Universo em conflito escrita por Mallagueta Pepper


Capítulo 4
E você não vai gostar nem um pouco




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Interior de Minas gerais

— Eu achei que tinha mandado vocês regarem essas mudas!

— E regamos, patrão! Duas vezes só hoje!

O homem foi conferir e viu, para seu desgosto, que o empregado tinha falado a verdade. A terra estava molhada e havia gotas de água nas folhas. No entanto, as plantas estavam murchas e muitos galhos tinham secado como se não vissem água há meses. Como isso podia ser possível?

Era o pesadelo para qualquer agricultor. As mudas não vingavam, as flores mal saiam dos botões e murchavam. Árvores secavam de um dia para outro e frutos apodreciam antes de amadurecer. Ele cuidava daquela fazenda há anos e nunca tinha visto coisa igual.

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Interior de Goiás

A veterinária fez tudo o que pode, mas no fim acabou perdendo o bezerro e também a vaca. A pobre criatura teve complicações durante o parto e ao ver que o bezerro tinha morrido ainda na barriga da mãe, ela tentou fazer o procedimento para remover o cadáver e a pobre vaca não agüentou.

Quando foi comunicar ao dono da fazenda, o homem tirou o chapéu mostrando a cabeça calva e enxugou o suor. Nem forças para reclamar ele tinha mais porque aquele fato estava se tornando recorrente.

Seu gado estava cada vez menor porque vários bezerros morriam pouco depois de nascer. Alguns morriam ainda na barriga da vaca. Outros duravam algumas semanas e iam definhando até morrer porque as vacas davam pouco leite.

O capim estava ficando cada vez mais escasso e ele tinha que providenciar ração para o gado, o que aumentava os custos. E ainda assim o gado não engordava a contento.

— Que diacho, o que mais falta acontecer?

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Ele teve esperanças de tudo ter sido apenas um sonho ruim. Mas ao abrir os olhos e ver onde estava, a dura realidade bateru na cara dele com força. Sim, ele tinha sido mandado para um mundo alternativo e não fazia idéia de como voltar. Ele deu um suspiro triste.

Na noite anterior, ele olhou os contatos em um celular meio anrigo que seu duplo tinha deixado para procurar pelo número do Franja na esperança de que o cientista pudesse ajudá-lo. Mas tudo foi em vão porque ele tinha ido fazer estágio na nave Hoshi, não havia como entrar em contato e nem havia data para voltar. O jeito era pensar em outra coisa.

Sentindo o corpo pesado e a mente derrotada, ele levantou e se arrastou até o banheiro do seu quarto para se preparar para ir a escola, pois não havia outra coisa para fazer. Quando foi se olhar no espelho para pentear os cabelos, ele teve que apertar os lábios com força para não soltar outro grito e levar mais sopapos do Rômulo.

— Que negócio é esse? – perguntou incrédulo quando viu seu reflexo e quase não se reconheceu. Sua pele estava meio pálida, ele tinha o semblante um pouco envelhecido e aquela cicatriz característica do seu duplo se destacando em sua testa como um letreiro luminoso. A maior mudança, no entanto, eram seus cabelos que ao invés do topete espetado de sempre estavam cortados num estilo militar simples, raspado nas laterais e com o topo um pouco maior, aparado com a tesoura. Por que diabos seu duplo fez aquilo com seus cabelos?

Ele se olhou virando o rosto para um lado e para outro, estranhando muito ver a si mesmo com um corte de cabelo diferente. Nem parecia ele mesmo e aquilo era muito desconfortável. Ao entrar naquele mundo, sua aparência mudou tal como tinha acontecido com a Monica meses antes.

Aquilo era desanimador por duas razões. Primeiro que ninguém jamais ia acreditar que ele era de outro universo pois sua aparência era a mesma do seu duplo. E também porque imaginava que o mesmo tinha acontecido com o seu outro eu no mundo original e com isso seus pais e amigos iam ter mais dificuldade para descobrir a verdade. O que fazer então?

“Droga, ta tudo dando errado!” ele pensou sentindo a cabeça doer. Mas nem tudo tinha mudado em seu corpo, no entanto. Ao olhar para um dos seus braços ele teve a agradável surpresa de encontrar a marca de Ior que tinha sido feita em Sococó da Ema e o tornava imortal. Por que só aquilo ficou enquanto o resto mudou totalmente? Não havia coom saber.

— Cebola! Anda logo, seu vagabundo! Vai se atrasar para a escola! – a voz estridente de Rosália o chamou, lhe dando calafrios.

Ele não teve outra alternativa a não ser obedecer. Após tomar o café rapidamente, pois a companhia daqueles dois era desagradável, ele se arrumou e saiu dali aliviado ao saber que ia ficar livre deles por quase o dia inteiro.

Nunca o prédio da escola pareceu tão assustador. Era uma sensação estranha estar num lugar que conhecia e ao mesmo tempo não conhecia. Diferente da Mônica, que estava empolgada com seu primeiro dia de aula, ele estava muito apreensivo por causa das coisas que deu duplo tinha falado sobre o colégio.

— Que lugar esquisito... – o rapaz murmurou sentindo-se desconfortável. Antes de entrar, ele olhou para o alto e viu uma espécie brasão que o deixou intrigado. Ficava acima do letreiro com o nome do colégio e não tinha aquilo no mundo original. O rapaz deu alguns passos para trás e olhou com mais atenção.

Tinha o formato de um escudo medieval. Dentro, uma espécie de galho, ou pedaço de pau, cercado por algum tipo de trepadeira que dava algumas voltas da base até o topo. Acima do escudo e abaixo havia desenhos bem elaborados que davam voltas e mesmo assim mantinham a simetria, sendo que um lado era espelho do outro.

— O que faz parado aí, garoto? Ande logo ou vai se atrasar. – um homem beirando os trinta anos falou rispidamente. Ele trajava roupas escuras e no peito tinha o mesmo brasão da entrada do colégio. 

— Calma aí, tio, eu já tô indo.

Aquilo foi um erro. O sujeito se aproximou, olhou diretamente em seus olhos e ameaçou.

— Você quer ser suspenso por desacato a autoridade? – o rapaz se encolheu todo e tremeu de medo.

— Não...

— Não o quê?

— Não senhor!

— Foi o que eu pensei. Agora vá para a sala de aula antes que eu o mande para a diretoria! Eu fui bem claro? – diante do silêncio do aluno, o inspetor falou com voz autoritária. – Eu lhe fiz uma pergunta!

— Senhor, sim senhor! – Cebola falou assumindo postura de soldado e por pouco não bateu uma continência.

— Agora saia da minha frente. E ajeite a camisa desse uniforme! Não admitimos alunos desleixados nesse colégio.

— Sim senhor!

Ele saiu dali rapidamente com o rosto vermelho de vergonha e algumas gotas de suor escorrendo pela testa. Quem eram aqueles sujeitos estranhos vestidos de preto que circulavam pelo colégio? E por que diabos os alunos tinham que usar uniformes?

O Colégio do Limoeiro tinha uniforme sim, mas não era obrigatório porque Licurgo sempre foi muito liberal. Pelo que ele se lembrava, a escola do mundo alternativo também não tinha essas regras e nem aqueles inspetores, caso contrário a Magali trevosa jamais teria condições de sair por aí aterrorizando os alunos.

Enquanto caminhava pelo corredor, ele viu que os outros alunos o ignoravam e sentiu-se muito mal. Mesmo os conhecidos agiam como se não o conhecesse. Carmem, Irene, Maria Mello e Isa conversavam no corredor como típicas patricinhas mimadas e o olharam como se fosse um rato. Ele tentou cumprimentar Xaveco que passou conversando com Nimbus e Felipe, mas foi ignorado. Marina, Cascuda e Keika viraram o rosto para ele e Tikara sequer olhou na sua direção.

Ele se sentiu totalmente fora de lugar e a sensação não era nada boa. Na sala de aula, ele viu Cascão sentado lá no fundo de cabeça baixa e sem falar com ninguém. Seu duplo tinha lhe alertado que não adiantava tentar conversar com ele, mas mesmo assim Cebola decidiu tentar.

— E aí, Cascão?

Nenhuma resposta.

— Você não tá afim de jogar vídeo-game hoje? A gente podia...

— Não enche, valeu? – o sujinho resmungou com cara de poucos amigos e ficou num silêncio sepulcral, não falando mais nada. Cebola ficou perto da carteira dele por um tempo sentindo-se um idiota e por fim voltou ao seu lugar. As coisas ali eram piores do que ele imaginava.

Algumas garotas entraram na sala conversando animadamente e uma delas fez seu seu coração disparar na mesma hora.

Ela parecia caminhar em câmera lenta, com seus cabelos macios e sedosos balançando ao sabor dos seus movimentos. Quando ela passou perto da sua carteira, ele sentiu seu perfume e ficou totalmente encantado. 

“É a Mônica alternativa! Caçarola, ela é linda demais!” O corte de cabelo era diferente, mais curto e com mechas em diversos tons de castanho. Ela não tinha os dentões, parecia um pouco mais magra, elegante, muito feminina e delicada. Se Mônica fosse um software, a do mundo original seria a versão 1.0 e a do mundo alternativo seria a 2.0. Ela parecia uma versão mais refinada e melhorada.

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— Ih, ele tá te olhando. Bate na madeira três vezes! – Cascuda sussurrou.

— Quem, o Cebola? – ela olhou disfarçadamente e viu que o rapaz a olhava meio abobalhado, o que era uma surpresa já que fazia meses que ele nem prestava mais atenção nela. Que droga... por que ela insistia em pensar nele?

— Se o DC pega, ele tá fritinho! – Marina falou entre risinhos e Mônica não gostou.

— Pois ele não vai fazer nada com o Cebola. Não gosto de violência.

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As meninas conversavam entre si e Cebola desconfiava que estavam falando dele. Um tapa forte acertou sua cabeça fazendo-o levantar na hora. Era o DC alternativo.

— Tá maluco?

— Quem tá maluco é você. Já falei pra não se engraçar com a minha namorada!

— Eu não tava me engraçando com ninguém!

— DC, para com isso! – Mônica ralhou com as mãos na cintura.

— Fica fora disso, Moniquinha. Eu tô colocando esse mané no lugar dele.

A moça o puxou pelo braço e falou suavemente.

— Não vai brigar não, o inspetor pode aparecer e você vai se encrencar. Volta pra sua sala! – ele acabou cedendo.

— Tô de olho em você, cobaia! – ele rosnou antes de sair.

Certo. Ele já tinha sido alertado sobre o namoro da Mônica alternativa com o duplo do DC e entrou em pânico. Será que isso estava acontecendo em todos os mundos alternativos? Será que no fim das contas, o destino da Mônica era ficar com o DC de qualquer jeito? Ele não gostou nem um pouco de pensar assim e tentou afastar esse pensamento. Se a Mônica alternativa queria ficar com aquele idiota, não era problema dele. Sua prioridade era descobrir uma forma de voltar ao seu mundo.

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Em outro colégio da cidade, um novo diretor estava tomando posse do seu cargo. Era um homem beirando os cinqüenta anos, pouco riso, roupas áusteras e cara de quem ia dar reprimendas a qualquer momento. Um grupo de trabalhadores colocava aquele brasão na entrada do prédio do colégio e ao mesmo tempo o diretor foi entrando sendo seguido por vários homens de preto. Todos levavm aquele mesmo brasão no peito, tinham expressões muito sérias e estavam sempre de cara fechada.

Alunos que estavam conversando fora de hora eram repreendidos, assim como aqueles que usavam celulares dentro de sala, riam alto, usavam roupas inadequadas ou namoravam nas imediações do colégio. Os que protestaram foram mandados para a diretoria.

Na hora do recreio, o diretor reuniu todos no pátio da escola para falar sobre as novas regras. Ninguém ali gostou, claro.

— Vocês protestam agora, mas irão agradecer no futuro por colocarmos vocês no caminho certo da boa educação. Meus inspetores cuidarão para que as regras sejam obedecidas e que vocês tenham disciplina.

Os alunos estavam agitados, muitos vaiavam e ninguém pretendia aceitar aquelas regras horríveis. De repente, uma aluna passou mal e desmaiou caindo entre os outros alunos. Dois rapazes caíram de joelho com o nariz sangrando, outro grupo sentiu uma tonteira muito forte. Um estranho mal estar foi se alastrando como fogo em palha e era difícil encontrar alguém que não sentisse nem ao menos um ligeiro desconforto.

Ignorando tudo isso, o diretor voltou a falar no microfone.

— Como eu sei que vocês estão muito resistentes, uma psicóloga virá ao nosso colégio de tempos em tempos para conversar e lhes mostrar que o nosso método será muito melhor a longo prazo.

Uma mulher entrou no pátio abrindo caminho por onde passava e os alunos que estavam mais na frente recuaram o máximo que puderam. Era como se uma névoa escura e gelada tivesse caído sobre todo o colégio roubando o calor, a luz e alegria de todos os corações ali presentes. Sem saberem como e por que, os alunos sentiram medo, tristeza e muitos sentiram desespero. Suas forças se esvaíram rapidamente e ninguém ali falou mais nada.

Era uma mulher de aparência muito jovem apesar de ter cerca de quarenta anos. Seus cabelos bem negros ressaltavam ainda mais a palidez da sua pele que parecia feita de porcelana, ela tinha olhos azuis gélidos e um olhar sem o menor traço de afeição ou calor humano. Seu rosto não tinha nenhuma expressão. Nem raiva, nem alegria ou tristeza. Era como olhar para uma estátua de cera. 

— Todos vocês dêem boas vindas a Srta. Duister.

A mulher tomou o microfone e uma voz macia falou num tom baixo e suave, mas que ecoou nos ouvidos de todo mundo como se fosse o som das trevas e agonia.

— Bom dia a todos. Creio que vamos nos dar muito bem.

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Rio de Janeiro

Vários banhistas e moradores locais estavam na praia olhando o fenômeno mais incomum de suas vidas. Veterinários, ambientalistas e voluntários lutavam tentando fazer algo, mas seus esforços foram em vão.

— É inútil. – falou um deles, muito desanimado. – Não temos equipamento adequado para puxar baleias desse porte. E parece que elas já chegaram aqui muito debilitadas.

Sua colega de trabalho não se conformou com aquilo.

— Como isso foi acontecer com mais de vinte baleias? Nunca vi coisa igual!

— Parece que está tudo virando de cabeça para baixo e não sabemos o que está acontecendo. No laboratório estamos tentando descobrir a causa da morte de recifes de coral em várias partes do Brasil e do mundo, mas até agora nada!

Eles voltaram a olhar para o triste espetáculo com o coração partido. Não havia mais nada que pudessem fazer para salvar aquelas pobres baleias.

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São Paulo

O tiroteio estava cada vez pior. As pessoas corriam para se esconder e muitas eram atingidas pelas balas sem saber se vinham de armas da polícia ou dos bandidos.

Uma onda de violência estava percorrendo as ruas e as pessoas, cada vez mais agressivas, quebravam tudo o que viam pela frente, viravam carros, agrediam umas as outras e muitos cidadãos que andavam armados saíram dando tiros até descarregar suas armas. Quem não tinha arma de fogo improvisava como podia usando pedaços de pau, barras de ferro e até pedras.

O caos tinha se instalado e a polícia não sabia o que fazer. A multidão não recuava nem com jatos de água e gás lacrimogêneo. Era um verdadeiro cenário de guerra.

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As aulas daquele dia transcorreram normalmente e ele não teve dificuldade para acompanhar a matéria apesar de os professores terem lhe dado uma sensação desagradável. Eram as mesmas pessoas, mas agiam de um jeito diferente, eram muito formais e ensinavam a classe como se fossem máquinas. Qualquer bagunça era punida com severidade.

Mas Cebola não estava preocupado com as aulas e sim em encontrar um jeito de voltar para casa. Pelo que ele tinha ouvido, Franja ia voltar lá pelo dia vinte e cinco de julho para visitar a família e a namorada. Era a sua chance de falar com ele e pedir ajuda, mas como provar que tinha vindo de outro universo se sua aparência era a mesma do seu duplo? Se bem que ele tinha a marca de Ior. Ela ainda o tornava imortal? Quem sabe se ele desse um jeito de se matar na frente do Franja e sobrevivesse... não, que idéia idiota! Não havia garantia nenhuma de que a marca ainda funcionava. Era arriscado demais e ele decidiu procurar outra alternativa menos perigosa.

O sinal para o recreio tocou e ele foi para o refeitório. Os outros alunos já estavam reunidos em suas panelinhas e ele não sabia onde se sentar. Era tão estranho não ter amigos!

Cascão estava sentado numa mesa com outros alunos e ele deduziu que deviam ser os “rejeitados”, aqueles que não tinham amigos e se sentavam juntos por falta de opção. Pelo visto, era onde ele devia se sentar. Foi bem constrangedor para falar a verdade. Suas tentativas de conversar com o Cascão mais uma vez foram infrutíferas e ele não conhecia os outros alunos.

“Esse lugar é horrível! Não sei por que a Mônica gostava tanto daqui! Ah, claro, ela era rica, popular e tinha meu duplo babando por ela. Estranho... por que será que ele não ficou com ela?”

Aquilo o intrigava muito. Pouco antes da jornada da Mônica naquele mundo acabar, as coisas estavam bem encaminhadas entre eles e seu duplo ia pedi-la em namoro a qualquer momento. O que deu errado? Ele desistiu? Fraquejou? Ou será que no fim das contas ela não quis nada com ele e preferiu o DC? A Mônica original gostava dele, mas quando ela se separou do seu duplo, as coisas podem ter mudado. Fazia sentido. Foi por isso que ele roubou seu lugar no mundo original, porque além de ter sua família, ele achou que também teria uma chance com ela.

Ao imaginar seu duplo atrás da Mônica tentando reconquistá-la seu estômago protestou veementemente e pela primeira vez ficou feliz por ela estar namorando o DC e não querer nada com ele, pois não lhe agradava nem um pouco vê-la namorar um impostor. Se bem que quando ele voltasse, ela já estaria novamente em seus braços.

“Não... assim eu não quero! Se for pra ter a Mônica de volta, quero fazer isso eu mesmo. Não preciso daquele perdedor pra isso!”

O sinal tocou anunciando o fim do recreio e ele teve que voltar para a sala. Alguém lhe deu um forte esbarrão. Era DC, que ainda o olhou desafiadoramente.

— DC, já disse pra não fazer isso!

— Foi só um acidente, lindinha.

— Hunf!

Oficial. Ele não gostava daquele mundo, nem daquela escola e muito menos das versões alternativas da turma. Quer dizer, da Mônica alternativa ele até tinha gostado, mas do restante não salvava mais ninguém. Tudo o que ele queria era sair daquele pesadelo.

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Pela janela, ela contemplava com um olhar distante a paisagem monótona do interior. Às vezes passava alguma carroça, um cavalo e raramente um veículo motorizado. O silencio a incomodava porque fazia seu tédio aumentar. Em seu colo, um gato branco e peludo ronronava gentilmente com os seus afagos. Apesar de gostar de viver com a tia, Magali estava cansada daquela cidadezinha mais ou menos. Não tinha muita diversão e as outras garotas não apreciaram muito o seu jeito de ser.

Ela tinha mudado muito ao longo dos meses. Seus cabelos cresceram, ela deixou de usar roupas rasgadas, botas militares, piercings, batom preto e a sua clássica corrente amarrada na cintura. Mas ainda assim ela não se vestia como uma garota comum, meiga e delicada. Alguma coisa no seu estilo antigo se mantinha, o que não agradava muito aquele povo do interior. 

Sendo assim, ela deveria estar muito feliz e animada por voltar para casa, não deveria? Voltar a viver na cidade grande, poder ir a shows, talvez conhecer pessoas que tinham mais a ver com o seu jeito. Quem sabe arrumar um namorado? Sim, porque os rapazes daquela cidade definitivamente não eram o seu tipo.

Seu namoro com o Quim acabou não dando certo. A distância atrapalhou muito e seu Quinzão fez questão de complicar as coisas enchendo o filho de trabalho para que ele fosse lhe visitar menos, assoprando coisas em seu ouvido e colocando minhocas na sua cabeça. Por fim ele se afastou totalmente e não dava um único telefonema sequer.

— Magali, você está nessa janela há muito tempo.

— Eu sei, mas não tem nada pra fazer.

— Talvez passear um pouco, respirar ar puro...

A moça deu de ombros.

— Uma pena você não ter gostado daqui. Até que era bom ter alguém jovem para fazer companhia.

Sua consciência pesou um pouco.

— Foi mal, tia, é que aqui é tão parado!

— Uma jovem como você precisa de mais, não é? Eu entendo. E o seu lugar é com seus pais, eles sentem muito sua falta.

— É...

Nena percebeu que a moça não parecia exatamente feliz por voltar para a cidade.

— Alguma coisa está te incomodando, não está?

Magali deixou Mingau sair do seu colo e falou com a voz cansada.

— Eles tinham que me matricular justo naquele colégio? O pessoal lá me odeia, vão tentar fazer picadinho de mim!

— Acredite, eles fizeram todo o possível, mas não encontraram vaga em nenhum outro colégio da cidade.

— Então que me deixassem quieta aqui mesmo.

A mulher afagou os cabelos dela maternalmente.

— Ora, desde quando você tem medo dos outros? Você sempre soube se defender muito bem. E já se passou quase um ano, certo? Eles devem ter esquecido.

— Que nada! Até hoje tem gente me malhando no Face. Só que agora eu tô sozinha e o povo vai querer abusar. Aí, se eu me defender, vou parar na diretoria por causa de briga.

— Seus pais estão conscientes disso e já conversaram com o diretor. Você mudou muito, menina, não é mais a mesma pessoa. As visitas ao psicólogo te fizeram muito bem. Seus colegas verão isso.

Magali não quis falar mais nada. Claro que para sua tia tudo parecia fácil, já que não ia ser jogada aos leões no próximo semestre.

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— O seu almoço, senhor. – o rapaz falou educadamente ao entrar no escritório do presidente da Organização Vinha.

— Entre. Está tudo conforme eu mandei?

— Sim senhor. – Ele tirou alguns objetos da mesa do escritório, estendeu uma toalha linho e colocou sobre ela um prato, guardanapo, talheres e um copo.

Depois encheu o copo com água mineral tomando todo cuidado para que nenhuma gota caísse sobre a toalha perfeitamente engomada. Em seguida, serviu um prato com duas folhas de alface, uma rodela de tomate e três de pepino. Ele colocou um fio de azeite tomando cuidado para cobrir todos os vegetais e ao mesmo tempo não exagerar na dose. Por fim salpicou com um pouco de sal.

Os vegetais estavam arrumados perfeitamente no prato, bem alinhados de forma que o velho pudesse comer cada um numa ordem certa. Quando terminou a salada, o rapaz trocou os talheres, tirou o primeiro prato e colocou um limpo, onde serviu um risoto com cogumelos e peito de frango grelhado. Mais um pouco de água foi servida no copo.

O velho comia como se cada mastigada fosse um ritual. Ao rapaz cabia apenas esperar pacientemente. Mas ele não reclamava, pois aquele senhor bondoso o salvou de uma vida horrível naquele colégio militar e lhe deu uma chance de ser um homem honrado no futuro.

Ele ainda se lembrava de quando tinha sido levado para aquele inferno. Disciplina rígida, comida horrível e nenhuma liberdade. Uma combinação que ele não gostou de jeito nenhum. Os primeiros dias foram muito difíceis porque ele brigava com os outros alunos, respondia mal os professores e sempre estava quebrando uma regra.

— Não adianta, rapaz. Você vai aprender a seguir nossa disciplina querendo ou não. Ou você aprende a se dobrar, ou será quebrado. O diretor sempre lhe falava antes de lhe aplicar “O castigo”.

No colégio tinha uma espécie de solitária para onde eram mandados os alunos rebeldes e ele se tornou um freqüentador assíduo. Era raro ele passar uma semana inteira sem ser mandado para lá. Se fosse só a solitária tudo bem. Mas não se limitava somente a isso. Havia muito mais.

 

Quando o velho terminou a refeição, ele tirou o prato, o copo, talheres e colocou um prato menor com alguns pedaços de maçã e pêra dispostos em círculo de forma que as frutas ficaram alternadas. Ao lado, um pequeno garfo. Depois da sobremesa, ele ainda serviu uma xícara de chá.

No fim da refeição, o rapaz arrumou os utensílios usados na bandeja metodicamente, respeitando uma ordem e posição certas. O velho exigia que tudo fosse feito sempre da mesma forma todos os dias e repreendia quando qualquer coisa ficava fora do lugar.

— Mais alguma coisa, senhor?

— Não. Você está dispensado, Antônio.

Sem falar mais nada, ele saiu da sala carregando a bandeja. Esse era seu nome: Antônio. Nome de gente, de cidadão de bem. Tonhão tinha morrido no dia em que aquele bom homem o resgatou.

Restava somente Antônio.


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