Primavera escrita por Gabinos


Capítulo 1
Setembro


Notas iniciais do capítulo

Fanfic originalmente postada no SpiritFanfics, como parte de um desafio.

Homenagea não somente o Cavaleiro de Virgem, que completa anos nesta data, mas também MelBronte, Lehninger e Super-nova, culpadas por muitos risos e muitas lágrimas neste pequeno mundinho à parte.



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Com a subida da maré, a água fria já alcançava os pés descalços de Asmita. Há alguns minutos não encontrava-se mais sozinho naquele local paradisíaco. Sua companhia, porém, nada dizia até presenciar o susto causado pelo contato do mar sobre a pele do Cavaleiro de Virgem que, acompanhando o som dos passos que o seguiam, deixou de atentar-se ao barulho da água a lhe lançar uma nova onda.

— Tens frio? — Perguntou Defteros — Podemos ir embora, se assim preferes.

— Pretendia seguir-me por quanto tempo mais, Santo de Gêmeos?

— Vi que andava por aqui, achei que preferia ficar sozinho em teus pensamentos. 

— Hm. Posso ficar sozinho em Virgem. Se venho até aqui é para ter contigo.

Defteros apressou alguns passos, colocando-se ao lado do outro Cavaleiro. A sempre cretina escolha das palavras que saíam da boca de Asmita era vista como grosseria e arrogância por qualquer outra pessoa naquele mundo, menos por Defteros. Sabia que, embora algumas vezes fosse estúpido propositalmente, pelo menos consigo Virgem as usava de maneira carinhosa. Como um bônus, divertia-se com o espírito de ancião do homem que completava apenas vinte e um anos de idade.

Gostava também de apreciar a suavidade da face de Asmita, especialmente quando este fingia zanga, contraindo as sobrancelhas e, muito provavelmente, abrindo um largo sorriso assim que elas retornassem à posição devida. Enquanto caminhavam, afastando-se da água, Defteros tentava contar as sardas do outro. Seu passatempo preferido. O moço cego não só estava consciente de tamanha dedicação às suas feições, como também o permitia. Fazia-lhe bem sentir-se observado daquele modo carinhoso.

Ainda em silêncio, Asmita abriu os olhos somente para assustá-lo. Era comum que algumas pessoas que o encaravam reagissem como se fossem flagradas sendo indiscretas. Defteros, todavia, não importava-se em ser indiscreto. Não com Asmita. Passou então a admirar as íris violeta, de um tom translúcido. Desejou, mais uma vez, ver alguma vida em olhos tão bonitos. A mesma vontade de Asmita, que mais do que qualquer coisa, naquele dia, desejava poder enxergá-lo.

— Econômico nas palavras, então. O que está a te afligir?

— Decisões necessitam ser tomadas, Defteros. 

— Por um momento suspeitei que veio até aqui para ver-me. Estava enganado, perturba meu treinamento pois julga que minha ilha é um lugar para espairecer.

— Esta ilha não é tua, Demônio Impostor. — Asmita ralhava — Desde quando ficaste tão egoísta?

— A ilha é minha e, do mesmo modo que qualquer outra coisa que a mim pertença, escolho dividi-la contigo. 

— Divide, então, teu precioso tempo. Faz-me rir de tuas tolices. — Abriu um sorriso zombeteiro — O que tanto olhas? 

    — Tuas sardas.

    — Que bobagem! Não tenho sardas, Defteros. 

   — Tens sim. São tão delicadas quanto o resto da tua face. Para que alguém as note, é necessário olhar para ti com devoção e, somente à essa maneira, elas tornam-se perceptíveis.

    — Lembra-te da primeira vez que as notaste?

    — Foi na primeira vez que te vi.

    — Me olhas com devoção desde aquela vez? 

 — É curioso o fato de que gostes tanto de fazer perguntas para as quais já sabes a resposta. Deixa-me te ajudar a sentar. 

Estavam sobre um gramado. Defteros tentou segurá-lo pelo braço, a fim de dar apoio, mas foi repelido, de forma ríspida.

— Não sou um inválido, Cavaleiro de Gêmeos. Posso sentar-me por mim mesmo, obrigado. — Fez menção a abaixar-se, esperando a resposta à troça.

— Mas gosta quando sente meu corpo ao teu. — Pôde observar a corada das bochechas pálidas de Asmita.

— Pois, se assim acreditas, ajuda-me logo, homem!

Sentaram sobre o verde. Defteros dedicava-se a cultuar as sardas do tão querido Asmita que, convenientemente, podia descansar a cabeça sobre o ombro do Demônio, sorrateiramente esfregando a bochecha como se um filhote de gato fosse, marcando sua propriedade.

— Estava certo. Tens frio.

— Estás errado mesmo quando estás certo. Não tenho frio, mas gosto quando teu corpo toca o meu. Deveria abraçar-me, pois também gosta quando meu corpo toca o teu.

Prontamente, a ordem de Asmita foi atendida. O braço forte que antes era seu apoio, agora circundava suas costas, o trazendo de encontro ao autoproclamado dono da ilhota.

— Posso beijar-te?

A voz de Gêmeos saiu muito mais tímida do que de costume, contrastando com o tom irritado da resposta dita.

— Mas que despautério, Defteros! Já devia tê-lo feito há muito tempo! Não és um idiota para saber que há anos espero um beijo teu! Talvez esta tenha sido a pergunta mais óbvia feita durante tua existência!

O tão esperado beijo demorou um tanto mais para acontecer. Defteros ria, fazendo com que Asmita logo o acompanhasse. Precisaram concentrar-se no desejo mútuo de experimentarem da boca um do outro. O cego tocava as bochechas do amado, pela primeira vez em sua vida. Já havia experimentado o abraço, em uma ou outra ocasião. Gostavam de colar os troncos quando sentavam no gramado, mas aquele era um dia especial. Não só abraçaram-se enquanto tinham os corpos unidos, mas agora também beijavam-se! Algo tão banal como apenas um toque de mãos era um acontecimento surpreendente, mais valorizado do que qualquer riqueza. Eram um o tesouro do outro. Tratavam-se com a mesma importância.



 

— Sempre imaginei que quando criasse juízo nesta cabeçorra e finalmente unisse teus lábios aos meus, morder-me-ia com teu dentinho. 

Defteros aproximou o rosto de Asmita, tocando sua bochecha com a ponta do nariz, provocando Virgem até finalmente mordiscá-lo.

— Está feliz assim?

— Estou! — procurou pelas mãos do outro, após falar algo indecifrável aos ouvidos do grego — Tu vês, Defteros. Estava a fundir os miolos tentando entender a razão da felicidade quando há tanto sofrimento. Venho aqui e, com apenas duas ações da tua boca, consigo ordenar o que matuto há tantos anos sobre! Quisera o Asmita do passado saber que teu gosto traz conhecimento, não teria esperado por tanto tempo até que tomasse uma atitude. 

— Não podes simplesmente desfrutar? Não é momento para que fales de sofrimento.

— Oras, homem! Amar a ti é sofrer!

— Então me amas. 

— Claro que te amo!

— Mas faço com que sofras.

— Sim! Mas vê bem, Defteros! Talvez esta seja a graça em ser humano! Pois se não sofresse ao te amar, talvez teu gosto não deixasse tão boa sensação! — a face de Virgem começava a parecer confusa — Mas talvez o Asmita do passado que não fosse um idiota como este aqui que vos fala e tivesse o beijado à primeira oportunidade não ficasse tão satisfeito com tal beijo. 

— Não quero que sofras. — a tristeza pesava na voz.

— Demônio fajuto! Olha para mim! Ouve o que estou dizendo! O sofrimento que me impõe não é de todo o ruim. Sofro toda vez que não escuto tua voz. Quando me vem à memória o teu cheiro ou o som da tua risada, mas sei que não estás comigo. Sofro pois sei que a vida te foi malvada em muitos momentos e, principalmente, sofro por não poder poupar-te de tanto sofrimento. Todavia, se não houvesse tamanha provação para atravessares, não teria o gosto que tens agora. Não serias o homem por quem, alegremente, sofro.

— Passa mais tempo comigo e sofrerás menos.

Asmita acomodou-se novamente sobre o ombro de seu querido Demônio. Mesmo sua língua afiada não tinha palavras para aquela situação. Sofria, mais uma vez, por não poder aceitar o pedido. Defteros, compreendendo, o deixou em silêncio por tempo o suficiente para que o Sol caísse no horizonte, pintando os céus dos mais variados tons de alaranjado.

— Queria que pudesses enxergar o pôr-do-sol.

— Se enxergar eu pudesse, Defteros, estaria com os olhos fechados agora. Dessa maneira, poderia dedicar-me a sentir o resquício do Astro a me aquecer a pele, assim como sinto as batidas do teu coração, que aquecem o meu.

— Não quer que eu sofra por que não enxergas, apesar de dizer-me que sofres por que até mesmo respiro.

— Não poder ver-te é a única mágoa que carrego pelos olhos imperfeitos. — descruzou os tornozelos, estendendo as mãos para a frente — Ajuda-me a levantar. Cansei de ficar sentado.

Puxando o Cavaleiro de Virgem contra si, o envolveu em um abraço. Poderia ficar ali pelo resto das eras. Contudo, era sabido que o futuro dos dois divergia. Não desprenderam-se totalmente, caminhando de braços dados, perseguindo os últimos raios do Sol, que já estava posto.

— Ao menos hoje é um dia feliz. Tu estás aqui e inicia-se a Primavera.

— Deixe de tolices, Defteros! Estamos nos preparando para o Outono, quando as folhas caem e os dias encurtam.

— Não me julgues, Virgem. És tu o tolo se acreditas nisso. É Setembro. Embora estejamos fadados a viver o Outono, Setembro sempre será o mês da Primavera.

— Como explicas tal fenômeno? Inverterá o Equinócio com o poder de tua vontade? 

— Setembro marca o nascimento da mais bela flor. E cada volta ao redor do Astro a faz ainda mais vistosa. Logo, se a Primavera é a estação das flores, será sempre Primavera em Setembro. Mesmo que o Equinócio ainda tarde a se realizar, em meu coração, o início deste mês sempre será a sua data. É quando as estações do destino mudam para mim, é época de celebrar a minha flor.

— Por tanta importância, a flor deve ser mesmo de enorme beleza. Descreve-a para mim.

— A flor de Setembro tem pétalas amarelas, Asmita. Aliás, amarelo não é a cor certa, elas parecem mais com a cor da areia. É uma flor de traços delicados, mas troceira. Causa o comichão naqueles que tentam arrancá-la do solo.

— Uma florzinha zombeteira! — Virgem ria, pedindo pelo resto da descrição — Continua a contar-me sobre ela! 

 —  Existe, nessa flor, alguns detalhes: pequenas manchinhas de um tom mais escuro por entre suas pétalas. Estas, quando perdem a timidez e abrem, revelam duas jóias quase translúcidas, de um tom lilás. Perderia a vida olhando para elas! Todavia, tais maravilhas carregam também uma tristeza profunda. É por isso que a flor, apesar de muitas vezes ignorada pelas pessoas, tanto me atrai. Preciso cuidá-la para que, nos próximos Setembros a surgirem, essa tristeza seja extinta.

— Me amas a ponto de criar tantas alegorias pelo dia do meu nascimento?

O Santo de Virgem havia cessado a caminhada. Tinha o rosto virado para Defteros como se o pudesse enxergar, apesar dos olhos cerrados. O narizinho apontando para cima, desta vez não somente pela petulância inerente, mas também para compensar a diferença de altura entre os dois.

— Eu o amo, Asmita. Perdidamente. Criaria a alegoria que fosse para fazer-te feliz. 

Asmita aproximou-se, abraçando Defteros. Tentou respondê-lo, mas ao abrir a boca, as palavras falharam em sair. As compensou com um beijo suave nos lábios de seu querido. 

— O que foi? Pretendia chamar-me de tolo novamente?

— Dizer-te-ia que o amo também. 

Virgem retomou a caminhada, em sentido contrário, com o passo rápido.

— Tens pressa? 

A aflição era desenhada no rosto de Defteros. Não estava pronto para despedir-se.

— Muita. É finalmente chegada a hora.

— Tens mesmo que fazer isso?

— Não quero que morras em vão, Demônio.

— E como sabeis que a morte me é certa?

— Dividimos muito mais do que as dores e as glórias desta sina de Cavaleiro. Infelizmente, para nós, não haverá o desfecho da Guerra. Além disso, disseste que me ama. Assim, não podeis deixar-me vagando solitário pelos Elíseos. Estarás lá para amar-me, cuidará de tua tão querida Flor de Setembro. Aproveito o resquício desta Primavera-de-Um-Dia ao teu lado, pois para mim logo será Outono. Assim como as folhas, eu também cairei. E tal como em todo e qualquer segundo que passo longe de ti, viverei um longo Inverno, até que te juntes a mim novamente, para nossa eterna Primavera. — Afetuosamente, tocou o rosto do Cavaleiro de Gêmeos, aparando uma lágrima teimosa que desprendeu-se do ponto lacrimal — Antes que perguntes, Defteros, é assim mesmo que deve ser, visto que nunca fui muito simpático à causa do Verão.

Asmita abriu suas pálpebras novamente, mas nesta ocasião, ao contrário de todas as vezes em que não havia vestígio algum do sentido o qual fora privado, Virgem fitava Defteros no fundo de seus olhos, com um sorriso travesso no rosto, desaparecendo sem deixar rastros.

 

 


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