Quatro partes da primavera escrita por Chibieska


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

"Eu sempre quis escrever uma história sobre uma samambaia que cresce em um ar-condicionado de uma faculdade"

Alexis R, espero que goste do seu presente!

Boa leitura.



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Parte 1

Como ousava atrair toda atenção para si? Ela era muito mais bonita, mais colorida e mais interessante, por que todos só falavam daquela maldita? A vida era tão mais simples quando ela, e apenas ela, imperava brilhante naquela sala. Sentiu o ódio percorrer o corpo longilíneo e se agitou derrubando as pétalas. Bambi odiava Sam.

A vida de Bambi, o cravo, era perfeita: todas as manhãs acordava com os primeiros raios do sol que entravam pela janela. Lentamente, ela fazia seu ritual de contemplação ao sol, antes do desjejum. Desperta e brilhante, se regozijava com os cantos dos pássaros e esperava pacientemente até os alunos chegarem para as aulas da manhã

Passos vagarosos, vozes sonolentas, o arrastar das cadeiras, a voz tediosa do professor diante da turma. A vibração do ar-condicionado sendo ligado, o barulho ensurdecedor, as lufadas de vento frio, o ar seco, o gotejar da água condensada, tão insípida e artificial.

Ouviria compenetrada o professor explicar o ciclo de respiração das plantas, ouviria os cochichos sobre as festas universitárias e quem estava namorando com quem. Às vezes, um ronco cortava os outros sons e o professor fazia uma pausa, esperando o aluno sonolento acordar.

O sinal soava, a turma era dispensada e uma nova assumia as carteiras e assim seguia o dia de Bambi, perfeitamente acomodada em um vaso ornamentado sobre a mesa do professor. Os alunos sempre comentavam como ela tinha desabrochado de maneira magnífica, com as pétalas em um amarelo tão brilhante, os professores até a usavam como exemplo nas aulas de botânica e Bambi era muito orgulhosa de si. Ela era a rainha do seu pequeno reinado particular. Então a primavera chegou.

Foi sorrateiro e imperceptível, o ar-condicionado começou a fazer um barulho diferente, numa frequência que só Bambi parecia ouvir. E por mais que espiasse o aparelho, nada parecia diferente, ainda vibrava ruidosamente deixando a sala gelada e seca.

Um dia, quando os primeiros raios de sol a despertaram ela notou um pequeno caule verde se retorcia pela saída de ar, de encontro a luminosidade. 

Aquilo deixou-a incomodada, mas quando os alunos começaram a adentrar à sala, alheios a existência do brotinho, Bambi achou que seria o certo ignorá-lo também. A faxineira certamente daria um fim naquela planta invasora quando fizesse a limpeza. 

Por isso, sempre que a planta chamava, Bambi ignorava, sabendo que dali um dia ou dois, ela não estaria mais ali. Mas as semanas passaram e o broto verde agora estava maior, cheio de folhas brilhantes.

E tinha ganhado uma boca suja. Talvez por influência dos alunos que se sentavam bem embaixo do ar-condicionado, os tímidos “olás” que tentou para estabelecer uma comunicação se converteram em “Você se acha só porque fica nessa cumbuca”. E Bambi prometeu que iria ignorá-la, mas depois de alguns dias se tornou impossível não responder no mesmo tom.

“Cuidado com a bunda da abelha na sua cara.”

“Olha só, bate um ventinho e já perde as pétalas.”

“Bambi é seu nome mesmo?”

E aquela era a nova rotina de Bambi, responder às provocações daquela invasora. E todos os dias ela torcia para que a faxineira percebesse os caules que se estendiam pelo ar-condicionado, como se estivesse sendo engolido por um Cthulhu, e desse um fim naquela planta.

A invasora estava grande o suficiente para suas folhas caírem sobre os cadernos enquanto o ar-condicionado a fazia estremecer. E finalmente, um dos alunos percebeu sua presença.

 – Professora, tem uma samambaia crescendo no ar-condicionado. 

Os olhares se voltaram para ela, curiosos e estarrecidos. Bambi teve certeza de que aqueles eram os minutos finais da tal samambaia, mas a professora limpou a garganta e começou a discursar sobre plantas que cresciam em locais inóspitos. 

E Sam, a samambaia, se tornou a sensação da classe. Não que a samambaia realmente tivesse um nome, mas ela não queria ser apenas a samambaia e se Bambi tinha direito a um nome, ela também poderia ter algum. E não era um nome criativo, mas ela era só uma planta, não precisava ser criativa.

Parte 2

— Ela acredita mesmo que os bebês são trazidos por pássaros – a aluna ruiva zombou. 

— Mas ela é criança, isso é normal – a amiga amenizou.

— Ela tem onze anos, não é tão criança assim.

— É sua sobrinha, não dá para esperar que ela seja muito inteligente – outra aluna provocou.   

Sam deu um riso, balançando seus galhos.

“Claro que bebês vinham trazidos pelos pássaros, foi assim que cheguei aqui, trazida por um pássaro.”

“Você é burra ou mentirosa? Não ouviu a professora dizendo que espécies monilophyta não produzem sementes? Você é só a porcaria de um esporo levado pelo vento. Acho que não é só a sobrinha dessa garota que não é muito inteligente.” Bambi ralhou do espaço no vaso.

E logo as duas começaram uma discussão acalorada sobre a inteligente das plantas e como plantas mais complexas eram muito mais inteligentes.

Não era como se Sam não gostasse de Bambi, na verdade, era divertido irritá-la. A planta bela e colorida que tinha perdido toda a sua atenção para uma samambaia sem graça que vivia de migalhas do sol e da água condensada pelo ar condicionado.

Sam gostava da sua vida. Havia partes ruins como dividir espaço com as bactérias que moravam nos filtros do aparelho, as vibrações e o barulho ensurdecedor, as vezes, podia sentir suas raízes congelarem quando a potência do aparelho estava no máximo. Ela também tinha inveja das plantas lá fora, que cresciam e floresciam alegremente banhadas pela luz solar direto, aproveitando o auge da primavera.

Mas ali, ela podia ver os alunos, ouvir suas conversas, aprender coisas novas e claro, provocar Bambi. 

Por isso, sempre que o cravo dizia que a faxineira viria para removê-la ou que algum aluno estava incomodada e ela seria arrancada dali, seu corpo vibrava de pavor.

“Aposto que amanhã, a equipe de manutenção vai te arrancar, não tem mais como ignorar sua presença.” As folhas quase tocavam a carteira e as raízes tinham se enrolado na saída de água, diminuindo a eficiência do aparelho.

“Pare de dizer essas besteiras ou eu vou estrangular você.”

“Pff, como se você pudesse.”

“Dúvida?” Balançou os caules longos e folhosos. Diferente do cravo que tinha exatamente o mesmo tamanho, Sam tinha crescido rapidamente e sentia que poderia crescer mais.

Ela sabia que poderia ser assustadora como nas histórias que via Guilherme ler (escondido) durante a aula. Podia não saber os textos, mas as figuras cheias de folhas e tentáculos pareciam muito consigo.

E mais um dia, naquela rotina, Sam e Bambi trocaram insultos, até finalmente as luzes da sala se apagarem e elas adormecerem.

Quando acordou na manhã seguinte, ansiosa se o pessoal da manutenção iria mesmo arrancá-la, percebeu que Bambi não estava mais ali. O cravo, o vaso, tudo havia sumido e quando os alunos chegaram, ninguém pareceu dar falta dela.

E o dia transcorreu estranho e silencioso, sem ninguém para responder às provocações da samambaia. As abelhas não apareceram e não havia pétalas caindo com as lufadas de vento.

Os dias corriam lenta e tediosamente e nem mesmo os desenhos que Guilherme via a entretinham. As conversas haviam se tornado ruídos disformes e Sam pensava se havia algum meio de descobrir o paradeiro de Bambi.

— Essa samambaia está enorme, ninguém vai dar um jeito nela? – a aluna ruiva reclamou.

— Provavelmente vão deixar para fazer a manutenção no período das férias. Não que vá precisar, ela vai morrer mesmo – respondeu a amiga. –– E completou diante do olhar confuso da amiga. – Se o ar não for ligado, de onde ela vai tirar água? Nem parece que você faz biologia.

Por um segundo, as aflições de Sam voltaram para o seu próprio destino. Ela morreria seca e esturricada? Suas raízes se alongavam para fora do aparelho, na parede externa, chuvas a manteriam hidratada, mas e se não chovesse?

Preocupada com Bambi e seu próprio destino, ela sentiu as folhas murcharem lentamente.

Parte 3

Era a manhã do último dia de aula, estava tão quente que aquele dia de primavera podia ser facilmente confundido com um dia de verão. Os alunos pareciam animados enquanto se despediam uns dos outros e dos professores. Era um dia feliz, mas não para Sam. Aquele seria o último momento que o ar-condicionado seria ligado. Quando as luzes se apagassem, ela ficaria no escuro, esperando lentamente o momento final enquanto definhava.

Ela sabia não estar mais tão verdejante quanto antes e nem causar mais tanta admiração dos alunos, mas nada daquilo importava mais.

O professor se despediu do último aluno, mas antes de apagar a luz da sala e desligar o ar, uma aluna apareceu. Era um rosto que Sam nunca viu antes e trazia um vaso nas mãos.

Não qualquer vaso, mas o vaso ornamentado com um cravo amarelo dentro dele, Bambi.

— Me desculpe, professor, acho que esse vaso é seu. Um dos seus alunos o deu a mim, disse que era prova do nosso amor, mas uma das minhas colegas disse que o BAMBI pintado no vaso era a sigla do centro de biologia.

— Sim. ele é nosso, mas pode ficar com ele, se quiser.

— Não, de forma alguma eu aceitaria algo que pertence ao centro.

O professor aceitou o vaso e o devolveu ao seu devido lugar, antes de desligar os aparelhos da sala e partir.

“Você ainda está aqui?” Bambi encarou Sam.

“Você ainda está viva?”

Bambi se balançou no vaso. Não tinha sido uma temporada ruim, outro ambiente, outras conversas. A garota em questão cantava para ela antes de dormir, mas aguava demais e sentia suas raízes lentamente apodrecerem. Sabia que não duraria muito. Ela não era mais tão brilhante, majestosa e colorida e agora, até ficava feliz de não chamar mais tanta atenção.

“Não por muito tempo, minhas raízes estão podres.” Respondeu.

“Nem eu. Minhas raízes vão secar.”

Era irônico que uma delas morreria por excesso de água e a outra por volta. Se dividissem o mesmo espaço poderiam compartilhar, mas elas nunca compartilhariam mesmo se pudessem. Morreriam com seu orgulho, mas nunca Sam e Bambi seriam dependentes uma da outra.

Os dias passaram e mesmo que o sol iluminasse a sala, as duas pareciam sem vida ou ânimo, se agarrando ao resto de existência. Certa tarde, a faxineira apareceu, abriu as janelas e o vento quente do final de dezembro invadiu a sala, arrastando os esporos de Sam e levando seu resto de vida para longe, lhe dando a chance de crescer livre e adequadamente em outro lugar.

Elas não tiveram a chance de se despedir, nem desejaram por isso. Bambi apenas lamentou morrer sozinha.

Parte 4

Todas as manhãs Bambi acordava com os primeiros raios do sol que entravam pela janela. Lentamente, ela fazia seu ritual de contemplação ao sol, antes do desjejum. Desperta e brilhante, se regozijava com os cantos dos pássaros e esperava pacientemente, até Elena chegar. Era um dos últimos dia da primavera, e também um dos últimos que a mulher trabalharia até ter seu merecido descanso antes das festividades de final de ano.

Quando chegou, Elena fechou a porta e ligou o ar-condicionado. Bambi podia sentir o vento frio circular em torno de si e o ar ficar seco e difícil de respirar, mas ela já estava habituada com aquilo.

Ela não era mais tão bonita, as pétalas eram menores e tímidas e em um tom de amarelo mais apagado. Mas Elena cuidava dela com carinho e ela ficava satisfeita, nunca havia água demais, nem de menos e vez ou outra, a mulher podava suas folhas, incentivando seu crescimento.

Sentia falta das cadeiras arrastadas, das conversas e da diversidade de rostos. Eleanor não era de falar muito, ela passava a maior parte do tempo em silêncio, cuidando da papelada e digitando no computador. Bambi gostava do tec-tec ritmado das teclas sendo apertadas. Era uma vida nova, onde ela tinha deixado de ser a planta da sala A-1 da turma de biologia e se tornado um módico vaso na sala da coordenadora de curso. Um vaso entre tantos, espaço divididos com rosas, violetas e gérberas que assim como Elena, não gostavam muito de conversa. E assim como as plantas silenciosas não tinham nome, ela sentiu que não deveria ter um, e passou a ser apenas um cravo.

Após abrir as janelas e dar liberdade a Sam, a faxineira notou o vaso quebrado e a terra que caía sobre a mesa. Limpou a sala e tencionou a jogar o cravo no lixo, quando Elena apareceu, lhe deu um vaso menor, um espaço na prateleira do fundo, perto da janela e do ar-condicionado e uma vida nova.

Às vezes, e só às vezes, pensava em Sam e se ela teria germinado em um espaço aberto e se tornado uma samambaia frondosa como o professor exibia nos slides das aulas. Admita que sentia falta da outra, discutiam e se provocavam, mas era assim que funcionava para elas.

“Ei, Bambi! Essas suas amigas são muito sem graça, são perfeitas para você.”

Havia um maldito broto crescendo dentro do ar-condicionado, verde e folhoso. Ela não seria azarada de o vento trazer aquela maldita para o ar-condicionado da sala de Elena, era em outro prédio. 

Daria um muxoxo, se plantas pudessem dar. Ela não sentia falta nenhuma daquela samambaia, mas teria que conviver com ela novamente.


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Notas finais do capítulo

N/T: [1] monilophyta são plantas que produzem esporos (e não sementes ou flores) para se reproduzirem.

[2] Eu tinha inventado uma sigla para BAMBI, mas eu perdi o arquivo. Só lembro que eram Biologia Aplicada em Monitoramento de...

Beijokinhas e até!



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