O Mágico e os Ladrões de Som escrita por André Tornado
Mike sentia que tudo se tornava cada vez mais irreal e fora de controlo e isso melindrava-o. Ele não gostava de surpresas, de passos em falso, de variáveis aleatórias. Agora enfrentavam um saleiro falante. O Doutor, pelos vistos, estaria habituado a todas estas coisas bizarras, inéditas e extraordinárias. Afinal, o próprio homem era um alienígena que viajava no espaço e no tempo. Este assentou os punhos na cintura, afastou as abas do casaco, o forro vermelho flamejou teatralmente e declarou:
— São vocês!!
Ou seja, Mike Shinoda ficou exatamente na mesma, pois não fazia a mínima ideia de quem ou o que seriam os saleiros.
O saleiro falou no ecrã, num tom robótico:
— Doutor, temos os teus amigos connosco. Por isso, não tentes nenhuma gracinha ou não mostraremos qualquer piedade. Eles serão eliminados de imediato e contigo a assistir, se resolveres continuar com a tua patética expedição por esta nave.
— Os daleks fizeram prisioneiros? – zombou o senhor do tempo, ufano, rindo-se. – Os daleks nunca fazem prisioneiros.
— A nave buondabuonda gosta de baralhar as diretivas dos seus pilotos.
— Ah, uma nave buondabuonda tem personalidade. E, como utiliza tecnologia de Gallifrey, deviam saber que existe uma certa incompatibilidade com as ordens arbitrárias, violentas e primárias dos filhos de Skaro.
— Temos feito ajustes e a nave está mais obediente. Em breve teremos o controlo absoluto deste veículo e reinaremos invictos no universo! Afasta-te, Doutor. A Terra é nossa. A colonização já começou. Exterminar! Exterminar! Exterminar!
— Nunca deixarei a Terra cair. Nas vossas mãos, daleks, muito menos. Continuam a querer atingir a Terra para chegarem a mim mais depressa. Esse vosso plano já falhou tantas vezes. Porque razão insistem? Serão derrotados por mim, como já aconteceu antes.
Mike murmurou:
— Daleks?...
Era um nome bastante ridículo, quase tanto quanto a aparência daqueles supostos guerreiros alienígenas que tinham declarado guerra… ficou na dúvida. Estariam a ameaçar a Terra, o Doutor ou todo o universo?
O saleiro rolou para o lado, de modo a mostrar o que estava em segundo plano, naquela sala branca.
— Afasta-te, Doutor. Ou eles serão exterminados imediatamente.
Mike saltou para diante.
— Chester?!
O Doutor esforçou-se por não perder a postura. Mas zangou-se. Colocou os óculos escuros na testa, as suas sobrancelhas fartas uniram-se sobre os olhos azuis gelados.
— Clara…
No ecrã, sob a mira das armas de quatro daleks que os vigiavam em formação cerrada, numa meia lua, estavam Clara e Chester, ao lado um do outro. O vocalista continuava a segurar a guitarra acústica, tinha-a na mão direita.
Mike chamou, aflito:
— Chester!! Chester!!
— Mike! – gritou Chester do outro lado. Clara tapou-lhe a boca e fez-lhe um sinal para que se calasse e se acalmasse. Ela estava pálida e amedrontada, conhecia de certeza a reputação dos saleiros e sabia que não havia margem para deslizes ou brincadeiras.
O japonês suplicou:
— Doutor… temos de fazer alguma coisa.
O Doutor recuperou o seu sangue-frio. Pareceu mais zangado.
— Eles são meus amigos e ordeno que os libertes, sem qualquer dano, ou provarão da minha fúria. E vocês detestam a fúria de um senhor do tempo! As lembranças da Guerra do Tempo são dolorosas e inesquecíveis. Querem relembrar os traumas da vossa desgraçada derrota? Por quantas vezes mais? Por quantos milénios? Soltem os meus amigos. Imediatamente!
— A tua chave de fendas sónica não funciona numa nave buondabuonda desenhada para criar avaza. O som fortalece-os. Tens estado a colaborar com os nossos esforços para a destruição da Terra. O que quer que faças estará a contribuir para a nossa vitória. Irás perder esta guerra. Skaro emergirá vencedor e dominará o universo. E sem a tua chave de fendas sónica, não nos vais encontrar. Regressa à TARDIS, Doutor! Regressa. Se fores obediente podemos mostrar… boa vontade e os teus amigos estarão lá à tua espera.
De repente, o Doutor agarrou na sua guitarra e desferiu-a contra o ecrã, estilhaçando-o. A transmissão cessou numa pequena explosão. Também destruiu a guitarra e atirou-a fora. Mike recuou, protegendo o rosto com um braço.
— O que fazemos agora? Não sabemos onde eles estão! – disse, exaltado.
— Não podemos negociar com daleks, Mike! – replicou o Doutor também exaltado.
— Cortaste a única forma de comunicação com os raptores! – Mike acalmou-se, engoliu a saliva que tinha na boca. Explicou o seu ponto de vista: – Concordo, não devemos negociar com… uh, com esses tipos, mas sem nos comunicarmos, sem os vermos ou qualquer coisa, como vamos descobrir onde eles se escondem? Como vamos encontrar o Chester e a Clara? Como? Esta nave muda a sua configuração conforme o que desejamos ou pensamos.
— Exatamente!
O Doutor agarrou nos ombros de Mike e repetiu:
— Exatamente! Tu preocupas-te com o teu amigo, assim como eu me preocupo com a Clara. Pensa nele, pensa nele e em como o queres desesperadamente salvar e guia-me. A minha memória é demasiado vasta para eu me fixar no sentimento único e especial que tenho pela Clara. Há demasiado passado, futuro e eterno na minha mente e temo que possa perder o jogo com a nave. Mas tu… tu vais conseguir chegar ao teu amigo.
— O que tenho de fazer… basta… basta pensar nele?
— Sim. Basta pensar nele. Deseja com todas as tuas forças estar com ele.
— E os saleiros?
— Quais saleiros, rapaz?!
— Os saleiros… os… os daleks.
— Não te preocupes com os daleks. Desses, trato eu.
— Tu não estás armado.
— Sou um senhor do tempo e basta-me.
Mike susteve a respiração. Sentia-se esmagado e com medo. Disparou uma série de perguntas:
— Vou levar-te comigo, Doutor? Como é que isto vai funcionar? É uma cena como no Star Trek, ‘beam me up, Scotty’ e isso? Vamos teletransportar-nos para onde estão o Chester e a Clara?
— Não me desiludas, rapaz! – O Doutor apertou as clavículas de Mike e ele gemeu. – Tu continuas a ser o mais inteligente do grupo e é por isso que a nave nos juntou. Reconheceu que temos afinidade um com o outro. Não há teletransporte, a nave é que se reconfigura e abre-te o caminho até à sala onde está o teu amigo. Não vais aparecer de repente no meio dos daleks, vais descobrir a maneira para lá chegar. Preparado? Vamos, rapaz. Começa a pensar!
Mesmo cheio de dúvidas de que seria capaz de fazer aquilo que o Doutor lhe estava a pedir, Mike assentiu.
— Está bem. Vou tentar.
— Não tentes!
Mike agitou as mãos, em jeito de desculpa.
— Ok, ok, já percebi. Uma cena à Yoda. Não tentes… faz. Ok, vou fazer!
— Porque razão insistes em falar-me desses filmes idiotas da Terra? Dagobah até é um planeta bastante agradável, não é aquele pântano sombrio cheio de criaturas asquerosas.
O espanto causou-lhe um arrepio e Mike murmurou:
— Dagobah existe?
— Esquece lá isso, rapaz. Pensa no teu amigo. Pensa com muita vontade! Pensa que o queres salvar e que, se não o fizeres, ele estará perdido e não podem ir tocar no vosso espetáculo desta noite.
Era uma boa motivação – o espetáculo em Milton Keynes. Estavam tão longe de Inglaterra, da normalidade, da alegria de estarem em cima de um palco a entreter uma multidão frenética e ansiosa por os ouvir, que lhe parecia quase impossível que voltasse a tocar música na sua vida. Afinal, se desistisse e se ficasse para sempre naquela nave no meio do espaço o seu epitáfio iria ser mesmo esse. Michael Kenji Shinoda, sepultado entre as estrelas, nunca mais tocou música, embora tivesse ainda tanta música para criar e para iluminar o mundo.
Então, fechou os olhos com força. Pensou no Chester.
Amigo! Estou a chegar. Aguenta-te firme. Estou a chegar e vou salvar-te.
O chão moveu-se na horizontal. Fletiu os joelhos para manter o equilíbrio.
Abriu as pálpebras com o anúncio triunfante do Doutor.
— Bravo, rapaz!
Uma porta dupla branca apresentava-se diante deles. E havia um painel lateral com um enorme botão cinzento que decerto a abriria.
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Próximo capítulo:
Pequenos terrores.