Reino em Cinzas escrita por Julia A R da Cunha


Capítulo 3
Merida




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O som dos talheres, mãos e alimentos batendo e se movendo nos pratos ecoava pela cabeça de Merida como se fossem ruídos em um salão vazio. O cheiro era a pior tortura. Com ele, podia quase sentir o gosto das cenouras, a textura da carne de coelho, o sabor forte do javali, o líquido doce que saía das maçãs quando mordidas. Segundo o que ouvira dos comentários das servas, mais tarde haveria tortas para todos os convidados. Por mais vezes do que gostaria de admitir, perguntou-se se, caso encontrasse aquela bruxa, haveria algum feitiço que a permitisse trocar de boca ou até de estômago com alguém – apesar de que, considerando os resultados de seu último serviço, aquela não seria uma boa ideia.

Com a garganta dolorida e estranhamente seca, ela forçou mais um pequeno pedaço de pão logo empurrado com um gole de leite. Pelo menos ainda tinha o leite...

— Merida? — Um dos irmãos a cutucou. Era Hamish. Ou seria Hubert? Já não conseguia diferenciar os detalhes com tanta clareza. — Você está bem?

Olhou em volta. Outros três lordes do conselho a fitavam ocasionalmente, assim como o padre, enquanto seu pai a encarava de forma fixa de tempos em tempos, agora mais uma vez após ouvir a pergunta do menino. Merida balançou a cabeça com lentidão e forçou um pequeno sorriso, mas suas mãos trêmulas a desmentiam. Agora mais pessoas a miravam de canto de olho.

Ela bebeu mais um gole, buscando também se distrair daquele tipo de atenção além da leve satisfação que a bebida trazia, e demorou-se para engolir. Por mais fome que sentisse, sabia que se comesse mais uma migalha de pão acabaria colocando tudo para fora.

— Padre Áed — Fergus interrompeu as outras conversas. Sua voz parecia vir de mais longe do que ele realmente estava. — Está seguro sobre a severidade da penitência?

Um silêncio desconfortável se instalou. Entre borrões e nuvens negras, viu o padre se remexer em sua cadeira, ponderando as palavras antes de proferi-las. Logo em seguida, ela baixou os olhos para a mesa. Só queria estar longe da conversa e do jantar e de todos.

— Sim, Majestade. Sei que pode parecer chocante ou severo, contudo outros costumam aplicar penas ainda mais graves, mesmo quando a própria buscou o perdão. Peço que acredite em mim quando digo que prezo muito pela saúde da princesa, tanto da carne quanto da alma, e que abrandei a penitência por esse motivo. Caso seja necessário, posso reaver alguns pontos.

— Sim, é necessário. Acredito em você, padre. Mas não estou vendo como duas semanas de fome e rezas da minha filha estariam ajudando contra qualquer mal que aconteça no reino, afinal, os nórdicos não só não saíram daqui como começaram os saques.

— Antes de mais nada, senhor, ela está purificando o espírito e demonstrando sua determinação pela busca do perdão. — Depois disso, Merida não conseguiu ouvir mais nada.

Oh, não. De novo não. Conhecia muito bem os sintomas e a ordem na qual vinham. Não aqui com todos olhando. Junto com a audição, a visão se foi por completo e o mundo começou a girar em uma velocidade absurda. Em menos de dois minutos deixou de sentir o toque do irmão. Termine logo. Se se demorasse demais naquele estágio, vomitaria no meio da mesa. Não conseguiu discernir o tempo exato, porém, eventualmente, desmaiou.

Na escuridão, uma pequena chama azul se iluminou à sua frente. A partir dela, minúsculos membros pareciam surgir, acompanhados de um par de olhos na chama maior. Ela se aproximou de Merida, assim como a princesa também avançou. Estava tentada a tocá-la e, quando o fez com a ponta dos dedos, sentiu um calafrio percorrer sua pele antes de a luz sumir.

Mais adiante, outra delas apareceu, e outra, e mais outra, formando um caminho a ser percorrido. Merida hesitou. Não as vias desde o que aconteceu com a mãe e os pretendentes. Independente de tudo, seu coração ansiava pelo o que teriam a mostrar. Afinal, sua mãe lhe dizia que elas a levariam ao seu destino.

Ela suspirou e seguiu-as, uma por uma por uma, até estar cercada pela floresta imponente, com árvores longas que se esticavam aos céus como longos dedos ossudos. As sombras se misturavam de maneira disforme e andar por ali era como ver as imagens se formando enquanto se aproximava.

Merida subiu e desceu morros incontáveis, já mal se lembrando do receio que tivera. E então, ecoando pelo negrume da noite, um rugido conhecido fez cada parte de si tremer de pavor. Mor’du! Logo em seguida, vislumbrou uma das pedras antigas que caiu naquela noite, sepultando a fera e sua maldição. Com o estrondo de sua queda, ouviu gritos atrás de si, altos como se estivessem a poucos metros de distância, tão viscerais que marcavam sua alma de forma indescritível.

Em pânico, a garota correu para longe, tentando seguir o caminho que as luzes mostravam. Galhos secos machucavam seus pés e se enroscavam como víboras sedentas por uma nova vítima. Se cair, estou morta. Ela correu com todas as forças, mas os gritos apenas se aproximavam.

Uma raiz prendeu-a e a levou ao chão, duro como uma rocha e afiado como se mil pequenas lâminas estivessem saindo da terra. Merida apertou os olhos, tentando distinguir o que a feria com o auxílio da luz anil das chamas. Espinhas e escamas. Um forte vento as fez voar de seus dedos, que ela levou ao rosto para se proteger. Foi quando percebeu. Não era um vento comum, mas sim um rufar de asas gigantescas logo à sua frente. Merida congelou e não ousou virar o rosto para ver a criatura.

O leve brilho azul foi devorado pelo alaranjado das chamas que a engoliram e cozinharam da carne, ao sangue e à alma.

Merida percebeu que estava sonhando quando viu os rostos de seus pais encarando-a com preocupação. Estava deitada em sua cama, mas não se lembrava de ter ido para lá. Então se lembrou e apertou os olhos, envergonhada. Não gostaria de saber quem dos presentes a carregou ou há quanto tempo estavam esperando.

O toque doce de sua mãe acariciou seu rosto e a menina a olhou.

— Oi, minha querida — seu sorriso era terno e caloroso, diferente de Fergus. Por mais que tentasse disfarçar e se manter sério, podia ver seus olhos caídos, o vazio pesado de mil palavras não ditas gravadas na sua expressão, as mãos se apertando. Quando o encarou, ele se manteve por dois segundos e então desviou o foco para um ponto qualquer. — Você nos deu um susto agora. Foi o terceiro desmaio nessa semana.

Merida ficou em silêncio. Não sabia mais qual era a resposta segura para isso.

— Conversamos com o padre depois daquilo, os outros lordes e seus irmãos também ficaram preocupados — Elinor continuou. — Não precisa mais ir à capela durante as tardes e pode ter mais uma refeição.

— Obrigada.

Seu pai ainda estava lá, parado, quieto. Dessa vez, ele não fugiu de seu olhar e dessa forma não dita, tudo o que era preciso foi dito. Ele ainda se preocupava com ela e saber disso foi o bastante para que Merida sentisse o peito um pouco mais caloroso em meio a todo o caos.

— Agora, descanse.

Elinor se inclinou e beijou-a na testa com gentileza, fazendo a garota sorrir de volta. Logo em seguida, ela se levantou, tocou o braço do marido e os dois acenaram enquanto saíam do quarto. Pela primeira noite em duas semanas, encontrou-se sozinha naquele cômodo.

Contudo, a solidão trouxe de volta as lembranças do pesadelo. Seu coração estremeceu com os ecos dos gritos e as imagens que vira. Mesmo depois de ter ficado deslumbrada ao ver as luzes pela primeira vez na infância ou com os últimos eventos de sua vida, nunca tinha sonhado com elas. Com aparições tão raras e específicas, era impossível não pensar que aquilo tinha um significado. As luzes a chamavam de novo, mas para o quê? Deveria segui-las? Como, com a atenção de todos pregada em suas costas?

Então se lembrou.

Sim, há muitos anos, quando Elinor ainda lhe contava histórias e lendas antigas de seu povo picto quase desaparecido e dos gaélicos que instalavam sua cultura em suas terras, ouviu sobre as pedras antigas, espalhadas por várias regiões nas mais diversas disposições – pedras solitárias, agrupadas em círculo e assim por diante. Alguns diziam que, um dia, elas foram gigantes transformados em pedra após recusarem se converter para Cristo; outros, que eram um exército esperando pelo chamado de seu mestre; ou ainda que eram protegidas por daoine sìth e espíritos ancestrais. Porém, todas as histórias concordavam em um ponto: quem mexesse nas pedras antigas estaria condenado.

E foi isso que fizeram ao matar Mor’du.

Merida vislumbrou a queda da pedra em seu pesadelo pouco antes de ouvir os gritos. Ela engoliu em seco com a garganta apertada, depois percebeu que seu queixo tremia levemente. Por mais apavorada que estivesse, sabia que não podia ignorar essas imagens e esperar calada para que não passassem de sonhos. No último mês, uma das coisas que mais aprendeu era o quanto tudo isso era real. Então, só lhe restava consertar o que quer que tivesse desencadeado e eram as luzes que lhe mostrariam o caminho.


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