Neve escrita por Wyvern


Capítulo 1
Capítulo 1




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/786087/chapter/1

— Tem certeza de que não precisa passar na enfermaria? - Ritsuka perguntou com um tom incerto enquanto sua atenção estava voltada para os itens recolhidos na última missão, os quais mantinham ambos os seus braços ocupados e ameaçavam cair nos azulejos brancos de Chaldeas ao primeiro descuido. Com um silencioso aceno de cabeça, o servo ao seu lado negou. - Nesse caso, eu vou guardar esses itens e podemos ir até o refeitório.

— Eu... Irei me retirar, mestre. - avisou Arjuna com um tom baixo, evitando encarar sua companhia enquanto se desviava do caminho, escapando por um corredor lateral de forma tão sorrateira que Ritsuka só perceberia seu afastamento alguns passos depois.

 

O Archer estava ciente da frustração e preocupação de seu mestre, mas para sua vergonha, não era capaz de interagir com os demais, fossem eles outros servos ou os funcionários de Chaldea. Continuava a desejar a solidão, pois acreditava que só então estaria livre do fardo que tanto carregava, a sua imagem de herói admirável.

Lembrava-se de, em algum momento, ter ouvido o doutor Romani explicar a Ritsuka sobre a história do Mahabharata e como Arjuna era o personagem principal do longo conto de tantos heróis. Havia certa admiração no tom do homem naquele momento, bem como fascínio no olhar de seu mestre, reações que atingiram o servo como finas facas em seu peito. Não que ele pensasse que admiração ou mesmo amor fosse algo ruim, mas lhe doía pensar no que aqueles sentimentos iriam se tornar caso as pessoas descobrissem toda a dificuldade que tinha em fazer sempre o bem, e como alguns pensamentos tão terríveis lhe vinham à mente, como uma segunda voz sussurrando de forma tentadora, desejando sua ruína. Se aquela terrível falha sua viesse à tona, todos aqueles sorrisos seriam substituídos pelo desprezo. Toda admiração se tornaria ódio. Seu mestre certamente desfaria o contrato que tinham.

Não. Não poderia permitir e não permitiria que algo assim acontecesse. Podia ser difícil, mas continuaria a ser o herói que deve ser admirado, mesmo em sua segunda vida como servo.

Foi então que o servo se deu conta de que estava arfante, com as mãos trêmulas no meio de um corredor que não se lembrava de ter entrado. Suspirou, repreendendo-se em silêncio por ter ficado tão imerso em seus pensamentos que sequer percebeu aonde ia, e olhou em volta para se localizar, finalmente percebendo que não estava sozinho. Sentado diante de uma das grandes janelas estava a última pessoa que queria encontrar, seu meio-irmão mais velho que o observava de forma silenciosa. Como sempre, aqueles olhos azuis lhe davam a incômoda, a insuportável sensação de estar exposto, como se o outro fosse capaz de atravessar sua imagem e enxergar as coisas terríveis que queria esconder, e mesmo assim... Mesmo assim não havia desprezo naquele olhar, não havia raiva. Desde o primeiro momento em que conhecera o homem pálido até o momento em que tirara sua vida, e mesmo agora, continuava sem conseguir decifrar o olhar que recebia dele. Instintivamente, apertou o arco que carregava em uma das mãos, como se quisesse atacá-lo ali mesmo.

 

— Você se perdeu? - perguntou Karna com certa curiosidade, e ainda que soubesse que ele não iria rir da situação, o homem negro não quis responder e admitir algo tão constrangedor.

— O que está fazendo? - desviou-se do assunto com uma nova pergunta.

— A neve. - com a fala, aqueles olhos azuis se voltaram outra vez para a janela. - Eu gosto de vê-la. Na nossa terra, ela não existia.

 

Piscando duas vezes, Arjuna olhou na mesma direção que o outro, percebendo que mesmo que tivesse sido invocado há um bom tempo, nunca deu atenção ao exótico cenário a sua volta. Contrariando todos os seus instintos que gritavam para que se afastasse, passou a se sentar na outra extremidade da janela, sem nada dizer. Apesar de tudo, o silêncio entre eles não era desagradável, pois se comunicar era difícil para ambos e não sentiam obrigação de interromper o momento de paz para uma fala desnecessária.

 

— Arjuna. - chamou o Lancer por fim, ainda com o olhar voltado para fora. - Aquilo o deixou feliz?

 

Sabendo bem ao que ele se referia, o homem negro não respondeu a princípio. Lembrava perfeitamente de como haviam lutado com tanto afinco um contra o outro, e de como ele não havia demonstrado raiva nem mesmo em seus últimos momentos. Lembrava também do quanto queria matar o seu inimigo para que nunca mais tivesse aqueles olhos azuis vendo-o tão profundamente, e de que ao conseguir, nada sentira além de culpa.

 

— Não. - a fala escapou antes que percebesse. Temeu pela reação do outro, mas este sequer olhou em sua direção, e por um momento teve esperança de que ele não tivesse ouvido.

— ...Sinto muito. - apesar de tão chocante resposta, o homem pálido mantinha seu olhar voltado para a janela, ainda que já não prestasse atenção no exterior. Era a vez de Arjuna encará-lo longamente, sem entender. - Alguém uma vez me pediu para pararmos de lutar e vivermos como uma família. Eu recusei e acreditei ser mais correto continuar a enfrentá-lo. Foi uma decisão tola... Imperdoável. Não precisávamos ser inimigos.

 

Deixado sem palavras, o homem negro voltou a desviar o olhar, mergulhando-os em um silêncio mais intenso que nunca. Para alguém que nunca se expressava, Karna havia revelado seus pensamentos mais profundos e não duvidava de suas palavras, ainda que nunca esperasse vê-lo lamentar o destino que tiveram. O Archer bem sabia quem havia feito o pedido ao outro, e se perguntou se e algum lugar a mãe de ambos se entristecia ao saber que haviam levado a inimizade para até mesmo aquela segunda vida.

 

— Bem, não vamos nos estender nesse assunto desagradável. - quando o homem pálido se ergueu e se afastou alguns passos, Arjuna foi puxado de volta à realidade. - Tome cuidado para não se perder outra vez.

— Karna. - chamou-o antes que se afastasse, se levantando também para deixar o corredor pelo lado oposto ao que ele seguia. - As decisões que tomamos não podem ser desfeitas. O destino que tivemos não será mudado. Mas...

— Mas? - havia uma clara curiosidade na voz do outro, que não avançava mais nem um passo desde que fora chamado.

— Nossas lendas já chegaram ao fim. Já não existe mais guerra. - era difícil dizer aquilo, mas se Karna fora capaz de revelar seu arrependimento, então sentia que lhe devia um esforço semelhante. Sentia que, apesar de tudo, estar ao lado de seu mestre havia feito com que visse as coisas de outra forma, sem a venda colocada pelos deveres de ambos para com seus protetores em guerra. Não reconhecia a si mesmo por dizer tais palavras, mas sentia que deveria fazê-lo. - Talvez... Possamos realizar o desejo dela.

— Eu gostaria disso. - ainda que o Lancer virasse a face e seguisse seu caminho outra vez, podia jurar que havia visto uma certa satisfação nele. Naquele momento, até mesmo estar sob seu olhar já não parecia algo tão ruim assim. - Até mais, Arjuna.

— Até mais... Meu irmão.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Neve" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.