um último golpe em conjunto que precisava dar certo.

Se esforçando para não chorar de dor, Maria gira corpo e se levanta com dificuldade, ainda pelas costas de Huo, que tentava arrancar a lâmina de dentro de sua pele enquanto sangue se projetava do ferimento e de sua boca entreaberta.

Com uma das mãos, ela alcança o cabo da lança e uma eletricidade impressionante percorre seu corpo, eriçando até seus cabelos. Seu primeiro reflexo é soltar, mas o cansaço a raiva e o desespero falam mais alto. Maria puxa a lança para perto de si ainda com os músculos tensos e as mãos em brasa e a levanta, usando as duas mãos e o cabo para uma base firme o bastante.

— Ei, grandona! – Chama Eyria, com uma voz cansada, mas desafiadora, enquanto invoca ambos os leques abertos. – Isso acaba agora!

Huo investe contra ela esquecendo Mariah e a adaga em sua garganta no mesmo momento em que Eyria também corre em sua direção. Ódio puro cintilava das duas quando elas se chocam. Eyria estava no ar, com o corpo encolhido atrás dos leques que desciam, enquanto a adversária esticava os dois braços para aparar o golpe.

Que não vem.

A Eyria com os leques se dissipa em fumaça violeta enquanto outra aparece logo atrás, perfurando a fumaça com o ombro, que atinge o peito de Huo, fazendo ela perder o equilíbrio e tombar para trás. Mariah, já com a lança em mãos, a apoia contra o solo com mais força, bem abaixo do corpo que caia, deixando o resto para a gravidade.

De olhos fechados, Mariah não viu a carne das costas sendo perfurada, não viu os ossos da mulher se projetando para dentro, não viu se a lança a atravessara por completo, mas sentiu o corpo de Ah-Kum Huo se estremecer, tentar puxar a lança de si e então cair para o lado, liberando a garota da eletricidade que a percorria. Quando abriu os olhos, tudo que ela viu foi Eyria ajoelhada ao lado da mulher inerte.

— Pobre alma – diz a semideusa, em um tom triste como Mariah nunca ouvira – vá em paz.

Como que escutando o que a semideusa disse, o corpo se dissolve diante das duas, deixando para trás apenas a lança e a lâmina prateada.


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