Reino em Cinzas escrita por Julia A R da Cunha


Capítulo 18
Soluço


Notas iniciais do capítulo

Galerinha, devo admitir que não dei AQUELA revisada nessa parte. Se encontrarem qualquer inconsistência ou erro ortográfico/gramatical, me deem um toque nos comentários!

Boa leitura!



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O matagal denso ao redor da cidade de Pirn encobriu a aproximação dos vikings por todo o tempo que precisaram para se reunir e fazer os últimos preparos. Muninn roncava ao seu lado, com o olhar fixo nas construções à sua frente. Foi difícil convencer a todos que deveriam levar apenas um dragão por precaução, com exceção de Astrid. Aliás, ela foi quem mais o ajudou a explicar o porquê de ser uma má ideia expor todos os animais de uma vez.

Mesmo assim, todos trajavam suas armaduras de escamas, prontos para se defender de qualquer tipo de ataque.

Hilde se aproximou deles com passos cuidadosos. Soluço não se surpreendeu em nada ao encontrar uma maioria de mulheres escudeiras seguindo-a como líder quando se encontraram no assentamento. Melequento até mesmo riu, comentando das lembranças dos seus encontros e desencontros com as Moças com Asas anos antes. Hilde também não conseguiu não rir ao ouvir as histórias, mesmo sabendo que o rapaz correu sérios apuros.

Porém, o assunto logo terminou. Afinal, não poderiam se arriscar a revelar informações demais sobre a ilha distante onde alguns dragões ainda poderiam ser encontrados. Ninguém mais de fora do arquipélago poderia saber.

— Estão prontos? — a mulher perguntou com a voz baixa, parando ao seu lado entre as folhas.

Soluço ponderou.

— Não esqueceu do que eu disse para fazermos, não é?

— Partir direto para as casas mais ricas e para a igreja, pegar os alimentos e o ouro, e ir embora. Atacar principalmente para se defender. — Hilde recitou as palavras como um cântico sóbrio, apesar de sua expressão ser bem mais amigável, quase risonha. — Me lembro bem. E concordo com isso.

— Então estamos prontos.

— Prontinho — Dagur divagou do lado oposto, retirando a espada da bainha. Naquele simples movimento, Soluço já pôde ver a fúria berserker ascendendo de suas entranhas.

Hilde deu três passos para a frente e ergueu o braço direito, a espada erguida no alto em antecipação. Soluço montou em Muninn e, acompanhado de Dagur, fez o mesmo que ela. Cada um dos três líderes à frente de seus próprios guerreiros. Em um toque final glorioso, ele apertou o pequeno botão e sua lâmina se iluminou em chamas. Soluço abaixou o visor de seu elmo com a mão livre e respirou fundo uma última vez.

Juntos em sincronia, os três cortaram o vento com as espadas. Os guerreiros gritaram e dispararam para a batalha como uma onda violenta contra um penhasco.

Muninn avançou para fora das árvores, abriu as asas e sobrevoou a cidade, sombreando os vikings e os prédios abaixo. Não levou mais do que um segundo para que os escoceses percebessem o que estava acontecendo e explodissem em pânico, correndo para suas casas puxando seus familiares pelas mãos o mais rápido que podiam.

Os guerreiros se espremeram pelas vielas apertadas, a maioria disparando em direção das casas maiores e da igreja enquanto uns e outros dispersavam aos poucos, abrindo as portas de madeira com chutes poderosos.

Pelo tamanho da cidade, com certeza devia haver alguma fortaleza não muito longe dali. Mas agora não tinha tempo para pensar nisso. Se tudo desse certo, seriam rápidos o suficiente para passar quase despercebidos.

Soluço olhou para frente, para o caminho que seguiam. Nunca tinha visto uma igreja de perto, só ouvido falar delas, de seus fiéis e da crença estranha em um único deus com seu filho humano que morria e renascia. Por um único instante, se permitiu vislumbrar a construção antes que ela fosse atacada. Enquanto a maioria das construções eram de madeira, o templo cristão era feito de pedras erguidas, sobrepostas uma sobre a outra, com uma única torre com um grande sino no meio se esticando sobre a altura das casas da cidade coroada com um crucifixo. A luz do sol não escondeu o material daquele símbolo de fé. Era ouro puro. Mesmo de longe, um bom ferreiro sabia reconhecer o que via, isso foi o que Bocão lhe ensinou nos anos como aprendiz.

Soluço identificou um espaço aberto algumas ruas à frente da construção, com um único poço no centro. A praça tinha o tamanho perfeito para pousar Muninn. Ele apertou os calcanhares no torso do dragão.

— Vamos lá, amigo.

Muninn rugiu e deu algumas voltas no ar sobre o local, diminuindo sua velocidade e altitude aos poucos antes de tocar as patas traseiras fortes no chão. O lugar já estava recheado de vikings e, escorrendo pelas portas das casas, alguns cidadãos decidiram lutar pela sua cidade. Todos, porém, escorregaram e vacilaram ao ver a fera diante de si. Muninn levantou a cabeça e gritou para os céus.

Foi o suficiente para que os nórdicos pudessem se defender da breve ameaça.

Soluço sacou sua espada novamente e desmontou. Para chegar à igreja, teria que seguir sozinho. Mesmo sabendo que Muninn era grande e poderoso o bastante para se defender sozinho, seu coração apertou em seu peito. Ele tocou o queixo do animal com a mão livre e o puxou para perto de si, encostando sua cabeça na dele e fechando os olhos por poucos instantes.

Após a rápida despedida, Soluço se virou e avançou pelas ruas apertadas. Para sua alegria, ali acabou topando com o caminho de Melequento e dos gêmeos. Mais à frente, Astrid brandia seu machado de guerra pelo ar, girando de um lado para o outro, se livrando de dois atacantes de uma única vez. Ele virou-se para trás e viu Perna de Peixe os alcançando com um curto atraso.

— Vamos, gente! — Ele gritou. — Vamos, vamos!

Os amigos bradaram em resposta, avançando sem nem sentirem os movimentos bruscos pelo corpo. A cada pessoa que os atacava, um movimento de mãos com as espadas abria o caminho de novo. Não demorou para que os sentidos de Soluço fossem sumindo e se entorpecendo, mesclando-se aos golpes automáticos que desferia, pouco reparando em todo o caos que se desenrolava ao seu redor.

Num breve momento de lucidez, ele reparou que, estranhamente, aqueles homens estavam vestidos com armaduras de couro, algumas até de metal, e armas boas demais para simples cidadãos que se defendiam. Porém, logo sua mente deslizou para o frenesi da batalha que tão raramente sentira antes.

Ele não soube quanto tempo levou, mas quando percebeu, já saltavam pelos degraus de pedra à frente da igreja. Soluço olhou em volta. Dali, conseguiam ver um pouco dos campos e árvores fora da cidade.

Melequento e os gêmeos se adiantaram, e desceram seus machados ou jogaram seus próprios corpos contra as portas de madeira do templo, trancadas por dentro.

— Perna de Peixe! — Röffa gritou. — Vem ajudar a arrombar isso aqui agora!

O garoto parou por um segundo.

— É por causa do meu tamanho?

— O que você acha? — Melequento resmungou com deboche impaciente.

Só vem logo! — Ela berrou a plenos pulmões com a voz estridente.

— Estou indo! Estou indo!

— Se joga aqui comigo, companheiro — Töffe soou incrivelmente tranquilo para a situação.

Ele falou dando vários passos para trás antes de lançar a toda velocidade contra a madeira. Claro que, do jeito que era, não mais efeito do que um gato causaria. Mas quando os dois se jogaram contra a porta juntos, o resultado foi até visível. A cada vez que se afastavam, os outros aproveitavam para descer os machados, agora com Soluço e Astrid se unindo ao trabalho.

— E você, vai se foder! — Perna de Peixe cuspiu para Melequento entre um suspiro e outro, pronto para tomar um novo impulso e atingir as portas. O outro só riu, soando mais histérico do que o normal pelo sangue quente de guerra correndo por suas veias.

Com eles e as quatro lâminas, não demorou muito para que as portas cedessem. Àquela altura, Hilde e Dagur os alcançaram nos degraus. A mulher pareceu perplexa ao ver Töffe se arremessando com tanta energia, mesmo que ele ficasse tonto por alguns segundos e caísse direto no chão com o impacto.

— O moleque está usando o próprio corpo como aríete? Fraquinho assim?

Soluço suspirou, ofegante, e balançou a mão.

— Nem se preocupe com ele, já passou coisa pior.

Hilde continuou confusa, mas só deu de ombros e se uniu aos berkianos e Dagur. Juntos, eles desferiram os golpes finais necessários para que elas se abrissem de vez.

Demorou um pouco para Soluço acostumar a vista à penumbra do local fechado, mas mais ainda ao brilho colorido das três janelas mais próximas do altar. Ele nunca vira vidro daquele jeito, ou arranjado de tal forma que ilustrava imagens, como a de um homem jovem pendurado em uma cruz, coroado com espinhos. Aos seus pés, uma mulher chorava lágrimas vermelhas.

Abaixo da janela, uma mesa de pedra maciça servia de altar, com um livro enorme aberto no centro, cercado de velas, um cálice de prata e outro enorme crucifixo dourado.

Soluço não foi o único que precisou parar para recuperar o fôlego diante... daquilo. Os sons chorosos de um homem encolhido no fundo do local, perto do altar, o fizeram recobrar a consciência. Talvez ele fosse o sacerdote daquele lugar.

O rapaz o observou, tão trêmulo que dava medo, as lágrimas escorrendo pelo seu rosto. Ainda assim, ele reuniu forças para ficar de pé diante dos saqueadores, movendo uma das mãos no ar, para cima, para baixo e então para os lados, enquanto murmurava palavras desconhecidas. Uma prece? Ele ainda tremia e vacilava, mas não se permitiu cair ou sair de perto do livro e da cruz. Apavorado, sim e muito, porém disposto a defender o que lhe era sagrado.

Soluço respeitava aquilo.

— Não peguem nada do altar! — Levantou a voz. — Vamos procurar onde está o tal ouro guardado que eles recebem do povo.

— Olha o tamanho daquela cruz...

— Eu disse — sua voz sibilou fogosa, tal qual a de um dragão, sem nem prestar atenção em quem tinha feito o comentário — não peguem nada do altar. Só os pagamentos.

— Ali — Hilde apontou com o dedo.

Só então ele viu uma porta discreta na parede ao lado do altar, onde antes o sacerdote se encolheu. O grupo avançou até ela, esta sendo aberta com muito mais facilidade do que as anteriores. Os queixos de todos caíram no ar.

Lá dentro, vários baús estavam espalhados pelo chão, alguns ainda abertos com visíveis moedas de ouro e prata armazenadas ali. Nas prateleiras nas paredes, uma série de cálices e candelabros dos mais variados metais. Mais adiante, ao fundo, estava o estoque mais banal, com incontáveis velas, potes de tinta preta, livros e alguns pergaminhos empilhados em buraquinhos nas estantes de madeira.

— Espera, as pessoas simplesmente dão tudo isso? — Melequento exclamou.

Perna de Peixe assentiu, sem esconder que estava tão surpreso quanto os outros.

— Acho que chamam de... dízimo. Algo assim.

— Cara, eu aceitaria receber um dízimo também — Töffe riu.

E em um piscar de olhos, cada um se lançou sobre um baú e começou a arrastá-lo para fora, quase tão agitados quanto na luta do lado de fora. Com uma quantidade daquelas de riquezas, era difícil conter o desejo, até mesmo para Soluço, Astrid ou Perna de Peixe.

A retirada não levou mais do que uns minutos com todos se ajudando a carregar o peso para os degraus exteriores da igreja. O sacerdote continuou encarando-os em silêncio com os olhos arregalados em um misto de desespero e repulsa, ainda em posição defensiva diante do altar. Soluço não o julgava pelos seu ódio e tentou ignorá-lo para completar logo a tarefa.

Quando enfim terminaram, o grupo saiu e fechou o que restou das portas novamente atrás de si.

No exterior, a maioria dos vikings já se reunia naquele ponto, trazendo consigo seus espólios enquanto outros buscavam por caixas, carroças e carriolas.

Mas havia algo a mais. Algo ainda ao longe, se esgueirando por Pirn, ele só não conseguia identificar o quê. Sua atenção caiu sobre o corpo de um homem alguns metros à frente. Ele trajava uma armadura completa e uma espada de qualidade altíssima escorregava de seus dedos gelados.

Ele não era um cidadão qualquer.

E então, ele entendeu o que havia de errado. Era um ruído para além das casas de Pirn, mais e mais perto. Agora sim conseguia escutar com clareza e o som de um exército em marcha era inconfundível. O bater ritmado se aproximou, a cada passo anunciando o perigo que corriam. Mesmo que todos ali fossem bons guerreiros, não estavam preparados para um cerco inimigo tão grande que ecoava à distância.

Pela visão periférica, conseguiu vê-los chegando, saindo das árvores assim como eles mesmos o fizeram antes.

Agora, sentiu-se um pouco idiota por ter pensado que uma cidade com tanto ouro e uma igreja daquelas não contaria com o apoio de um exército escondido, esperando por uma chance de derrotá-los quando menos esperassem. Era fácil demais para ser verdade.

Foram emboscados para lá.

— Soluço! — Astrid berrou, chamando-o de volta à terra. Ela estava de pé na parte mais alta da escadaria mirando para longe. O machado pesava nas suas mãos, apontando em direção à saída da cidade. Mas ele já tinha visto o que menos queria antes mesmo de ela completar a frase. — Estão com cavalos!

Havia apenas uma coisa, uma chance de não serem massacrados por homens treinados e montados.

Soluço disparou para a praça que vira antes e gritou a plenos pulmões por seu dragão. Há centenas de metros, escutou o rufar de asas agitado, preparado para o voo.

À sua volta, explodia um pandemônio de pessoas carregando pertences para fora das casas, com seus donos resistindo com unhas e dentes para manter o que tinham. Não tinha tempo para prestar atenção em nada e rezou uma prece silenciosa para que ninguém fosse em sua direção.

As ruas finalmente se abriram para o campo aberto. Soluço esticou o braço e Muninn já disparou em sua direção.

Em um movimento automático, ele se agarrou na sela e impulsionou o corpo para cima, quase que ao mesmo tempo em que o dragão correu na direção oposta, pegando impulso para se lançar para o alto, tão sincronizados que poderiam ser uma única criatura.

Em apenas dois bateres de asas, os dois subiram e chegaram às margens da cidade. Soluço viu pelo menos quinhentos soldados armados até os dentes, vestidos em cota de malha e couro fervido. À cavalo ou a pé, todos carregando espadas, lanças e arcos.

E todos eles berraram ao olhar para cima.

Soluço circundou o exército, tentando se manter no ar mas ainda sobrevoar o mesmo local. A cada curva, cabeças desesperadas os acompanhavam sem piscar. Como primeiro e último aviso, ele deu dois tapas no pescoço de Muninn e queimou um aglomerado de árvores à sua frente.

O mais sensacional e assustador de um dragão da espécie dos furacões era que seu hálito carregava tamanho calor que uma simples baforada de ar quente incendiava seus alvos, sem nem mesmo precisar soltar fogo como outros dragões.

Gritos ainda mais guturais e relinchos nervosos ecoaram pelo vento. Não era difícil para Soluço imaginar o terror de ver tal criatura que ainda por cima aparentemente apenas abria a boca para algo à sua frente queimar. Com mais uns poucos giros ao redor do exército, Soluço enfim pousou entre os soldados e a cidade, onde os vikings já se reuniam para assistir o que se desenrolava.

Todos ficaram tão calados que um alfinete causaria um estrondo se tocasse o chão.

E então, um por um, com mãos trêmulas e faces lívidas, os escoceses jogaram suas armas aos pés do dragão. O último a se render foi o cavaleiro à frente de todos, montado em um garanhão negro e trajado em uma armadura que com certeza foi forjada em um castelo.

O homem ergueu o elmo e lançou-o ao chão, revelando um rosto muito mais jovem do que Soluço esperou, somente alguns anos mais velho do que ele próprio. Havia alguma coisa nele, nos seus traços, que lhe era familiar, mas não sabia dizer bem de onde ou parecido com quem. O rapaz loiro o encarou, com os olhos saltando de Soluço para Muninn e para os vikings atrás dele. Era pavor o que viu se esgueirar em seu rosto ou... cobiça?

Mas antes que pudesse ver melhor, o rapaz abaixou a cabeça em rendição. Os nórdicos urraram em êxtase acompanhados por Muninn. Estava acabado, e muito melhor do que Soluço pensou que terminaria.


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