O Mágico e os Ladrões de Som escrita por André Tornado


Capítulo 30
O primeiro contra-ataque




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— Doutor!!!!

Clara despertou numa aflição sufocada. Sentou-se a respirar tão depressa, o coração a bater tão desvairado, que teve a necessidade de juntar ambas as mãos no peito para acalmar a sua agitação interna.

Olhou em volta e descobriu-se no chão da TARDIS. No chão duro da TARDIS e zangou-se, porque era uma imensa falta de respeito que ela estivesse ali deitada, descartada como qualquer… Cerrou os dentes. Como qualquer objeto inútil que se larga onde o deixamos cair!

Levantou-se a alisar a saia amarrotada. O senhor do tempo estava ocupado com a navegação da nave. Entretido com as alavancas da consola, dividia a sua atenção entre monitores e diversos botões, o seu rosto iluminado por diversas cores, do laranja, ao azul e ao branco.

— Doutor!

— Olá, Clara Oswald – devolveu ele sem a encarar.

— O que estava a fazer no chão? – E apontou, ressentida, para o local onde tinha despertado.

— Partimos à pressa. Não tive tempo para te encontrar um colchão macio.

— E largaste-me… assim que entraste na TARDIS.

— Se já sabes que foi isso que aconteceu, não adianta estares a perguntar-me. Sim, confirmo. Larguei-te assim que entrámos na TARDIS.

— Não estava a perguntar.

— Muito bem, Clara Oswald.

Ela cruzou os braços. Rosnou, agastada e bateu com o pé no chão.

— Foi muito indelicado da tua parte. E tive um sonho horrível porque estava a dormir nesse chão desconfortável e frio.

Aquela deixa chamou a atenção do Doutor que inclinou o corpo um pouco para a esquerda e espreitou-a, intrigado.

— Disseste… um sonho horrível.

— Sim, um pesadelo – explicou Clara com uma certa afetação de menina caprichosa. – Essa é a definição de sonho horrível. A Terra estava a ser atacada por daleks furiosos que disparavam indiscriminadamente contra uma multidão que tentava fugir da contaminação daqueles fungos que atacaram o Joe Hahn, dos Linkin Park. Havia… havia centenas de mortos e tu não fazias nada. Eu estava desesperada, queria ajudar as pessoas, mas tu não me deixavas!

O Doutor largou a consola. Veio até ela. Perscrutou-lhe o rosto, com uma tal avidez, que ela dobrou as costas para trás para se evadir daquele escrutínio intenso que a deixou incomodada. Protestou, num tom débil:

— O que pensas que estás a fazer?

Ele disse-lhe:

— Não foi um pesadelo, Clara Oswald. Estiveste efetivamente na Terra durante uma violenta invasão dalek.

— O… o quê? Não é possível… não era real.

— Não, não era real – concordou o Doutor afastando-se. Rodou uma manivela e houve um solavanco e um ranger, seguido de um apito estridente. A nave peculiar chegava ao seu destino. – Tratava-se de uma dimensão alternativa. A Missy andava por lá, atraída pela cisão dos mundos, pela destruição dos paradigmas, pela interrupção das linhas do tempo. Ela agora vagueia entre universos, a seguir o meu rasto. Despedimo-nos e haveremos de nos voltar a ver… nesta dimensão. Quando existir outro rasgão no tecido das eras.

— A Missy! Encontraste… a Missy?! – indignou-se Clara.

— Ou melhor, ela encontrou-me. Agora sei que terei de estar atento para que ela nunca me perca de vista. É perigoso deixá-la à solta, ainda que na qualidade de um viajante perdido entre dimensões. Não sabemos os estragos que pode provocar. Chegámos.

— Devias tê-la trazido contigo, Doutor.

— A minha autorização de estadia naquela dimensão estava a expirar e tinha de fazer uma escolha. Ou tu ou a Missy. Creio que decidi corretamente.

O Doutor desceu as escadas e desapareceu nas sombras do patamar inferior da nave. As luzes ofuscaram-se e o interior coloriu-se de um azul desmaiado que esbatia os contornos dos recantos, da mobília e da própria consola cujo mecanismo ciciava suavemente. Tinham chegado, assim avisara o Doutor.

Clara forçou-se a engolir, embora sentisse a boca terrivelmente seca. Esfregou o peito com a ponta dos dedos. Julgava-se mais calma. Mas ainda se sentia desorientada e com a cabeça vazia. Esticou os dedos indicadores das duas mãos, apontando-os para o teto. Organizou as ideias.

— Então… eu não sonhei? A invasão dalek, com a ajuda do fungo, existiu… mas noutra dimensão? Em teoria, os sonhos pertencem a uma dimensão distinta da realidade, logo, o meu cérebro, para conseguir absorver tudo o que eu tinha experimentado, vivido, visto, cheirado e sentido, pode ter achado que para se preservar saudável devesse converter tudo isso num sonho. A minha teoria tem algum cabimento. Não concordas, Doutor? Foi a minha mente que transformou o evento num sonho. De qualquer modo, continuo a lembrar-me desse acontecimento com alguma dificuldade… como se fosse um sonho. Se assim não fosse, talvez… talvez tivesse enlouquecido.

— Também bateste com a cabeça e perdeste os sentidos! – A voz do Doutor soava longínqua, estava enfiado nalgum compartimento inferior. – Pode ter sido da pancada.

— Sim, também pode ter sido. Bati com a cabeça? Dessa parte, não me recordo. Hum… – Deu um grito de espanto. – O que vais fazer?

O Doutor apareceu com a sua guitarra elétrica ligada ao amplificador portátil que ele carregava pela alça, na mão esquerda.

— Estás acordada, Clara Oswald?

— Julgo que sim. Bem, estou acordada. Sinto-me acordada, Doutor. O que vais fazer com a guitarra?

— Consegues lembrar-te de onde estávamos antes de termos ido ao teu pesadelo?

— Não foi um pesadelo, Doutor – rebateu ela, ofendida. – Já definimos que foi a minha mente que…

— Lembras-te, Clara Oswald?

— Estávamos…

Ela fez um esforço descomunal para se lembrar. Era difícil, era tão difícil como descrever o sonho e o horror que presenciara. Uma pontada na têmpora esquerda e ela massajou a pele com a ponta dos dedos. Cerrou as pálpebras, franziu o rosto, era como se estivesse a espremer o cérebro para conseguir algumas gotas de memória.

— Estávamos… numa nave, num dos extremos da Via Láctea. Deixámos o Chester e o Mike e os outros nessa nave e viemos embora. Para que foi que nos viemos embora?

— A viagem afetou as tuas ondas cerebrais. Definitivamente. O diagnóstico é indesmentível. Mas tudo se vai resolver depois da música.

— Vais tocar.

— Sim, Clara Oswald! – concordou o Doutor arrogante, sorriso amplo no rosto. – Vou tocar e vai ser bastante necessário. Temos a Terra para salvar, devemos travar os daleks e a sua ambição irritante, precisamos destruir o fungo alienígena, vamos salvar os teus amigos para que aconteça o espetáculo em Milton Keynes que ficará registado na gloriosa história musical terrestre. E também para que o fungo não te devore.

Ela assustou-se. Gritou. Passou as mãos pelo seu próprio corpo, girou de um para outro lado, em bicos dos pés, aflita, enojada, zangada, vulnerável.

— O fungo? Estou contaminada?!

— Estás contaminada – confirmou ele sem um pingo de emoção. – A tua desorientação e a tua hesitação entre o que é sonho e o que é real é um dos sintomas. Trata-se de uma pequena contaminação, que ocorreu por via aérea, não por contacto direto, senão estarias a babar-te como o tal do Joe Hahn. Pequenos esporos quase invisíveis entraram no teu organismo e a doença espalha-se aos poucos, utilizando a tua corrente sanguínea. Não vamos deixar que se alastre e daqui a uns minutos irás recuperar a tua acutilância de espírito.

A porta da TARDIS abriu-se. Do outro lado estava uma escuridão opaca, tão densa que era possível agarrá-la. E havia um silêncio igualmente denso e fechado. O Doutor saiu convicto da sua invulnerabilidade, conhecedor do chão que os seus pés pisavam com determinação. Clara ficou agarrada à porta, a espreitar o que se pudesse ver, a tentar escutar qualquer som. Havia um rumorejar distante de gritos e de vozes. Ela apurou o ouvido, mas não conseguiu identificar a origem ou a localização daqueles ecos esparsos.

— Onde… onde estamos? – sussurrou. – Regressámos à nave? Parece tudo tão diferente. Desligado. Doutor… onde estás?

Ela esticou um braço e a sua mão perdeu-se no negrume. Recolheu a mão de imediato, porque o ar estava gelado e pegajoso.

Notas musicais vibraram no escuro. A melodia triunfante fendia a noite como um gume afiado que carregava luz no seu fio. Clara reconheceu os acordes – o início do primeiro andamento da quinta sinfonia de Ludwig van Beethoven e era o Doutor que o tocava nas cordas da sua guitarra elétrica que soava magnífica naquele ambiente claustrofóbico.

E com a música, rasgou-se o véu que tudo fechava e Clara escutou o grito de Chester.

— Mike!!!


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Notas finais do capítulo

Próximo capítulo:
A música que ecoa entre as estrelas.