Natal divino - Hades e Perséfone escrita por Filha de Apolo


Capítulo 1
Capítulo único




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Ele sorria, a cabeça apoiada no encosto de sua poltrona, a barriga cheia até demais, a visão levemente turva de tanto vinho que tomara. Os olhos não se desprendiam dela, independente do esforço que fizesse. A deusa parecia voar pelo salão, o vestido floral de fundo preto esvoaçando, contornando suas curvas e tentando acompanhar seus movimentos. A cauda do vestido mais longa que a frente deixava suas pernas à mostra. Ele sorria mais. Tinha sorte.

                A primeira vez que ela propôs a celebração, Hades não entendeu, mas aceitou. Eram deuses. Não havia motivo algum para comemorarem o Natal cristão. Não é como se precisasse de datas comemorativas para encher a esposa de presentes. Mesmo assim, aceitou. Como fazia com a maioria das coisas que ela propusera durante todos aqueles séculos de casamento, na verdade.

                Naquele dia, ele entendeu. Não somente por sentir que o espírito de muitas almas estava melhor. Era verdade que grande proporção dos novos humanos que morreram nos últimos anos era católica ou comemorava o Natal independente da religião. Ela tentou explicar assim. Não era mais uma festividade religiosa, era um jeito de confraternizar com a família, comer bastante, trocar presentes, agrados. Aí, sim, ele entendeu. Ele odiava sua família quase desde o início de sua vida adulta e não notara o quanto seu ódio diminuiu depois que se casou.

                Quer dizer, depois que o turbilhão que era se incomodar todos os anos com Deméter passou. Aí o ódio conseguiu diminuir. Agora, ali, num dos inúmeros salões de festa de seu próprio castelo, com uma boa porção de seus parentes presentes. Ali. Em seu reino. A maioria tendo entrado pela primeira vez na eternidade em seus domínios, ele entendeu. Talvez fosse real, daria para conviver pacificamente com eles.

                Claro que havia atenuantes. Com o crescimento do monoteísmo, o panteão estava mais fraco. Se envolvia cada vez menos com tudo. Viviam menos em função dos humanos e mais ao redor de si mesmos, refletindo-se como diminuição das disputas por poder entre eles. Se os humanos não precisavam mais deles, brigar entre si só os trairia ruína.

                Sua atenção foi cortada por Poseidon, que murmurava algo ao seu lado há alguns minutos e agora notara que o cutucar incessantemente era mais efetivo.

                -O que é? – Ele disse, se virando a contragosto. O irmão parecia o menos envelhecido dos três, mesmo com a pele curtida do sol. O rosto enrugado de tanto sorrir ainda se parecia com um humano de 40 anos, talvez. Claro que ele teoricamente poderia escolher como se parecer, porém com os anos quase nenhum deus usou isso. Era cansativo e fútil. Agora, sua forma física externa refletia quase sempre sua força interna. Ele sorria um sorriso debochado e Hades se esforçou para ouvi-lo apesar das conversas paralelas e a música alta.

                -Você vai acabar estragando esse seu terno ridículo se continuar babando assim. – Ele não segurou uma risada. Fingiu limpar uma saliva invisível escorrida por entre os lábios e se endireitou na cadeira. Seu terno elegante de corte italiano, preto, contrastava com a camisa havaiana e calça jeans do irmão.  – Não sei como você consegue. – Poseidon continuou. – Vocês são casados há o quê? Três? Quatro milênios?

                -Mais ou menos isso.

                -A mesma mulher, todo esse tempo. – O irmão suspirou. Hades conseguia identificar um misto de desdém e encanto. Desdém, pois a ideia de passar a vida inteira com uma única mulher nunca combinou com sua personalidade instável. Encanto, porque talvez fosse de fato o que ele gostaria de fazer, neste ponto da vida. Ele não tinha uma companheira, se divorciara há pouco mais de um milênio, o relacionamento desgastado com Anfitrite demais para sua paciência. Ela nunca quis ser esposa dele, eles nunca haviam se amado. Ele não queria deixa-la mal, então ela ainda governava o Pacífico. Tirava um peso dele e ainda a deixava com um pouco de poder.

                Nos dias atuais, Poseidon passava tendo casos com mulheres diferentes, a maioria mortais. Alguns duravam noites, outros, anos. Haviam se aproximado muito, ele e Hades, nos últimos séculos. Ele, ao contrário da maioria dos outros deuses presentes na sala, o visitava com certa frequência. Antes, se encontravam no Olimpo. Com a decadência progressiva e loucura de Zeus, passaram a se ver sem ele. Sempre foram mais próximos um do outro do que do irmão caçula. Quando Perséfone demonstrou interesse de visitar o mundo subaquático, Hades a acompanhou. Desde lá, estavam cada vez mais amigos.

                E Zeus... bem, Zeus não havia sido convidado para a festividade natalina. A lembrança do irmão fez os olhos de Hades varrerem o salão e pousarem na irmã mais nova. Hera vestia um elegante vestido azul esverdeado longo, ombros nus, as mangas compridas repousando da metade do braço até seu punho, esvoaçantes. Estava numa roda de conversa aparentemente animada com Nix, Caronte, Héstia e Hermes. Estava tão leve, jovial e genuinamente feliz que há alguns anos não a reconheceria. Havia finalmente se libertado das amarras do marido. Reunira a coragem para se divorciar depois de mais um dos infindáveis escândalos de Zeus. Permanecera rainha, mesmo que não estivessem mais casados, depois do irmão perceber que não conseguiria governar sem ela. Agora, lembrava muito a menina feroz que lutava ao lado dos irmãos contra o pai tirano. Jovem, determinada, com brilho no olhar.  Os irmãos naturalmente ficaram ao lado dela da separação, Hades, que nunca traíra a esposa, nunca conseguiu respeitar o caçula e até mesmo Poseidon se enraivecia dele cada vez que ele magoava a irmã. Além disso, Zeus já estava insuportável e somente piorou quando perdeu a esposa. A queda do paganismo destruiu o resto de sanidade que o deus sustentava. Agora, ele era visto raramente no Olimpo. Vivia com as mortais e deixara o trono para a ex-esposa e a filha, Atena, que reinava sem título há milênios e agora finalmente o fazia seu ter de contornar os tropeços do pai.

                Foi novamente arrancado de seus devaneios quando sua taça pesou em sua mão, enchendo-se de vinho subitamente. Buscou o olhar do sobrinho e acenou, agradecido, quando encontrou Dionísio. No meio do caminho avistou as crianças. Dois pequenos semideuses de pouco mais que 5 anos, o menino filho de Apolo e a menina, de Hermes, brincavam com uma pequena deusa, idade mortal de cerca de 3 anos, filha de Afrodite e Ares. O peito de Hades ardeu. Desde que se casaram, Perséfone quis filhos e ele resistiu, o medo de uma profecia como as tantas que corriam em sua família ser lançada sobre eles. Estremecia de pensar no que aquilo poderia significar para os dois e amava tanto a rotina que tinha com a esposa que nunca quis arriscar nada. Com o tempo, ela aceitou a situação, confessou que tinha medo de ficar superprotetora como a mãe caso viesse a engravidar e o assunto morreu assim.

Há algumas décadas, porém, Hécate teve alguns filhos com um mortal e eles ficaram morando no palácio e a felicidade da esposa em ter crianças pela casa ficou clara. Para a surpresa dele, ele também gostou da ideia. Mesmo assim, lembrava do pavor de todos quando Zeus enlouqueceu e aniquilou Métis, quem todos amavam e respeitavam, por medo da profecia. Os deuses de sua família definitivamente não tinham histórico de lidar bem com essas coisas.

                -Seria muito clichê dizer que você entenderia se tivesse conhecido uma mulher como a ela? – Hades respondeu, depois de longos minutos de silêncio, enquanto se erguia de onde estava sentado desde o fim da ceia. Poseidon riu.

                -Sim, é clichê, mas vou deixar passar. Quem adivinharia que você seria o mais romântico de nós?

                -Eu nunca diria. – Respondeu uma voz feminina ao lado dos deuses. – Porém, longe de mim reclamar disso. – Hades sorriu e se virou para dar de ombros para a mulher. Sua irmã. Sua sogra. Depois de muito mais baixos do que altos na relação entre eles, conseguia, agora, se dar bem com Deméter. Pediu licença e deixou que ela sentasse na cadeira onde ele estava. “Timing perfeito”, pensou. Passou a cobrir a distância entre ele e a esposa, se afastando das poltronas dispostas em nichos pelo salão. Vislumbrou rapidamente Poseidon se aproximando da irmã para conversar. Esse era um casal que ele se recusava a tentar entender. Eram basicamente casuais, embora já tivessem alguns filhos juntos. Se davam bem, pelo menos. Fora útil essa relação em momentos que precisava distrair Deméter para deixar a filha em paz.

                A jovem deusa já havia trocado de roda de conversa mais de três vezes no espaço de tempo que Hades ficara preso em devaneios, dando atenção a todos como a excelente anfitriã que aprendera a ser. Ela o identificou pela lateral do olho que ele se aproximava, quando ele chegou, ela já havia se escusado e se afastado brevemente dos outros deuses. Ergueu os braços e sorriu, o aguardando. Ele sorriu em resposta e deixou que ela entrelaçasse em seu pescoço enquanto ele enlaçava sua cintura e a erguia do chão, abraçando-a apertado.

                -Boa a festa, não? – Sussurrou no ouvido dele, a voz suave dela e o álcool que trepidava pelo ícor do deus precipitando um arrepio de corpo inteiro. Ele murmurou “uhum” por entre os cabelos da deusa, os cachos volumosos exalando perfume embriagante aos sentidos do deus. – Te disse que daria tudo certo.

                -Sim, meu bem. – Ele disse, soltando ela no chão e afrouxando o abraço o suficiente para poder beijar-lhe a boca. – Está tudo perfeito. Até sua mãe parece confortável aqui pela primeira vez desde que começou a nos visitar. – Perséfone sorriu. Começaram a andar para o canto do salão que dava para a varanda para fora do castelo. Saíram e ficaram sob o céu estrelado que Nix projetara em todo o horizonte do reino. 

                -Tenho um presente para você. – Ela disse ao se recostarem sobre a mureta da varanda, as mãos entrelaçadas. O deus se aproximou um pouco mais dela, curioso. Ele também tinha algo para ela, mas esperaria paciente sua vez. Ela acenou e do vazio surgiu um pequeno embrulho com espessura de duas, talvez três folhas de papel. Hades arqueou a sobrancelha. Estava acostumado a dar viagens para a deusa de presente de tempos em tempos, imaginou que talvez aquilo fossem passagens mortais para algum lugar. Perséfone sempre adorou viver a vida como eles. Cozinhava como eles, seguia suas receitas, plantava com suas próprias mãos, se exercitava. Era bonito de ver.

                -Posso abrir direto? – Ele disse, depois que a deusa estendeu a mão para ele pegar, o olhar fixo no embrulho, um sorriso ansioso no rosto. – Ou preciso adivinhar antes? – Às vezes brincavam de adivinhar. Ela negou e acenou para a frente com a cabeça.

—Vá em frente. - Hades soltou sua mão que estava na dela e começou a abrir o presente. Eram de fato folhas de papel, um pouco mais duras do que o comum. Retirou do embrulho e franziu o cenho, sem entender muito bem. Era um calendário do ano seguinte, porém com apenas dois meses. Ele a fitou por um tempo. Voltou a olhar o presente e, só então, entendeu. Não eram quaisquer meses.

—Agosto? E setembro? – Ela sorriu. Desde que se casaram o acordado com Deméter era que Perséfone desceria no equinócio de outono e subiria no equinócio da primavera. Faziam isso pelo fuso do hemisfério norte, já que ainda orbitavam a Grécia, enquanto suas essências romanas o faziam no hemisfério sul. Com isso, a deusa descia ao submundo fim de setembro e retornava em março para o Olimpo. Se ele havia entendido aquilo corretamente...

—É isso mesmo que eu acredito que você esteja pensando. – Ele soltou o embrulho e as folhas e impulsionou para frente, colando seu corpo no da deusa em um longo beijo. Parou somente quando ficaram sem fôlego. Ela riu, lágrimas escorrendo de seus olhos. – Eu já estou farta há milênios disso e finalmente consegui convencê-la. Eu sei que não é muito, mas é um começo. Ano que vem já venho dia primeiro de agosto. São todos os anos.

—Qualquer dia a mais que eu ganho com você é um tesouro, meu amor, imagine dois meses. – Ele também tinha lágrimas nos olhos. A abraçou e enterrou o rosto nos cabelos dela como fez mais cedo e como fazia há tantos anos. Seu cheiro, seu abraço, seu sorriso, eram seu verdadeiro lar. – Muito, muito obrigada.

—É um presente para mim também, meu bem. Eu inclusive agradeci à minha mãe. Vá agradecer ela depois também.

—Claro. – Ele a soltou e enxugou as suas lágrimas e as lágrimas dela, aproveitando para acariciar-lhe a face. Não acreditava em sua sorte de seu presente casar tão bem com o presente dela. Tirou uma pequena caixa preta de dentro do bolso interno de seu paletó e estendeu a mão a ela. Perséfone pegou a caixa, que se expandiu em suas mãos até alcançar pouco mais de 20x20 centímetros. – Desculpe, não tive tempo de a embrulhar para presente.

O corpo de Hades começou a tremer de excitação ao vê-la abrir a caixa com muito cuidado. De dentro, ela retirou um par de meias de recém-nascido, um pé todo decorado com pequenas caveiras e o outro com flores. Perséfone levou ambas as mãos à boca e o fitou, as muitas lágrimas escorrendo pelas suas bochechas, borrando sua leve maquiagem.

—Hades... isto? Nós? – Ela não conseguia falar mais. Ele assentiu com a cabeça e a abraçou, deixando-a enterrar seu rosto no seu pescoço.

—Vamos? – Ele sussurrou, apertando seu abraço. – Eu sei que você já está pronta para isso há séculos e eu cruelmente lhe privei disso. Eu estou pronto agora.

—Mas, meu amor, e se... – Ela conseguiu falar após afrouxarem um pouco o abraço e ela voltar a olhá-lo nos olhos.

—Eu não me importo, meu amor. Se for para existir uma profecia, que seja. O legado dos deuses está para chegar ao fim, está evidente, a vida não é mais como era. Não vou lhe privar e me privar dessa alegria por medo. Se eu vou acabar perdendo meu trono, que seja para um filho nosso. – Ele sorriu. Ela se jogou novamente em seus braços. Ele chorava junto, agora. Aprendeu com ela a demonstrar seus sentimentos.

—Obrigada. – Ela sussurrou. – Eu te amo.

—Eu também te amo, querida.

Após alguns minutos e outros retoques de maquiagem, se prepararam para voltar à festa. Decidiram contar para Deméter e então anunciar a todos. Hades viraria pai, enfim. Perséfone se inclinou, recostando sua cabeça no braço do deus, alguns momentos antes de adrentarem o salão.

—Hades?

—Sim?

—Vai ser muito irônico se a gente chamar ele de algo tipo... Samael?

A gargalhada de Hades foi suficiente para fazer todos se virarem para ele e adiantar o anúncio da novidade em alguns minutos. 


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