A Profecia das Rosas escrita por Kurai


Capítulo 1
Don’t let me be misunderstood


Notas iniciais do capítulo

A música desse capítulo é Don’t let me be misunderstood, de Santa Esmeralda.
Eu gostei da música, a propósito.
Quem leu o disclaimer sabe que essa história surgiu quando minha eu de onze anos atrás criava histórias alternativas da Cinderela para minha irmã antes de dormir, então apesar de não ter sobrado nada da história das princesas aqui, um clichê ou outro é inevitável. Perdoem e não desistam de mim! Boa leitura.



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Ela não deveria estar ali.

Abaixada atrás de uma coluna, observando os estilhaços que voavam do gesso à sua frente com cada bala, o coração disparado, a arma em suas mãos mais pesada do que se lembrava de jamais tê-la sentido, Thaís teve certeza absoluta disso.

Não deveria estar ali.

Deveria estar em casa a essa hora. Em seu quarto. Talvez estudando. Talvez mexendo em redes sociais. Sem correr risco... De morrer, e tudo mais. Como mesmo tinha acabado ali..? Tinha mesmo acordado naquela sala ou ainda estava dormindo e tendo o sonho mais longo de sua vida?

—--

Estava tudo escuro, ela se lembrava disso. Era a primeira coisa de que conseguia se lembrar, desde que tinha ido dormir no dia anterior em sua cama como qualquer outro dia. Quando acordou, estava tudo escuro.

Não escuro de anoitecer, escuro. De não enxergar um palmo à sua frente.

A próxima coisa de que se lembrou foi que, ao se sentar, notou que estava no chão. Achou que tinha caído da cama. Ao se levantar, tateando ao redor, finalmente notou que não tinha uma cama. Não tinha nada ali. Seu quarto definitivamente não tinha tanto espaço vago para dar alguns passos sem tropeçar em nada.

Ainda confusa, imaginando se não tinha ocorrido um blecaute na rua, andou pra onde se lembrava ser a direção da porta do quarto. O interruptor ficava ao lado dela, podia checar se ainda tinha luz.

Acabara de voltar a andar quando deu com a cara com força contra o que parecia ser uma parede.

Estava tão escuro que ela não pressentira a parede logo à sua frente.

Se afastando alguns passos, esfregando o nariz que inchava rapidamente com lágrimas nos olhos, ela finalmente se sentiu acordada de vez. E tinha certeza absoluta que não havia parede alguma livre em seu quarto contra a qual ela pudesse meter a cara. Não sem antes dar uma canelada em alguma cadeira ou mesinha ou cama. Estava acordada, e não estava em seu quarto.

—--

Thaís esfregou o nariz com a mão que não segurava a arma se lembrando da dor. A ponte levemente torta a lembrava de que quebrara o nariz naquele dia. Se aquela dor fosse um sonho, seu cérebro estava de parabéns pelo realismo. Mas os estouros consecutivos dos tiros que não paravam a deixavam mais inclinada a aceitar que não estava dormindo. Agarrando o revólver como se – e talvez de fato fosse – sua vida dependesse dele, tentou engatinhar para longe do grosso do fogo. Um pedaço de gesso explodiu logo acima de sua cabeça e ela voltou depressa pro esconderijo precário.

— EU SÓ QUERIA VOLTAR PRA MINHA VIDA, PUTA MERDA! — brigou ao espanar os cacos de gesso do cabelo. Os tiros hesitaram um momento. Sem dúvida os caras maus agora estavam confusos com a pior agente que já devem ter visto na vida, chorando que quer ir embora.

Ela não sabia se aproveitava a pausa para atirar, ou se a aproveitava para... Bom, sair correndo. Estavam contando com ela ali. Muita gente contava que ela cumprisse o que precisava naquele momento. Todas aquelas pessoas. Gael. Kravix. Darwin. LinMing, Alysa, Sefia, Morani. Orien. Celestelle...

Todos aqueles... Estranhos.

—--

Depois que concluiu que não estava em seu quarto e sim em um lugar aparentemente espaçoso e vazio e sem energia elétrica, Thaís entrou em pânico por cerca de cinco minutos. Balançou os braços andando aleatoriamente, chegou à beira das lágrimas, tentou chamar em voz alta por ajuda, tudo isso com o nariz inchando cada vez mais e não dando sinal de que pararia de doer. Então respirou fundo e deu dois tapas no rosto pra se acalmar e começar a pensar em um plano.

O som dos tapas ecoou longamente, comprovando o quão grande e vazio o cômodo parecia ser. Não que ela tenha precisado imaginar por muito tempo. O som também acendeu as luzes.

— Ah. Claro. Bater palmas. Não sei como não pensei nisso. — ela ironizou, semi-perplexa ao encarar as fortes luzes do teto. Pra confirmar, bateu palmas de novo, e o escuro voltou. Acendeu as luzes outra vez e suspirou. O absurdo da coincidência fez com que ela levasse um segundo para absorver onde, de fato, estava.

Spoiler: não era seu quarto.

Uma sala circular gigantesca e, como imaginara, quase vazia, tinha se materializado do meio da escuridão que sumira. Quase, porque o único objeto, localizado exatamente no centro do cômodo, era bem peculiar e difícil de passar despercebido.

Um pedaço de cristal, mais ou menos da altura de sua cintura, cortado aproximadamente na forma de um losango, estava colocado ali sobre uma plataforma baixa. Ao se aproximar, ela viu que nele estava entalhado uma rosa e algumas palavras.

Mas mais importante que o cristal sinistro era que algo que a incomodava desde que as luzes se acenderam e ela finalmente se tocara do que era: não havia porta alguma na sala. Nem janela. Nem nada. Só a parede circular. Estava presa.

Thaís respirou fundo algumas vezes pra se impedir de ter outra crise de pânico. Não era fisicamente possível o lugar não ter saída alguma. Afinal ela tinha entrado ali de alguma forma e não fora atravessando a parede. O nariz latejando, se aproximou da parede, colocando uma mão sobre ela e tentando procurar alguma fresta ou qualquer sinal de porta. Correu a mão por toda a circunferência do cômodo, o que levou vários minutos, mas a parede era perfeitamente lisa. Então foi examinar a única outra coisa ali.

Não leu o que estava escrito de primeira, focando vagamente sua atenção no entalhe da rosa. Aquele formato lhe era familiar. Onde..?

— Não se mova.

Com um pulo de susto, os olhos arregalados, Thaís se virou imediatamente na direção da voz a despeito de suas palavras. E por isso, foi recompensada com uma rasteira que a jogou de cara no chão – e seu nariz inchado terminou de quebrar ali.

Uma mão – surpreendentemente delicada, as unhas bem feitas pintadas de azul claro – a virou bruscamente para cima e ela viu o rosto de seu atacante.

Quer dizer, não exatamente viu. A garota, cujos únicos traços visíveis eram os lábios cheios, os cabelos cacheados brancos e a pele negra lustrosa, usava um gigantesco vestido rodado azul e uma máscara de plumas – um traje típico de um baile de máscaras de filmes velhos, se essas coisas existissem ainda. Era uma atacante muito elegante. E que quebrara o que sobrou de seu nariz.

— Eu disse não se mova. — ela quase sibilou, aproximando o rosto para encarar a bagunça que era Thaís de pijama, cabelos emaranhados, e nariz sangrando, roxo, e três vezes o tamanho que devia. — Quem é você? O que faz na Sala do Cristal?

Eo qe berguto. — ela tentou responder, os olhos enevoados das lágrimas de dor acumuladas ali. Ela devia estar gritando e chorando e provavelmente tentando se livrar daquela maluca, mas eram tantos absurdos acontecendo em sequência que sua mente estava um bocado letárgica. — Vozê ‘ebou beo bariz! — acusou, tentando interromper o sangramento com uma das mãos.

Aquilo pareceu desconcertar a mascarada. Ela a soltou, hesitante, e deu um olhar severo ao nariz bagunçado à sua frente antes de se levantar. Olhou ao redor, como se confirmasse que Thaís não tinha trago uma horda de invasores com ela de um segundo pro outro, e ofereceu a mão para ajuda-la a levantar. Uma mão ainda prendendo o sangue no nariz, ela aceitou com a outra, se erguendo.

— Essa sala é restrita, sabe. Meu nome é Celestelle. Você tem um bocado de respostas para dar, mas me deixe consertar isso primeiro.

Thaís se surpreendeu com o leve tom de gentileza e preocupação que conseguiu detectar ali. A maluca a tinha atacado pra começo de conversa, não deveria estar preocupada de repente! E ela tinha muito mais perguntas do que respostas, se fosse honesta. Ainda assim, abaixou a mão para que a garota de azul olhasse.

Celestelle mexeu em uma bolsa que Thaís tinha certeza que não estava ali um segundo atrás, limpou o excesso de sangue com um lenço, colocou a cartilagem no lugar – Thaís começou um grito de dor, mas teve a boca tampada no mesmo instante – e então ela colocou algo que parecia um esparadrapo ou um bandaid ou uma compressa sobre o nariz e parte do rosto. Aquilo parecia meio ridículo. Como um bandaid gigante adiantaria........???

De repente, de algum modo, após uma sensação fria e metálica correr sua pele, a sensação de que seu rosto estava errado foi diminuindo, junto com a dor. Não de uma vez, mas o suficiente para que depois de um minuto ela sentisse a diferença. Pasma, ela tocava o bandaid com a ponta dos dedos tentando entender que bruxaria era aquela quando a outra lhe ofereceu o lenço para que ela se livrasse do resto do sangue.

— Pronto. Melhor? — Celestelle perguntou, os olhos percorrendo seu rosto atentamente enquanto ela o limpava, em busca de algum problema ou outro machucado. Thaís assentiu com a cabeça, ainda pasma com o bandaid mágico. — Ótimo. Quem é você? — e outra vez, o tom preocupado foi imediatamente substituído pelo de ameaça quando ela repetiu a pergunta.

Daís. — ela tentou responder, então engoliu em seco, esperou mais um pouco do efeito do esparadrapo mágico, e tentou outra vez. — ...Thaís. Correia de Oliveira. Prazer..?

— Não posso dizer o mesmo. Como eu disse, essa sala é restrita, Thaís Correia de Oliveira. Como entrou aqui? O que quer com o Cristal?

Thaís virou a cabeça para olhar outra vez o pedaço de pedra que lhe rendera um nariz quebrado. Não parecia nem ser de diamante ou alguma pedra preciosa. E olhando bem, a sala tinha teias de aranha e poeira. Ninguém entrava ali provavelmente há alguns anos. Quem a sequestraria pra uma sala restrita sem nada e abandonada??

— Eu nada não senhora. Eu acordei aqui. Acho que fui sequestrada. Pode chamar a polícia?

— Sequestrada? — Celestelle a encarou com descrença. — O corredor é guardado. Não há outra entrada, e o castelo está bem lotado hoje. Alguém veria se trouxessem uma garota desacordada pra Sala do Cristal, não acha?

— Olha, você pediu respostas, estou dando respostas. Eu literalmente fui dormir na minha cama e acordei aqui no chão. Não sei com......Espera. Castelo? — Thaís se interrompeu, a situação bizarra se tornando mais bizarra. Estava em algum tipo de sonho ultrarrealista? Seu nariz ainda doendo discordava da ideia.

— Não sabe nem onde está? — ela ergueu as sobrancelhas em incredulidade. — Castelo de Mýthos? Lar da família real Sirius?

— Que. Família real. Isso não foi extinto tipo... Mil anos atrás? Eu tô na Europa?

— Europa..?

— Tá bem, você não sabe o que é Europa. Bizarro.

— E de onde você vem, então?

— De Minas Gerais. Uh, Brasil..? Olé, samba! — ela tentou forçar um sotaque estrangeiro, imaginando que era basicamente a única coisa que um forasteiro saberia sobre o país, até se tocar de algo. — ...Mas você tá falando português.

— Portu..? Ah!! — o ar completamente confuso de Celestelle foi subitamente substituído por uma compreensão repentina, como se ela tivesse sofrido uma epifania. O ar de compreensão mudou para incredulidade, e ela lentamente olhou da garota para o cristal, e de volta a ela. — Esse Brasil. Isso não fica em Mündi, fica?

— Múndi? Tipo em mapa-múndi..? Fica no planeta Terra, acho que isso é tecnicamente o mapa-múndi.

— Terra! — Ela repetiu, parecendo confirmar o que quer que tenha imaginado. — A profecia! Eu preciso avisar ao príncipe imediatamente — ela se agitou, olhando para o cristal de novo. — Ah, mas o baile está acontecendo, seria uma hora ruim... Hm. — Voltando a olhar Thaís, baixou o olhar para suas roupas – seu pijama de florzinhas – e franziu o cenho em desgosto. — Essas são as vestimentas comuns da Terra?

— ...Que? — Thaís conseguiu soltar, atordoada. Não entendeu mais nada do que ela dizia. Na verdade nunca tinha entendido nada desde que acordara, mas agora estava especialmente confuso. Encarou o próprio pijama e corou, se defendendo em protesto. — Isso é um pijama! Eu fui sequestrada, não tenho culpa de ter vindo parar num baile chique de príncipes aliens!

— Aliens? Não somos aliens.

— Você meio que deu a entender que não é da Terra.

— Sou... De certa forma. Só não é a mesma que a sua. Aqui, nesta dimensão, o planeta se chama Mündi. — Celestelle colocou uma das mãos em seu ombro e a encarou tão profundamente que ela se viu presa no lugar, sem fôlego. — Thaís Correia de Oliveira, você veio de outra dimensão, para salvar a nossa Terra, como previu a profecia.

—--

Aquela tinha sido a primeira vez que vira Celestelle. E sua primeira impressão dela não mudaria nos dias seguintes: um misto de fera, mordaz, teimosa e direta, com anjo, gentil, preocupado e cuidadoso. Celestelle a encontrara primeiro, e cuidara dela desde então, não deixando com que a destratassem ou que lhe faltasse nada por quanto tempo fosse ficar em Mündi. Narizes quebrados à parte, estaria perdida sem a garota.

Ela encarou o revólver em suas mãos. Celestelle dependia dela agora. Dependia que ela fizesse aquilo direito. Mas...

Mas...

Thaís nunca quis vir para Mündi em primeiro lugar. Nunca quis ser a garota da profecia. Nunca, jamais, quis aprender a atirar. Celestelle e o povo dela que a perdoassem, mas... Aquela guerra não era dela. Ela era da Terra. Queria entrar em sua casa em Minas Gerais, brincar com seu cachorro, abraçar os pais e irmãos, se jogar na própria cama. E nunca ouvir outro disparo pro resto da vida. Queria de coração poder ajudar, era uma boa pessoa, tinha até aceitado vir para aquela missão onde estava agora. Mas era uma garota assustada.

Naquele momento de hesitação onde ela poderia escolher atirar, ela optou por fugir.


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Notas finais do capítulo

Se ficou confuso, a história começa no 'presente', e alterna com ela se lembrando um pouco do passado, tipo flashbacks. O final é no presente. Esse formato não vai ficar por muito tempo, é só pra eu pegar o jeito da trama.

A música desse capítulo falava sobre alguém que tinha boas intenções, mas era humano, e estava sujeito a errar ainda assim. Cometer erros, ter defeitos, fraquejar, são todas coisas humanas, e isso não deveria fazer com que ninguém fosse 'confundido' com uma pessoa ruim. Thaís quer o bem daquele lugar estranho e suas pessoas, mas teve medo e fugiu.



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