Reino em Cinzas escrita por Julia A R da Cunha


Capítulo 12
Merida


Notas iniciais do capítulo

Acho que o capítulo grandinho justifica a demora de um mês, né? kkkkkk
Bom, vou tentar postar mais rápido e também encurtar os textos daqui pra frente. De todo modo, espero que gostem e boa leitura ♥



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Assim que o sol nasceu novamente, Astrid acordou as garotas e as chamou para o desjejum, desta vez com a companhia adicional de Sean. Logo após de comerem, ela entregou grandes bolsas de couro a cada uma das que iriam embora e explicou algumas coisas.

— Ela diz que em na bolsa estão duas trocas de roupa, um pedaço de pão, algumas frutas e filetes de carne seca para a viagem — Sean traduzia. — Cada uma das mulheres que vão acompanhar vocês também separou as mesmas coisas que vão entregar assim que chegarem na região segura onde vão levá-las.

Elas assentiram em silêncio e se encararam. Merida mordeu o lábio inferior. Era a hora.

— Eu... — Merida suspirou. — Me desculpem se eu não consegui protegê-las como deveria. Eu espero que fiquem bem e seguras, que consigam... um novo lar. Se não acharem ruim ou qualquer coisa, assim que puder eu... gostaria de ver vocês de novo.

As jovens respiraram fundo, absorvendo suas palavras. Foi Verica quem abriu um sorriso, o primeiro que Merida via desde que a conheceu naquela floresta.

— Seria uma honra, princesa — ela respondeu com um olhar quente e um aperto de mãos. — Não falhou em nada. Fez o que podia e eu sou agradecida por isso.

Seus olhos marejaram de imediato. Cada uma das meninas sorriu em confirmação. Verica se aproximou e a abraçou com tanta força que pensou que seus ossos se quebrariam. Contudo, tudo o que sentiu foi um conforto indescritível. E assim ela repetiu, uma por uma, despedindo-se de Éua e Huctia em seguida.

Finalmente, todas, lado a lado, foram para fora. Um grupo de mulheres já estava reunido em um semicírculo, todas montadas em belíssimos cavalos. Atrás de todas, Röffa montava em um dos dragões, consideravelmente menor do que alguns outros. Ela trajava uma armadura verde reluzente, que mudava de tons a cada movimento sob a luz do sol, tal qual as costas de um besouro. Escamas de dragão, Merida notou.

Astrid gesticulou na direção de Röffa e disse algumas palavras.

— Ela vai acompanhá-las pelo ar, para garantir que ninguém, quem quer que seja, tente atacar a comitiva — Sean traduziu.

Merida assentiu, agora encarando Röffa e então as outras mulheres.

— Não deixam nada acontecer com elas, entendeu? Nada.

Mais uma vez, Sean repassou a mensagem. A moça ficou séria por um piscar de olhos e confirmou com um gesto, assim como as outras. O trio de escocesas montou em seus próprios cavalos e acenou uma última vez antes de seguirem em frente, seguidas pelo eco do trotar dos animais e das bufadas de ar a cada bater de asas do dragão.

Já durante aquela mesma tarde, Sean decidiu ensinar algumas palavras para cada uma das meninas. Foram bem mais fáceis de aprender do que Merida imaginou a princípio. Elas sabiam que ormar, a palavra que lhe chamara atenção, significava “dragões” ou “serpentes”; e para um só era ormr. Sabiam que “água” era vatn, “comida” era matr e “dor” era mein. Com isso, conseguiram comunicar o básico de fome, sede e incômodos.

Merida repetiu cada palavra para si mesma o dia inteiro, sentindo o fluir das vogais e o tremor dos erres. Ela também as recitava sempre que via qualquer coisa comestível, qualquer poça ou jarro de água. Ao final do primeiro dia de aulas, os ensinamentos já tinham sido decorados.

A princesa também observou que Hikken e o loiro grande – que ela notou chamarem de Fiskebein – foram atrás de Sean logo depois que elas terminaram. Ela os viu repetindo palavras gaélicas da mesma forma que ela fazia, mas não conseguiu escutar quais estavam decorando pela distância.

Além disso, o som de lâminas se batendo do lado de fora chamava mais a sua atenção.

Merida correu para ver o que acontecia e encontrou Astrid, o rapaz moreno e o outro loiro lutando no meio da praça. Não, lutando não, treinando! Todos os três usavam armaduras de couro batido e mesmo de longe, sua experiência lhe permitia perceber que as lâminas eram afiadas de verdade.

Os três se moviam com rapidez, avançando um contra o outro como em uma dança, apesar de cada um ter seus próprios passos. O loiro era meio desengonçado, caindo do jeito que caísse, correndo e atacando de qualquer forma e esperando que desse certo. Já o moreno era bruto, firme, bem mais ofensivo, como se um fogo interno o movesse. E Astrid, bem... De alguma forma ela conseguia ser mais dura do que ele, porém claramente mais decidida, simples, não precisava de muitos movimentos ou esforço para bloquear algum golpe e logo desferir outro.

Ela girava de um lado para o outro, defendendo-se dos outros dois. Seu corpo deslizou para o lado para desviar do loiro e, de repente, ela ergueu a espada sobre a cabeça e desceu com tanto peso que pensou que a do moreno se partiria ao meio. O som forte do ferro vibrando fez o coração de Merida estremecer.

Os dois riram, aquela risada agitada e quase nervosa que ela mesma tanto dera e ouvira seu pai dar nos treinos em Dunbroch. Deus, como ela ansiava por ter uma espada em punho para dançar com eles! Ela soltou o ar, só então percebendo que o segurava pela animação.

Atrás deles, o loiro se levantou e avançou silencioso. Em um segundo, Astrid ergueu o pé direito, apoiou no torso do outro e o empurrou antes de girar mais uma vez e parar a ponta da arma abaixo do queixo do rapaz. Ele ergueu as duas mãos em rendição.

— O que ‘tão fazendo?

Merida quase se assustou. Muire e Afraig estavam paradas ao seu lado, a primeira com uma expressão em um misto de curiosidade e temor, já a segunda, intrigada, porém mais resguardada.

— Treinando — respondeu. Sua voz ainda soou extasiada.

Afraig a fitou.

— Gosta disso, não é?

— Sim. Imagino que vocês não?

Muire foi a que mais pareceu refletir sobre a pergunta, com os olhos perdidos nos três jovens conversando do outro lado da praça. Ela torceu o canto da boca enquanto pensava.

— Não sei. Nunca tive como aprender mais disso pra saber se gosto. Mas acho que ia querer aprender sim. Pelo menos pra me defender. E você?

— Ah — Afraig deu de ombros — já bati nuns menino que aparecia lá na fazenda com uma forquilha. Um bando de atrevido.

As três riram imaginando a cena. A princesa disfarçou a leve vergonha que sentiu por simplesmente supor que elas não gostariam de uma boa briga. Talvez ter ficado tempo demais escutando que era uma garota esquisita com gostos incomuns de fato a tivesse feito acreditar que era.

— Mas é, eu não ia reclamar de saber usar uma espada... ou uma lança. — Afraig completou.

Merida se voltou para ela com uma expressão brincalhona.

— Você tem jeito de quem usaria uma lança mesmo. E você... — Analisou Muire de cima abaixo. Não era uma menina muito alta, só uns dois dedos a mais do que ela própria, mas seu corpo era mais curvilíneo e menos firme, apesar de ter braços fortes, mesmo que não musculosos. Também não lhe parecia o tipo que avançaria muito numa briga e sim de que preferiria táticas defensivas. — Uma espada curta, talvez até um arco.

Muire sorriu com a resposta, tímida e animada.

Sean foi até elas, seguido por Hikken e Fiskebein, e eles logo seguiram os olhares das moças para o trio que recomeçava o treinamento. O jovem chefe não conteve um largo sorriso orgulhoso ao ver a esposa destruindo os outros dois de uma vez só.

Merida o observou, atônita. Todos os homens que já a viram lutar a encaravam, no mínimo, em choque, ou talvez divertimento se fossem seus irmãos ou outros meninos pequenos. Os outros carregavam desgosto, estranheza, uma perplexidade agressiva nas expressões. O único que a via com orgulho era seu pai. Engoliu em seco como se pudesse afundar a saudade mais um pouco, mas um pensamento diferente também apertou seu peito.

Um dia, ainda meses antes do seu último aniversário e da apresentação dos pretendentes, sua mãe tentara puxar conversa sobre o assunto. Como sempre, olhara torto para o arco de Merida antes de falar. “Abriria mão... disso quando chegasse a hora de se casar?” ela perguntara apontando para a aljava. “Não” ela respondeu com veemência, a voz tão dura quanto uma rocha. “Se algum homem tentasse tirar minha liberdade e as coisas que eu gosto de mim, ele nunca nem chegaria perto de ser meu marido.” Elinor respirou fundo com pesar. “Não sei se é bom fantasiar esse tipo de coisa, filha. Não vai ser fácil achar um que concorde. Já tem sorte de ter o apoio do seu pai.”

Merida encarou Astrid de novo, de espada em punho, ajeitando os longos cabelos loiros em um coque antes de prosseguir com os ataques. Mas agora a via com admiração sincera. Era disso que ela estava falando o tempo todo! Por outro lado, ver os dois ali, na sua frente, afrouxou o aperto desconfortável e trouxe em seu lugar um calor relaxante. Não que precisasse da aprovação ou reprovação de alguém, mas era sempre um prazer ver que nunca ficou “fantasiando”.

Pela visão periférica, notou Muire cutucando Sean.

— Quais são os nomes deles mesmo? — Apontou para os dois rapazes. Merida passou a prestar atenção na conversa. Quanto antes soubesse quem era quem ali, melhor.

— O loiro é o Töffe, irmão gêmeo da Röffa. O outro é o Snytulf, acho que lembro do Hikken comentando que são primos. Os pais eram irmãos ou algo assim. — Sean se interrompeu para conversar com os dois ao seu lado. Trocaram algumas poucas frases em nórdico e ele retornou sua atenção às meninas. — É, é isso mesmo.

— Hm, entendi.

Merida olhou para trás seguindo o ruído de um leve arrastar de pés e da bengala batendo no chão. O velho vinha calmo, logo chamando a atenção de Hikken que o ajudou a se apoiar e ir até um dos bancos à frente do salão. Atrás dele, Deirdre e Bodicca que pararam caladas ao lado das outras três. O jovem retornou ao seu local anterior assim que ajeitou o homem.

— E ele? — Merida questionou.

— Ah, chamam ele apenas de Karl. Significa “velho” em nórdico. Então é só... o Velho — Sean riu. — É o avô materno do Hikken. Também é o thulr da tribo, é um... sábio, um conselheiro, conhece as tradições antigas e atuais, e ajuda a tomarem decisões que respeitem essas leis, mas não é aquele que fala as leis. É como um... intermediário, bom, como falei, um sábio. Os conselhos dele ajudam a manter a... digamos, “sorte”, da tribo. Dizem que, além disso, o Velho vê coisas.

— Vê coisas? — Merida ergueu uma sobrancelha.

— Tem uns sonhos, visões. Segundo o que me contaram, já revelou várias coisas importantes para a tribo até anos antes de acontecerem.

Ela arfou. Como se soubesse o que conversavam, o Velho a encarou com uma expressão intrigante no rosto. E quem disse que não sabe? Refletiu. O que mais ele via? Será que descobriu logo de cara, de um jeito ou de outro, quem ela era? Afinal, desde a primeira noite ele a olhava daquele jeito instigante, como se a analisasse e, ao mesmo tempo, a desafiasse. O que mais ele conhece? Saberia dos sonhos dela à noite, das luzes azuis? Talvez...

À distância, o Velho mexeu a cabeça discretamente para cima e para baixo, fitando-a no fundo dos olhos. Merida engoliu em seco e ele riu em resposta. Imediatamente, ela tentou se recompor para disfarçar o choque.

— Mas... Como ele se chama de verdade?

— Ah, eu não faço ideia do nome real. Ou melhor, não sei o nome de ninguém aqui direito, a não ser a Astrid.

As cinco o encararam e depois uma a outra, confusas.

— Como assim? — Afraig perguntou.

Sean deu uma risada nervosa e mordeu o lábio inferior.

— Bom, é que... Os nomes deles são palavras específicas, não só como nomes. Eu já perguntei se era assim que se chamavam de verdade e eles não me responderam, só olharam um para o outro, riram e mudaram de assunto.

— Mas o que ‘cê quer dizer com “palavras”? — Deirdre reforçou.

— Bom... — Ele virou-se para os dois jovens ao seu lado, que já fitavam o grupo escocês com olhares curiosos. — Fiskebein significa “Perna de Peixe”. Hikken é “Soluço”, Snytulf é “Melequento” ou algo assim. Os gêmeos... É como se Röffa e Töffe fossem apelidos de um outro apelido, uma forma curta para o outro jeito que os chamam. A única que não usa isso é a Astrid.

As moças continuaram sem entender direito. Quer dizer, Merida tinha entendido muito bem o que ele disse, mas não conseguia imaginar qual o motivo daquilo. Ter apelidos era algo normal, porém ninguém se apresentava para o mundo os usando, muito menos um chefe. Títulos sim, apelidos de guerra, mas aqueles? Não fazia sentido. Enquanto pensava nisso, viu Sean explicando a situação para os dois, que repetiram a reação que ele relatou: trocaram olhares um com o outro e riram disfarçadamente.

Hikken – ou Soluço? Não sabia mais o certo a dizer – falou diretamente com as meninas, olhando-as e gesticulando enquanto explicava. Sean começou a traduzir.

— Em Berk, alguns costumes são diferentes do que nas outras tribos, como explicou ontem. Uma das coisas únicas da tribo é a questão dos nomes. Algumas pessoas acreditam que os filhos recém-nascidos podem ser sequestrados por trolls ou outras criaturas, mas só conseguiriam isso se soubessem o nome exato de quem levavam ou se fosse um nome tão ridículo que não veriam motivo de levar a criança.

— Como os daoine sìth — Merida e Muire responderam ao mesmo tempo. Merida continuou sozinha. — Há quem acredite que eles podem exercer poder sobre você apenas se souberem o seu nome completo, outros que os sìth roubam crianças quando veem a chance.

Sean concordou com a cabeça e explicou aos dois o que disseram antes de continuar.

— Isso! Então, como veem, nossos povos não são tão diferentes quanto podem achar. — Soluço arqueou as sobrancelhas de modo sugestivo quando disse isso. — Enfim, o caso é que há sim outro nome que eles têm e só os mais íntimos conhecem, mas Soluço, Perna de Peixe, Melequento, são usados por tanto tempo por todo mundo, mesmo entre eles, que eles não têm como dizer que esses não são os seus nomes também.

— E de onde tiram esses nome? — Deirdre perguntou.

— Alguns são escolhidos assim que nascem, por alguma característica que eles têm. Soluço, por exemplo, é um nome que costumam dar em Berk para filhotinhos que nascem muito pequenos, os menores da ninhada. E, segundo o que a mãe dele contou, ele nasceu antes da hora, então era bem pequeno. Então... virou Soluço. Outros são pela personalidade, como Röffa e Töffe, que na verdade são... Hm... “Cabeça Quente” e “Cabeça Dura”? Uma coisa do tipo. A maioria é bem maldosa, para ser sincero, uma piada de algo que foram, ou faziam, ou tinham quando pequenos.

Nesse momento, os três que treinavam se aproximaram do grupo, escutando a conversa um pouco antes de terem chegado ali. Snytulf – ou Melequento? – veio correndo, esbravejando com aquelas palavras fortes que mais faziam parecer que uma guerra estouraria. Porém, o grupo inteiro só começou a rir. Merida entendeu na mesma hora que o nome dele provavelmente vinha de alguma coisa bem vergonhosa.

Soluço ria e tentava falar, enquanto o primo tentava tapar sua boca com ferocidade. Sean também não segurou a risada ao ouvi-los.

— Melequento era...

O rapaz voltou-se para ele, gritando e apontando um dedo.

— Ele não quer que eu conte — gargalhou. — Está implorando, na verdade. Tudo bem, outra hora eu conto para vocês de um jeito que ele vai achar que eu não falei nada.

Sean repetiu a mentira para o rapaz, que relaxou, apesar de manter o olhar de suspeita. Só então, ele notou melhor as cinco à sua frente e pareceu acanhado, talvez pelo papel que tinha acabado de prestar ou então as expressões confusas e sérias delas.

Merida não estava nervosa, mas só tentando entender e ainda se sentia cansada de toda a sobrecarga emocional dos dois dias anteriores, porém, não podia responder pelas outras. A mais calada de todas era Bodicca. Considerando que ela foi com certeza quem mais sofreu desde a captura, era totalmente compreensível. Ele pigarreou e se ajeitou, voltando a uma pose mais contida e madura, mesmo que seu rosto ainda não correspondesse por completo à postura.

E foi ela quem cortou as risadas, com sua voz baixa e profunda.

— Como posso confiar em quem nem me conta o nome de verdade?

Os sorrisos sumiram quando ouviram as palavras em seu idioma. Cada um deles se olhou e respirou fundo, todos pensativos.

— “Esses são os nomes deles” Astrid disse. “Tanto quanto qualquer outro, ou melhor, até mais do que os outros. São os nomes pelos quais são chamados, como conversamos, como brincamos, como falamos sério, nós, amigos há tantos anos. E é por esse nome que nos conhecem também. Tudo bem?”

Bodicca respirou fundo e permaneceu calada por o que pareceu uma eternidade. Finalmente, ela fechou os olhos e assentiu. Deirdre esfregou uma das mãos com carinho sobre o ombro da outra, que a segurou de volta. Os nórdicos demonstraram feições acolhedoras, mesmo que talvez a moça não fosse corresponder de imediato.

Então, pelo canto da visão, Merida vislumbrou o Velho levantar uma das mãos e gesticular para que ela se aproximasse. Ela virou-se para Sean, nem sabia o porquê. O homem apenas mexeu a cabeça e seguiu ao seu lado. Ao chegarem na frente dele, o Velho sinalizou para que ela se sentasse ao seu lado. Merida franziu o cenho. Ele disse alguma coisa que Sean logo traduziu.

— Ele está dizendo que pode ficar calma. Ele só tem umas coisas para te dizer.

Relutante, ela se sentou, bufando. O Velho a contemplou profundamente sem parar, encarando-a sem pausa. Depois de um tempo, aquilo se tornou desconfortável e era difícil para ela continuar, mas seu orgulho a impedia de desviar o olhar.

That kann ek annat er thurfu ýta synir their er vilja læknar lifa. Njóti sá er nam heilir theirs hlýddu.

— O que é isso?

Sean travou o maxilar, em alerta.

— Palavras antigas — respondeu, apenas. — Ensinamentos.

— De quê? — Sean repassou a pergunta.

— Vai saber logo, ele disse. “Vai saber, Melusina”.

A princesa balançou a cabeça.

— Esse não é o meu nome. Acho que confundiu.

O Velho negou e continuou.

— Ele disse que sabe disso.

— Melusina — o ancião repetiu com veemência e então riu baixo. — Vitka konungsdóttir.

— “Princesa feiticeira”, ele disse.

Merida sentiu o rosto queimando de raiva.

— Está brincando comigo?! — Ela falou, trincando os dentes, tentando conter a voz. Mesmo assim, não levou um segundo para que o neto parasse de pé entre ela e o avô.

Sean lhe contou o que ela disse com claras ressalvas no tom de voz. Mesmo assim, o Velho permaneceu do mesmo jeito pacífico e reflexivo, com aquele maldito sorriso enigmático. Sua voz ecoou tão calma como uma brisa. Merida queria esganá-lo por isso, porque conseguia ver que ele estava calmo de verdade, e nem mesmo fingia só para irritá-la. A única irritada era ela e, obviamente, seu neto que a triturava com os olhos.

— Não — Sean traduziu. — Nunca brincaria com essas palavras. Está ensinando. Diz que te chamou de Melusina pois é quem é, de princesa feiticeira porque é o que você é e sabe muito bem disso. Depende de você ter maturidade para ouvir, ele diz. De todo modo, ele sente muito se a ofendeu, não foi a intenção.

O rosto dela continuou queimando, mas dessa vez, havia um toque a mais de vergonha. Nem ousou olhar para Soluço, apesar de ter reparado em sua postura se contraindo e então relaxando.

O Velho pegou em uma de suas mãos, chamando sua atenção de volta. Ela o fitou e encontrou a mesma expressão profunda e tranquila de sempre. Ele levantou a outra mão, apontou-a na direção de sua cabeça e mexeu as sobrancelhas, como se pedisse permissão. Ainda acanhada, Merida fez que sim, e ele a tocou na testa. Por debaixo da palma, viu os lábios dele se mexendo em silêncio, como se sussurrasse, mas, de alguma maneira, a princesa pôde ouvir a voz dele ecoando dentro de sua mente em palavras desconhecidas. Um formigamento percorreu toda a região onde ele a tocava e se expandiu, irradiando pelas têmporas, pelo rosto, descendo pelo pescoço e por todo o corpo. E então, o formigamento passou, dando espaço para uma calmaria que não sentia há semanas. Era diferente da que sentira há dois dias, do torpor vazio do cansaço extremo, do choque e do luto; este era realmente pacífico como uma tarde de verão na floresta, cercada de pequenos pássaros cantarolando.

Devagar, ele retirou a mão de sua cabeça e sorriu para a garota. Era o sorriso de um sábio e também o de um avô. Merida suspirou e piscou, extasiada. Nem mesmo a raiva ou a vergonha anteriores estavam mais lá.

— Obrigada — ela murmurou com sinceridade. O Velho não pareceu precisar de tradução para entender. Ele cobriu a sua mão com a outra e deu-lhe leves tapinhas carinhosos.

Merida se levantou e retornou para perto do grupo, onde encontrou rostos curiosos de ambos os povos. Ela não se importou e só deu de ombros para todos; tudo o que sentia era a calmaria que ele trouxe. As meninas continuaram encarando-a mesmo assim.

— Mais tarde eu explico melhor, tudo bem?

Elas assentiram e, assim, o dia prosseguiu.

Como Perna de Peixe – Fiskebein, Merida repetia para si mesma. Precisava lembrar de ambos os nomes, no seu idioma e nos deles – dividia uma cabana com Röffa e ela ainda não retornara, ele decidiu passar o jantar no salão com Soluço – Hikken, ela repetia, Hikken— e Astrid. Do mesmo modo, Töffe estava cansado de ficar sozinho no seu próprio chalé, e foi seguido pelo de cabelos pretos – os nomes dele eram os mais complicados para Merida memorizar – que não quis ser o único do grupo a não participar.

De repente, o salão estava cheio e a comida começou a ser preparada bem antes para que pudessem ter o bastante para todos. Ainda era estranho para ela estar no meio de tantas pessoas depois da morte de Verctissa, além da sensação de deslocamento por ainda estar conhecendo cada pessoa ali dentro, da confusão para entender o que o Velho queria dizer com as palavras que lhe disse mais cedo. Mas havia também a paz dolorosa de gostar de finalmente ter mais pessoas ao seu redor ao invés do isolamento das semanas anteriores, porém em conflito por presenciar como suas companheiras se sentiam.

Bodicca ainda se encolhia nos cantos do salão, analisando todos de longe como um animal cercado de predadores. Mesmo que a acalmassem durante o dia, Merida já ouviu o seu choramingo durante a noite, pouco antes de dormir ou logo depois de acordar, ou os solavancos que ela dava de repente na cama, talvez tentando escapar de algum pesadelo que a lembrasse dos seus agressores.

Merida ainda gostaria de sentar-se ao seu lado e conversar em algum momento, acolhê-la e se aproximar como estava começando a conseguir com Muire e Afraig. Mas não seria agora, não na frente de todos e não quando ainda lhes devia contar mais sobre o que estava acontecendo. Se tinha algo de que Bodicca precisasse, era paz, espaço e privacidade.

Felizmente, nenhum dos jovens se exaltou durante o jantar ou na pequena ceia que fizeram antes de irem dormir, mantendo recato o suficiente para respeitar o tempo delas. Na verdade, quando olhava bem, Merida ainda via resquícios dos olhares perdidos, perplexos e vidrados de Soluço e Astrid de quando assistiram a morte de Verctissa, resquícios quase disfarçados que se forçavam para fora sempre que um momento de silêncio se instalava. Pensando melhor, talvez fosse bom para eles estarem cercados de amigos.

As moças não demoraram para ir para cama depois de darem os últimos goles no leite de cabra que lhes serviram na ceia. Merida explicou-lhes tudo o que o Velho lhe disse e o que fez assim que fecharam a porta do quarto, mas, assim como ela, ninguém tinha uma resposta para suas dúvidas.

— Acho que vai ter que só fazer o que ele falou e esperar — Deirdre refletiu fitando um ponto vazio na parede.

— Sim... — Merida suspirou. De repente, suas pálpebras pareciam pesadas como sacolas cheias. — Boa noite.

— Boa noite — cada uma delas ecoou ao se deitar. Alguém apagou a vela que tinham recebido dos anfitriões e o cômodo mergulhou em escuridão.

Os sonhos voltaram de madrugada. Mas Merida nunca vislumbrou aquele lugar antes.

A floresta de sua terra a envolvia, mais profunda do que de costume e mais verde, com o feixe de luz solar refletindo sobre as folhas para criar diversos tons de cor muito mais vívidos do que no mundo normal, cintilando como joias. Acima das copas, vislumbrou a figura de um falcão voando majestoso, piando para o vento.

Ele planou em círculos sobre a região, direcionando sua atenção para uma clareira poucos metros à sua frente. Ela correu para lá e o assistiu circulando, circulando, até enfim, pousar sobre uma grande rocha.

Assim que suas garras tocaram a pedra, o falcão desapareceu e deu lugar a uma grande mulher de longos cabelos ruivos, coberta por um manto de penas. Em uma das mãos, segurava uma lança fincada na terra. Suas feições eram tão belas que Merida sentiu a cabeça girar, porém eram também firmes, penetrantes. Ela exalava uma energia sedutora, poderosa, mágica e forte como de uma guerreira.

Um galho estalou à sua direita.

Merida deu um salto e se virou. Encontrou ali outra rocha onde outra mulher sentava. Assim como a primeira, os cabelos ruivos caíam em ondas por sobre seus ombros e ela era belíssima. Mas seu rosto era mais pacífico, sereno e acolhedor, mesmo que sua expressão estivesse séria e pensativa. Seu vestido verde se camuflava na mata ao seu redor. Aos seus pés, notou um saco de trigo e um martelo de ferreiro. Sua energia era quente como a de uma mãe ou uma irmã distante, esperando pelo seu retorno ao lar.

Porém, o que mais prendia a atenção da princesa era a chama alta e brilhante que queimava em suas mãos, repousadas calmamente sobre o colo.

E assim o sonho se seguiu. Com as duas paradas, analisando-a por um tempo infinito. Merida não se cansou nem se irritou. Assim como elas, apenas permaneceu ali, permitindo-se ser estudada e apreciando a companhia de ambas.

— Seu treinamento começa amanhã — a senhora das chamas entoou de repente, com sua voz ecoando por cada parte do espaço ao seu redor e cada parte do seu corpo. E então soprou sobre seu rosto, mesmo de longe empurrando-a de volta à realidade.

Quando abriu os olhos pela manhã, uma pena de falcão repousava ao seu lado no travesseiro.


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