O Mágico e os Ladrões de Som escrita por André Tornado


Capítulo 1
Vamos começar com um prólogo




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Agarrou na garrafa de plástico com a mão esquerda. Retirou-lhe a tampa, levou o gargalo à boca. Bebeu em generosos goles a totalidade da água gelada. Lambeu os lábios, estalou a língua, soltou um “ah!” a indicar que ficara saciado.

A temperatura estava insuportável nos bastidores do palco. Os camarins eram feitos de divisórias metálicas que pareciam concentrar o calor no seu interior. Para piorar, o chão estava forrado com alcatifas e havia reposteiros a servir de separadores dos espaços que cabia a cada integrante da banda, mais os seus convidados, os assistentes e o pessoal técnico.

Ainda com a garrafa na mão, agora vazia, ele espreitou o corredor para ver se havia movimentações recentes, mas continuava tudo como que parado, cozido no ar quente. Suspirou, enfastiado. Atirou a garrafa para um contentor do lixo que estava num canto. Já tinha bebido três garrafas de água desde que ali chegara.

Voltou para o camarim e foi verificar o seu equipamento. Tudo tinha de estar perfeito, afinado e alinhado para o próximo espetáculo. Era uma apresentação grandiosa que iria ser registada por várias câmaras dispostas no recinto que captariam ângulos diferentes. O filme seria depois editado e posto à venda no formato DVD. Também seria feita a gravação áudio do concerto. Iria ser lançado um disco com algumas canções, uma escolha das melhores, aquelas com um desempenho excelente, porque eles já tocavam e cantavam como o faziam nos seus discos de estúdio.

Ou seja, era um dia importante para a banda. Um dia especial para todos, para a sua carreira e também para o seu futuro. Disseram que no exterior estava a maior audiência daquela digressão – cerca de cinquenta e cinco mil almas que gritavam pelo nome deles!

Escutou gargalhadas ao fundo, reconheceu a voz do vocalista que se ria mais alto.

Torceu os lábios, iria ter com os outros. Nunca tinha gostado de esperar sozinho, de qualquer maneira. Ficava mais nervoso se se punha a matutar na responsabilidade que lhe competia na apresentação.

Eles tocavam muito bem juntos, mas era normal haver alguma apreensão no início, antes de entrar em palco. Depois, quando ele arrancava com os primeiros sons – era sempre ele que dava o pontapé de saída do espetáculo, com um momento musical pré-gravado – entrava em modo automático e ficava tudo demasiado simples e normal. Como se sempre tivesse pertencido ao palco. Não se melindrava ao encarar a multidão que se juntava para os ver atuar, não se incomodava com as luzes dos holofotes, não havia nada, se estivesse rodeado de música, que o pudesse atingir e magoar. Sentia-se quase invencível, incapaz de errar.

Demasiado orgulho, dizia de si para si e congratulava-se por ser orgulhoso, ao ponto de ser desagradável.

Limpou a testa com o braço.

No exterior a temperatura estava mais amena, não se sentia aquele calor brutal apesar de serem cinco da tarde. Hesitou um pouco. Podia dar um passeio pelas imediações do gigantesco recinto e só depois ir ter com os amigos. Esticar as pernas, distrair-se a contar as nuvens ou alguma idiotice dessas. Mas podia acontecer ser interpelado pelos seguranças que policiavam o local e lá tinha de mostrar o seu cartão, dizer quem era, que fazia parte do circo… essas coisas. Acontecia por vezes o pessoal que era contratado para dar apoio ao espetáculo não fazer a mínima ideia de quem eles seriam – era um trabalho como outro qualquer, estavam lá para ganhar o seu dinheiro, nem sequer era obrigatório que fossem admiradores dos artistas – e já antes aconteceram cenas embaraçosas em que os membros da banda foram maltratados por terem sido confundidos com os fãs. Com ele a confusão era bastante frequente. Como ficava mais atrás no palco e não fazia parte da dupla mais reconhecível, os cantores e compositores, chegavam a importuná-lo para que regressasse ao trailer do catering. Confundiam-no invariavelmente com um dos cozinheiros!

Pensou melhor e manteve a decisão de ir ter com os outros. Não estava com paciência para aturar seguranças ignorantes e mal-humorados.

Foi até à mesa e retirou outra garrafa. Começou a destapá-la, fazendo a ligeira pressão para quebrar o aro de plástico que a vedava.

Reparou numa mancha esverdeada que serpenteava, como uma cobra de sujidade, no tampo da mesa, onde esta se encostava à divisória que fazia as vezes de parede dos fundos. Fez uma careta, cheio de nojo, por estar a ver aquela porcaria. Elevou a garrafa para verificar se o fundo tinha restos da matéria verde, que ele notou ser semelhante ao musgo. Por reflexo, passou a garrafa pela blusa larga que vestia, enquanto observava a coisa.

Não se lembrava de ter visto a mancha ali, quando fora buscar a garrafa antes daquela. Tudo se mostrava limpo e impecável nos camarins, até nos corredores. Os organizadores do espetáculo tinham cuidado com a limpeza e com a apresentação, porque sabiam que eles eram seguidos na internet por milhares de pessoas e não desejavam publicidade negativa.

Estreitou os olhos para analisar a mancha, vencendo o asco de estar a olhar para aquilo. Aproximou-se devagar, baixando o nariz até que este ficou a poucos centímetros da mesa. Tinha sustido a respiração, com receio do cheiro que pudesse vir dali, por isso, inspirou a medo no processo de aproximação e percebeu, surpreendido, que não havia qualquer odor.

Mas a mancha tinha uma particularidade que o intrigou. Assim, vista de perto, parecia mover-se num brilho opaco, em suaves palpitações que se assemelhavam a borbulhas prestes a rebentar. Como se fosse uma qualquer matéria viscosa retirada de um charco pantanoso.

Esticou o dedo indicador e cuidadosamente raspou a unha na mancha. Não estava fria, nem quente.

Endireitou as costas e contemplou o pedaço arrancado que lhe coroava a ponta do dedo num pequeno capacete escuro. Rodou o dedo algumas vezes, para verificar todas as facetas da amostra, mas não encontrou nada de interessante. Era simples sujidade. Olhou para cima e não encontrou qualquer goteira ou lasca na grossa canalização que passava por cima do camarim que fosse a fonte daquela gosma. Tornou a olhar para o dedo.

De repente, um zumbido penetrou-lhe os tímpanos e ele petrificou naquela posição estúpida. Pernas ligeiramente afastadas, braço esquerdo junto ao flanco, garrafa de plástico na mão esquerda, dedo indicador da mão direita esticado, a apontar ao céu, com a unha suja, lábios entreabertos, olhos semicerrados e testa suada num rosto inexpressivo e pálido.

Não se conseguia mexer.

Entrou em pânico, mas a aflição não transparecia na sua expressão, pois ele continuava parado, sem ser capaz de acionar qualquer músculo. A aflição estava toda dentro dele. Era o seu espírito que gritava ao sentir-se invadido e puxado, era o seu espírito que se debatia para se libertar de qualquer coisa que tinha muitas mãos que o agarravam e o esticavam tal qual um cobertor.

Ele estava no escuro a gritar, a lutar, a ser dominado por essa coisa que tinha entrado no seu organismo através da unha. Era uma espécie de fungo que o cobria, ou melhor, que tapava completamente o seu espírito e o subtraía da realidade, substituindo pacientemente, uma por uma, as células do seu corpo a partir da imaterialidade da alma.

Estava a ser colonizado! Estava a ser eliminado!

No entanto, ele não caía. Continuava de pé, imóvel, estático, inexpressivo, catatónico. Submisso e vulnerável.

Gritou por socorro, mas a sua boca não se moveu, nem fez soar qualquer palavra.

Então, rodou sobre os calcanhares. Largou a garrafa de água e avançou, sonâmbulo, para se juntar aos amigos. Ele sabia que era um perigo – quando os outros entrassem em contacto com ele, acabariam contagiados e doentes com o mesmo mal que o estava a consumir. Ele, todavia, tinha perdido completamente o controlo da situação.

Precisava que o salvassem. E os outros, em breve, também iriam precisar de ser salvos.


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Notas finais do capítulo

Próximo capítulo:
Um dia de verão cheio de promessas.